Verba volant, scripta manent!
Oblomov de Ivan Gontcharov
Temas de reflexão:
·
Os
cotovelos de Agáfia Matvéievna vs a
sobrancelha de Olga
·
O
russo Oblomov vs o português Carlos
da Maia
·
Andrei,
o cometa brilhante vs Oblomov o astro
apagado
·
As
luvas cor de palha vs o cafetã
surrado
·
Oblomovka
vs Viborg
·
O
homem vs a mulher;
·
Os maridos vs as esposas
·
Zakhar, o criado vs Oblomov, o amo
O russo
Oblomov vs o português Carlos da Maia
A
leitura do romance “Oblomov” do escritor
russo Ivan Gontcharov cuja primeira
edição data de 1859 evoca, a vários títulos, o romance “Os Maias” de Eça de
Queirós publicado vinte e nove anos mais tarde, em 1888.
De
facto, vários são os paralelismos que podemos estabelecer entre as duas obras.
Começando,
desde logo, pelo título, constatamos que tanto numa obra como na outra, este
corresponde ao nome de personagens, embora o plural de “Os Maias” implique a
ideia de que se vai contar a história de uma família enquanto no romance russo,
Oblomov é, simplesmente, o nome da personagem central. Poder-se-á objectar que o romance de Eça ostenta um subtítulo, Episódios da Vida Romântica, que não
está presente em “Oblomov”. No entanto, se Eça assume explicitamente a intenção
de descrever um certo estilo de vida dominado pela visão da vida e do mundo que
o Romantismo trouxe à sociedade portuguesa e que persistia ainda na década de
70 do século XIX, Gontcharov dá conta dessa mesma influência na sociedade russa
com um olhar eventualmente mais benevolente, mas igualmente critico. Evitava
(Oblomov) principalmente aquelas meninas pálidas e melancólicas, na sua maior
parte com olhos negros, em que se reflectem «os dias aflitivos e as noites
iníquas», meninas com tristezas e alegrias que
ninguém conhece, que têm sempre alguma coisa a confidenciar, a contar, e quando
é preciso dizer, estremecem, desfazem-se em lágrimas inesperadas, depois
agarram de súbito o pescoço da amiga com as duas mãos, olham-na longamente nos
olhos, depois olham para o céu, dizem que há uma maldição na sua vida e por
vezes caem em desfalecimento. (Oblomov,78) É verdade que este retrato
caricatural da mulher romântica não enquadra o perfil de Olga Serguéievna, a personagem feminina
principal celebrada pela sua inteligência, naturalidade e beleza, mas nem mesmo
ela escapa totalmente ao modo romântico de encarar o sentimento amoroso quando
suspeita estar apaixonada por Stoltz. Rebuscava na sua experiência: não encontrava
lá nenhuma informação sobre um segundo amor. Lembrava-se das opiniões das tias,
de velhas solteironas, de várias pessoas inteligentes, finalmente de alguns
escritores «pensadores do amor» - de todos os lados ouvia a sentença
implacável: «A mulher só ama verdadeiramente uma vez.» (…) Não, ela não sentia
amor por Stoltz – decidiu- e não podia sentir. Tinha amado Oblomov, esse amor
morrera, a flor da vida definhara para sempre. (Oblomov 535)
Por
seu lado, Eça faz a personagem central
do seu romance, Carlos da Maia, auto-recriminar-se ao descobrir que não passava de um romântico
imbecil. E seria tão fácil, desde o primeiro dia no Aterro, ter percebido que
aquela deusa, descida das nuvens, estava amigada com um brasileiro! Mas quê! A
sua paixão absurda de romântico pusera-lhe logo entre os olhos e as coisas
flagrantes e reveladoras, uma dessas névoas douradas que dão às montanhas mais
rugosas e negras um brilho polido de pedra preciosa! (Os Maias, 484).E,
no diálogo final entre Carlos da Maia e João da Ega, este último faz uma
síntese do que fora a vida de ambos, vivida à luz do Romantismo . – É
curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar a minha
vida inteira! Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete,
ele vivera realmente daquilo que dá sabor à vida – a paixão.- Muitas outras
coisas dão valor á vida…Isso é uma velha ideia de romântico, meu Ega!_ E que
somos nós?_exclamou Ega. _ Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de
latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo
sentimento e não pela razão… (Os Maias 714)
A
amizade incondicional entre Carlos da
Maia e João da Ega tem, aliás, um contraponto muito claro na amizade entre
Oblomov e Stoltz, também ela ilimitada e total. Tanto num como no outro
romance, cada um destes pares de personagens encarna a amizade isenta de
competição e invejas, a amizade verdadeira.
