quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A Casa e o Mundo


Verba volant, scripta manent


Carta enviada por Sandip Babu a Nikhil

por Maria Amélia L. V.Correia


Ahmedabad, 13,Nov/1920
        
   Meu caro irmão Nikhil:


Demorou bastante tempo até conseguir coragem e forças para te enviar esta missiva.
Já deves ter notícias minhas, assim como eu tenho tuas, através do nosso querido amigo comum Rabindranath Tagore. Como é do teu conhecimento fugi de tua casa para escapar à fúria dos muçulmanos, acabrunhado de remorsos pela desgraça que causei em tua casa e em muitas outras, infelizmente.  O meu desejo de expiação e purificação fez com que depois de me ter escondido em lugares inimagináveis, me dirigisse para Shantiniketan onde pedi guarida ao nosso mestre, depois de lhe contar todo mal que tinha provocado. Tanto eu como Tagore ainda desconhecíamos as graves sequelas que resultaram dos ferimentos que te infligiram, assim como a morte do pobre Amulya.  São tragédias que provoquei às pessoas que mais amei e que menos mereciam. Jamais conseguirei livrar-me desta dor.
 O mestre teve longas conversas comigo e repetia sorrindo: vamos transformar um leão num cordeiro. Explicou-me que esta metáfora era inspirada em Nietzsche, filósofo que eu desconhecia, mas de que segundo ele, fora um legítimo seguidor. Depois falou-me em Freud e explicou que eu deveria conseguir uma sublimação dos meus impulsos. Fiquei curioso e li algumas obras destes autores. Deu para entender as brincadeiras do mestre, mas como sabes não são muito perseverante no estudo e fiquei-me por um conhecimento básico destes ocidentais.
 Em contrapartida as Upanishades,  que eram  profundamente estudadas ali, contêm tudo que preciso para meditar e encontrar o  caminho de redenção: Um profundo amor pela humanidade traduzido em boas ações. Tenho tentado este caminho com todas as forças da minha alma, e tu Nikhil és a minha inspiração constante. Foi preciso chegar aqui para perceber a força serena do teu carácter e a grandiosidade e pureza da tua alma.
Em Shantiniketan, não tinha tarefas específicas, ia fazendo tudo o que era necessário para o bom funcionamento da comunidade.
 Em Fevereiro de 1915 Gandhi e a sua família alargada vieram viver connosco. Que homem Nikhil , foi uma  verdadeira iluminação!
A vida dos professores e alunos na comunidade alterou-se completamente. Este homem incentivou-nos a que preparássemos os vegetais na cozinha, varrêssemos os pátios e outros aposentos e de uma maneira geral todos fazíamos com gosto os trabalhos físicos necessários à sobrevivência da comunidade.
Como sabes Gandhi e Tagore, admiram-se profundamente, aliás foi este que lhe atribuiu o título de Mahatma, mas isto não impede de terem visões diferentes em aspetos que eu diria marginais. Imagino-te  Nikhil, eu que tão  bem te conheço, com objeções à conduta de Gandhi muito próximas de Tagore. A um artista, cosmopolita e muito racional como ele, não agrada o que lhe parece uma linguagem religiosa com laivos de irracionalidade, rituais que lhe parecem de automortificação, a rigidez moral, o nacionalismo exagerado, o culto da roca de fiar.
Nikhil, Gandhi é um líder carismático e sabe como chegar à alma dos indianos, não deseja o culto da personalidade, é totalmente abnegado, o que ele já conseguiu é notável! Sigo-o sem qualquer objeção!
Assim quando ele criou este ashram, acompanhei-o desde a primeira hora. Aqui reina o puro espirito Swadeshi.
Problemas não nos têm faltado!...Quando o Bapu impôs aqui o convívio com pessoas de castas inferiores e mesmo com os intocáveis, até Kasturba e Maganlal ameaçaram ir-se embora. Mas pior que isto, os doadores recusaram continuar a financiar o ashram e ficamos sem quaisquer meios para continuar o projeto. Bapu não desistiu. Felizmente Deus é grande e recebemos uma doação anónima que nos permite continuar.  
NIkhil , meu irmão, sou casto, jejuo, medito,  teço, ajudo todos os necessitados que  aqui chegam  e tiro o pó dos pés dos intocáveis em sinal de humildade. Gostaria de o fazer contigo com Bimala com Chandranatah Babu e porque não com todos os servos da tua casa a quem não tratei como mereciam.
Diz a Bimala, tua esposa e guia, que a admiro profundamente e que me perdoe ter-me aproveitado da sua bondade.
 Recebe deste teu irmão um abraço fraterno. Até breve, pois logo que possa dispor de algum  tempo, irei fazê-lo pessoalmente. Teu:
                                       

                                                                                                           Sandip Babu






1 comentário:

  1. É um Sandip idealizado porque redimido aquele que escreve esta fabulosa carta. Infelizmente, os "sandips" que conheci, nomeadamente antes do 25 de Abril, continuaram cegos e arrogantes, sem perceberem que "Só os fracos não se atrevem a ser justos".

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