sexta-feira, 8 de julho de 2016

Oblomov _ Verba volant, scripta manent!



 Verba volant, scripta manent!

Oblomov de Ivan Gontcharov

Temas de reflexão:

·      Os cotovelos de Agáfia Matvéievna vs a sobrancelha de Olga 
·      O russo Oblomov vs o português Carlos da Maia
·      Andrei, o cometa brilhante vs Oblomov o astro apagado
·      As luvas cor de palha vs o cafetã surrado
·      Oblomovka vs Viborg
·      O homem vs a mulher;
·      Os maridos vs as esposas

·      Zakhar, o criado vs Oblomov, o  amo  




      O russo Oblomov vs o português Carlos da Maia

Alexandra Azevedo


     A leitura do romance  “Oblomov” do escritor russo  Ivan Gontcharov cuja primeira edição data de 1859 evoca, a vários títulos, o romance “Os Maias” de Eça de Queirós publicado vinte e nove anos mais tarde, em 1888.
     De facto, vários são os paralelismos que podemos estabelecer entre as duas obras.
    Começando, desde logo, pelo título, constatamos que tanto numa obra como na outra, este corresponde ao nome de personagens, embora o plural de “Os Maias” implique a ideia de que se vai contar a história de uma família enquanto no romance russo, Oblomov é, simplesmente, o nome da personagem central.  Poder-se-á objectar que  o romance de Eça ostenta um subtítulo, Episódios da Vida Romântica, que não está presente em “Oblomov”. No entanto, se Eça assume explicitamente a intenção de descrever um certo estilo de vida dominado pela visão da vida e do mundo que o Romantismo trouxe à sociedade portuguesa e que persistia ainda na década de 70 do século XIX, Gontcharov dá conta dessa mesma influência na sociedade russa com um olhar eventualmente mais benevolente, mas igualmente critico. Evitava (Oblomov) principalmente aquelas meninas pálidas e melancólicas, na sua maior parte com olhos negros, em que se reflectem «os dias aflitivos e as noites iníquas», meninas com tristezas e alegrias    que ninguém conhece, que têm sempre alguma coisa a confidenciar, a contar, e quando é preciso dizer, estremecem, desfazem-se em lágrimas inesperadas, depois agarram de súbito o pescoço da amiga com as duas mãos, olham-na longamente nos olhos, depois olham para o céu, dizem que há uma maldição na sua vida e por vezes caem em desfalecimento. (Oblomov,78) É verdade que este retrato caricatural da mulher romântica não enquadra o perfil de  Olga Serguéievna, a personagem feminina principal celebrada pela sua inteligência, naturalidade e beleza, mas nem mesmo ela escapa totalmente ao modo romântico de encarar o sentimento amoroso quando suspeita estar apaixonada por Stoltz. Rebuscava na sua experiência: não encontrava lá nenhuma informação sobre um segundo amor. Lembrava-se das opiniões das tias, de velhas solteironas, de várias pessoas inteligentes, finalmente de alguns escritores «pensadores do amor» - de todos os lados ouvia a sentença implacável: «A mulher só ama verdadeiramente uma vez.» (…) Não, ela não sentia amor por Stoltz – decidiu- e não podia sentir. Tinha amado Oblomov, esse amor morrera, a flor da vida definhara para sempre. (Oblomov 535)




    Por seu lado, Eça faz a  personagem central do seu romance, Carlos da Maia, auto-recriminar-se  ao descobrir que não passava de um romântico imbecil. E seria tão fácil, desde o primeiro dia no Aterro, ter percebido que aquela deusa, descida das nuvens, estava amigada com um brasileiro! Mas quê! A sua paixão absurda de romântico pusera-lhe logo entre os olhos e as coisas flagrantes e reveladoras, uma dessas névoas douradas que dão às montanhas mais rugosas e negras um brilho polido de pedra preciosa! (Os Maias, 484).E, no diálogo final entre Carlos da Maia e João da Ega, este último faz uma síntese do que fora a vida de ambos, vivida à luz do Romantismo . – É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar a minha vida inteira! Ega não se admirava. Só ali, no Ramalhete, ele vivera realmente daquilo que dá sabor à vida – a paixão.- Muitas outras coisas dão valor á vida…Isso é uma velha ideia de romântico, meu Ega!_ E que somos nós?_exclamou Ega. _ Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão… (Os Maias 714)