Um
outro paralelismo entre as duas obras é a educação a que são submetidas as
personagens enquanto crianças. A educação de Oblomov em Oblomovka assemelha-se
muito à de Pedro da Maia pelo excesso de protecção de que ambos são alvo, nomeadamente por parte
das respectivas mães. Queria subir à colina, ver para onde fora o
cavalo. Dirigiu-se ao portão, mas da janela ouviu-se a voz da mãe:- Ama! Tu não
vês que o menino anda ao sol? Leva-o para a sombra; se lhe aquece a cabeça, vai adoecer, ficar agoniado e não
come. Ainda o vais deixar fugir para o barranco! (Oblomov 141)
Comportamento
semelhante tem Maria Eduarda Runa, mãe
de Pedro da Maia. Às vezes Afonso,
indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina, agarrava a mão do Pedrinho
- para o levar, correr com ele sob as árvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande
luz do rio o pesadume crasso da cartilha. Mas a mamã acudia de dentro, em
terror, a abafá-lo numa grande manta: depois lá fora o menino, acostumado ao
colo das criadas e aos recantos estofados, tinha medo do vento e das árvores: e
pouco a pouco, num passo desconsolado, os dois iam pisando em silêncio as
folhas secas - o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pai
vergando os ombros pensativo, triste daquela fraqueza do filho… (Os Maias ,18)
Por
sua vez, a educação rigorosa de Stoltz, imposta pelo seu pai alemão
assemelha-se à educação “à inglesa” a que Afonso da Maia submete o seu neto
Carlos, privilegiando a vida ao ar livre, o rigor e a disciplina. Ao libertar-se das
lições, corria a devastar os ninhos dos pássaros com os rapazes da aldeia, e por
vezes, no meio de uma aula ou da oração, ouvia-se-lhe no bolso o pio de
pequenas gralhas. (…)Acontecia também o pai estar sentado debaixo de uma árvore
no jardim a seguir ao almoço. A fumar cachimbo e a mãe a tricotar uma qualquer
camisola ou a bordar na talagarça; de repente, ouve-se um barulho na rua,
gritos e uma multidão de pessoas irrompe pela casa. _ O que se passa?_ pergunta
a mãe alarmada._ Pelos vistos trazem outra vez o Andrei_ diz o pai calmamente.
