Verba volant, scripta manent
Carta enviada por Sandip Babu a Nikhil
por Maria Amélia L. V.Correia
Ahmedabad, 13,Nov/1920
Meu
caro irmão Nikhil:
Demorou bastante tempo até conseguir coragem e forças para
te enviar esta missiva.
Já deves ter notícias minhas, assim como eu tenho tuas,
através do nosso querido amigo comum Rabindranath Tagore. Como é do teu
conhecimento fugi de tua casa para escapar à fúria dos muçulmanos, acabrunhado
de remorsos pela desgraça que causei em tua casa e em muitas outras,
infelizmente. O meu desejo de expiação e
purificação fez com que depois de me ter escondido em lugares inimagináveis, me
dirigisse para Shantiniketan onde pedi guarida ao nosso mestre, depois de lhe
contar todo mal que tinha provocado. Tanto eu como Tagore ainda desconhecíamos
as graves sequelas que resultaram dos ferimentos que te infligiram, assim como
a morte do pobre Amulya. São tragédias
que provoquei às pessoas que mais amei e que menos mereciam. Jamais conseguirei
livrar-me desta dor.
O mestre teve longas
conversas comigo e repetia sorrindo: vamos transformar um leão num cordeiro. Explicou-me
que esta metáfora era inspirada em Nietzsche, filósofo que eu desconhecia, mas
de que segundo ele, fora um legítimo seguidor. Depois falou-me em Freud e
explicou que eu deveria conseguir uma sublimação dos meus impulsos. Fiquei curioso
e li algumas obras destes autores. Deu para entender as brincadeiras do mestre,
mas como sabes não são muito perseverante no estudo e fiquei-me por um
conhecimento básico destes ocidentais.
Em contrapartida as
Upanishades, que eram profundamente estudadas ali, contêm tudo que
preciso para meditar e encontrar o caminho de redenção: Um profundo amor pela
humanidade traduzido em boas ações. Tenho tentado este caminho com todas as
forças da minha alma, e tu Nikhil és a minha inspiração constante. Foi preciso
chegar aqui para perceber a força serena do teu carácter e a grandiosidade e
pureza da tua alma.
Em Fevereiro de 1915
Gandhi e a sua família alargada vieram viver connosco. Que homem Nikhil , foi
uma verdadeira iluminação!
A vida dos professores e alunos na comunidade alterou-se
completamente. Este homem incentivou-nos a que preparássemos os vegetais na
cozinha, varrêssemos os pátios e outros aposentos e de uma maneira geral todos
fazíamos com gosto os trabalhos físicos necessários à sobrevivência da comunidade.
Como sabes Gandhi e Tagore, admiram-se profundamente, aliás
foi este que lhe atribuiu o título de Mahatma, mas isto não impede de terem
visões diferentes em aspetos que eu diria marginais. Imagino-te Nikhil, eu que tão bem te conheço, com objeções à conduta de
Gandhi muito próximas de Tagore. A um artista, cosmopolita e muito racional
como ele, não agrada o que lhe parece uma linguagem religiosa com laivos de
irracionalidade, rituais que lhe parecem de automortificação, a rigidez moral,
o nacionalismo exagerado, o culto da roca de fiar.
Nikhil, Gandhi é um líder carismático e sabe como chegar à
alma dos indianos, não deseja o culto da personalidade, é totalmente abnegado,
o que ele já conseguiu é notável! Sigo-o sem qualquer objeção!
Assim quando ele criou este ashram, acompanhei-o desde a
primeira hora. Aqui reina o puro espirito Swadeshi.
Problemas não nos têm faltado!...Quando o Bapu impôs aqui o
convívio com pessoas de castas inferiores e mesmo com os intocáveis, até
Kasturba e Maganlal ameaçaram ir-se embora. Mas pior que isto, os doadores recusaram
continuar a financiar o ashram e ficamos sem quaisquer meios para continuar o projeto.
Bapu não desistiu. Felizmente Deus é grande e recebemos uma doação anónima que
nos permite continuar.
NIkhil , meu irmão, sou casto, jejuo, medito, teço, ajudo todos os necessitados que aqui chegam
e tiro o pó dos pés dos intocáveis em sinal de humildade. Gostaria de o fazer
contigo com Bimala com Chandranatah Babu e porque não com todos os servos da
tua casa a quem não tratei como mereciam.
Diz a Bimala, tua esposa e guia, que a admiro profundamente e
que me perdoe ter-me aproveitado da sua bondade.
Recebe deste teu
irmão um abraço fraterno. Até breve, pois logo que possa dispor de algum tempo, irei fazê-lo pessoalmente. Teu:
Sandip Babu
É um Sandip idealizado porque redimido aquele que escreve esta fabulosa carta. Infelizmente, os "sandips" que conheci, nomeadamente antes do 25 de Abril, continuaram cegos e arrogantes, sem perceberem que "Só os fracos não se atrevem a ser justos".
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