    A amizade incondicional entre  Carlos da Maia e João da Ega tem, aliás, um contraponto muito claro na amizade entre Oblomov e Stoltz, também ela ilimitada e total. Tanto num como no outro romance, cada um destes pares de personagens encarna a amizade isenta de competição e invejas, a amizade verdadeira.
   Um outro paralelismo entre as duas obras é a educação a que são submetidas as personagens enquanto crianças. A educação de Oblomov em Oblomovka assemelha-se muito à de Pedro da Maia pelo excesso de protecção de  que ambos são alvo, nomeadamente por parte das respectivas mães. Queria subir à colina, ver para onde fora o cavalo. Dirigiu-se ao portão, mas da janela ouviu-se a voz da mãe:- Ama! Tu não vês que o menino anda ao sol? Leva-o para a sombra; se lhe aquece  a cabeça, vai adoecer, ficar agoniado e não come. Ainda o vais deixar fugir para o barranco! (Oblomov 141)
     Comportamento semelhante tem  Maria Eduarda Runa, mãe de Pedro da Maia. Às vezes Afonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina, agarrava a mão do Pedrinho - para o levar, correr com ele sob as árvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha. Mas a mamã acudia de dentro, em terror, a abafá-lo numa grande manta: depois lá fora o menino, acostumado ao colo das criadas e aos recantos estofados, tinha medo do vento e das árvores: e pouco a pouco, num passo desconsolado, os dois iam pisando em silêncio as folhas secas - o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pai vergando os ombros pensativo, triste daquela fraqueza do filho… (Os Maias ,18)
    Por sua vez, a educação rigorosa de Stoltz, imposta pelo seu pai alemão assemelha-se à educação “à inglesa” a que Afonso da Maia submete o seu neto Carlos, privilegiando a vida ao ar livre, o rigor e a disciplina. Ao libertar-se das lições, corria a devastar os ninhos dos pássaros com os rapazes da aldeia, e por vezes, no meio de uma aula ou da oração, ouvia-se-lhe no bolso o pio de pequenas gralhas. (…)Acontecia também o pai estar sentado debaixo de uma árvore no jardim a seguir ao almoço. A fumar cachimbo e a mãe a tricotar uma qualquer camisola ou a bordar na talagarça; de repente, ouve-se um barulho na rua, gritos e uma multidão de pessoas irrompe pela casa. _ O que se passa?_ pergunta a mãe alarmada._ Pelos vistos trazem outra vez o Andrei_ diz o pai calmamente. Escacaram-se as portas e uma multidão de mujiques, de mulheres e rapazes irrompe pelo jardim. De facto, traziam o Andrei_ mas em que estado: sem botas, com as roupas rasgadas e um nariz partido, o dele ou o de outro rapazinho.(…)A mãe fica em lágrimas, o pai nem por isso, ainda se ri (Oblomov 199) Também Afonso da Maia, para escândalo dos criados e dos amigos da família deixa Carlos brincar com os filhos dos caseiros em Santa Olávia, sujar-se na terra  e fazer ginástica na barra do trapézio. E perante o abade  que timidamente insiste que se “deve começar pelos clássicos e pelo latinzinho”, Afonso expõe a sua teoria: _ Qual clássicos! O primeiro dever do homem é viver. E para isso é necessário ser são e ser forte. Toda a educação sensata consiste nisto: criar a saúde, a força e os seus hábitos, desenvolver exclusivamente o animal, armá-lo de uma grande superioridade física. Tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois… A alma é outro luxo. É um luxo de gente grande…(Os Maias, 63)   