Escacaram-se as portas e uma multidão de mujiques, de mulheres e rapazes
irrompe pelo jardim. De facto, traziam o Andrei_ mas em que estado: sem botas,
com as roupas rasgadas e um nariz partido, o dele ou o de outro rapazinho.(…)A
mãe fica em lágrimas, o pai nem por isso, ainda se ri (Oblomov 199) Também Afonso da Maia, para escândalo dos
criados e dos amigos da família deixa Carlos brincar com os filhos dos caseiros
em Santa Olávia, sujar-se na terra e fazer
ginástica na barra do trapézio. E perante o abade que timidamente insiste que se “deve começar
pelos clássicos e pelo latinzinho”, Afonso expõe a sua teoria: _
Qual clássicos! O primeiro dever do homem é viver. E para isso é necessário ser
são e ser forte. Toda a educação sensata consiste nisto: criar a saúde, a força
e os seus hábitos, desenvolver exclusivamente o animal, armá-lo de uma grande
superioridade física. Tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois… A
alma é outro luxo. É um luxo de gente grande…(Os Maias, 63)
Mas
as semelhanças entre Andrei Stoltz e Carlos da Maia ficam-se pela infância já que o Carlos adulto se aproxima mais de
Oblomov com quem, aliás, partilha o
estatuto social e a cuidada preparação académica, pois tal como ele também Carlos
falha o seu projecto de vida. Na verdade, ambos tinham na juventude grandes
ambições. Dez anos antes, Oblomov sonhava, como lho recorda Andrei «servir
a Rússia enquanto tiver forças, porque a Rússia necessita de braços e de
cérebros para a exploração dos seus recursos inesgostáveis (as palavras são
tuas); trabalhar para mais docemente descansar, e descansar significa viver
outro lado da vida, artístico, mais elegante, a vida dos artistas, dos poetas» (Oblomov
237) Do mesmo modo, Carlos chega a Lisboa, já médico, disposto a uma vida de
estudo e investigação e faz instalar um moderno laboratório “ com
uma vasta de mesa de mármore e um amplo divã de crina para o repouso depois das
grandes descobertas” mas “ não tinha realmente tempo de se ocupar do
laboratório; e deixaria a Deus mais algumas semanas o privilégio de saber o
segredo das coisas_ como ele dizia rindo ao avô. (Os Maias, 128)
Assim, e
aparentemente, a sociedade portuguesa está tão adormecida como a sociedade
russa e ambas fazem murchar todos os sonhos de juventude que depressa se diluem
na mediocridade do quotidiano. É isto
que constata Oblomov quando reage às invectivas de Andrei para que saia da sua indolência: O
mundo e a sociedade! Tu, Andrei, provavelmente levas-me de propósito para esse
mundo e essa sociedade para que eu perca mais depressa o desejo de lá ir. Vida:
que bela vida!(…) Tudo aquilo são pessoas mortas, adormecidas, piores do que
eu, esses membros do mundo e da sociedade!(…) E a nossa juventude, o que faz ela? Não está
a dormir enquanto percorre a Avenida Nevski, a pé ou de carruagem, e enquanto
dança? Uma contínua e fútil mistura dos dias! (Oblomov 227)
É
flagrante a semelhança entre este desabafo de Oblomov e o espanto de Carlos,
regressado de Paris, ao observar os jovens que passeiam na recente Avenida que
substituía agora o pacato e frondoso Passeio Público: Carlos pasmava. Que faziam ali,
às horas de trabalho, aqueles moços tristes de calça esguia? (…) E o que
sobretudo o espantava eram as botas desses cavalheiros, botas
despropositadamente compridas, rompendo para fora da calça colante com pontas
aguçadas e reviradas como proas de barcos varinos. (Os Maias, 702)
Mas
o próprio Carlos não é, afinal, muito diferente desses jovens que observa pois
também ele leva uma vida fútil e sem objectivo Vivia, ria, governava o seu
faetonte no Bois e como o próprio diz: Em dez anos não me tem sucedido
nada, a não ser quando se me quebrou o faetonte na estrada de Saint-Cloud…Vim
no «Figaro» (Os Maias, 713)
Coincidem,
deste modo, os dois romancistas na análise e no diagnóstico social que fazem e,
se a personagem de Oblomov se entrega caricaturalmente, coerentemente e
conscientemente à indolência, rejeitando a ideologia do trabalho que o seu
amigo lhe apresenta, por inútil numa sociedade à deriva, também Carlos sofre de
uma oblomovite à portuguesa e a
sua existência é, assim, não menos caricaturalmente reduzida
à do « homem rico que vive bem». Nada mais infensivo, mais nulo e mais
agradável. (Os Maias, 713)
Oblomov,
o russo vs Carlos da Maia, o português podiam pois, perfeitamente, mudar os
seus nomes para Iliá da Maia Oblomov vs
Carlos Oblomov da Maia, ambos inúteis, ambos superiores, ambos irremediável
e surpreendentemente irrelevantes.
E
trabalhar…que trabalhe o alemão!
Gondar, 4 de Julho de 2016
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