     Mas as semelhanças entre Andrei Stoltz e Carlos da Maia ficam-se pela infância  já que o Carlos adulto se aproxima mais de Oblomov com quem, aliás,  partilha o estatuto social e a cuidada preparação académica, pois tal como ele também Carlos falha o seu projecto de vida. Na verdade, ambos tinham na juventude grandes ambições. Dez anos antes, Oblomov sonhava, como lho recorda Andrei «servir a Rússia enquanto tiver forças, porque a Rússia necessita de braços e de cérebros para a exploração dos seus recursos inesgostáveis (as palavras são tuas); trabalhar para mais docemente descansar, e descansar significa viver outro lado da vida, artístico, mais elegante, a vida dos artistas, dos poetas» (Oblomov 237) Do mesmo modo, Carlos chega a Lisboa, já médico, disposto a uma vida de estudo e investigação e faz instalar um moderno laboratório “ com uma vasta de mesa de mármore e um amplo divã de crina para o repouso depois das grandes descobertas” mas “ não tinha realmente tempo de se ocupar do laboratório; e deixaria a Deus mais algumas semanas o privilégio de saber o segredo das coisas_ como ele dizia rindo ao avô. (Os Maias, 128)
    Assim, e aparentemente, a sociedade portuguesa está tão adormecida como a sociedade russa e ambas fazem murchar todos os sonhos de juventude que depressa se diluem na mediocridade  do quotidiano. É isto que constata Oblomov quando reage às invectivas de  Andrei para que saia da sua indolência: O mundo e a sociedade! Tu, Andrei, provavelmente levas-me de propósito para esse mundo e essa sociedade para que eu perca mais depressa o desejo de lá ir. Vida: que bela vida!(…) Tudo aquilo são pessoas mortas, adormecidas, piores do que eu, esses membros do mundo e da sociedade!(…)  E a nossa juventude, o que faz ela? Não está a dormir enquanto percorre a Avenida Nevski, a pé ou de carruagem, e enquanto dança? Uma contínua e fútil mistura dos dias! (Oblomov 227)  
   É flagrante a semelhança entre este desabafo de Oblomov e o espanto de Carlos, regressado de Paris, ao observar os jovens que passeiam na recente Avenida que substituía agora  o pacato e frondoso Passeio Público: Carlos pasmava. Que faziam ali, às horas de trabalho, aqueles moços tristes de calça esguia? (…) E o que sobretudo o espantava eram as botas desses cavalheiros, botas despropositadamente compridas, rompendo para fora da calça colante com pontas aguçadas e reviradas como proas de barcos varinos. (Os Maias, 702)
   Mas o próprio Carlos não é, afinal, muito diferente desses jovens que observa pois também ele leva uma vida fútil e sem objectivo Vivia, ria, governava o seu faetonte no Bois e como o próprio diz: Em dez anos não me tem sucedido nada, a não ser quando se me quebrou o faetonte na estrada de Saint-Cloud…Vim no «Figaro» (Os Maias, 713)
    Coincidem, deste modo, os dois romancistas na análise e no diagnóstico social que fazem e, se a personagem de Oblomov se entrega caricaturalmente, coerentemente e conscientemente à indolência, rejeitando a ideologia do trabalho que o seu amigo lhe apresenta, por inútil numa sociedade à deriva, também Carlos sofre de uma oblomovite à portuguesa e a sua  existência  é, assim, não menos caricaturalmente reduzida à do « homem rico que vive bem». Nada mais infensivo, mais nulo e mais agradável. (Os Maias, 713)
     Oblomov, o russo vs Carlos da Maia, o português podiam pois, perfeitamente, mudar os seus nomes para Iliá da Maia Oblomov vs Carlos Oblomov da Maia, ambos inúteis, ambos superiores, ambos irremediável e surpreendentemente irrelevantes.
     E trabalhar…que trabalhe o alemão!  

Gondar, 4 de Julho de 2016





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