segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Uma História de Amor e Trevas

Era uma vez...

por Margarida Mouta


"Era uma vez uma aldeia abandonada por todos os seus habitantes. Até pelos cães e gatos. Até os passarinhos a deixaram. E durante muitos anos a aldeia ficou assim silenciosa e deserta. A chuva e o vento arrancaram os telhados de colmo, a neve e granizo abriram brechas nas paredes das cabanas, as hortas secaram e apenas as árvores e arbustos continuaram a crescer, mas como não havia quem as podasse foram ficando cada vez mais emaranhadas. Uma noite, chegou à tal aldeia um viajante que se enganara no caminho. Bateu à porta da primeira cabana e eis que de súbito, ao executar o gesto, veio à mente do homem a imagem da sua avó 
Shlomit. Nunca a mão da avó, purificada por anos de imersões de água a ferver, pousaria sobre aquele batente. 
Pelo menos não sem que antes o avô Alexandre o tivesse pulverizado com DDT. No rosto do viajante 
esboçou-se então um quase sorriso. E absurdamente, ouviu-se a si mesmo a murmurar:  
O Levante está cheio de micróbios. Pobre avó Schlomit. Quantas vezes repetira ela aquela frase? 
Agora, no silêncio da aldeia deserta, a sua voz soara-lhe exatamente com a entoação com que a avó 
a proferia. Parecia que estava a ouvi-la, impondo a sua autoridade no seu robe de seda florido todo 
abotoado e os cabelos atados com um lenço verde em forma de borboleta, empertigada e
rígida como a diretora de um internato para meninas de boas famílias.O Levante está cheio de micróbios.” Estranhamente, parecia-lhe agora que aquela frase revelava uma verdade interior, mais íntima do que a mania das limpezas, uma verdade reprimida e invisível.
Olhou em volta. O vento cessara de soprar e a escuridão era agora quase total. O negrume da noite, porém,
em lugar de acentuar o sentimento de solidão que o assolava desde que partira, trazia-lhe agora uma certa paz. Uma quietude na qual era quase agradável mergulhar. Empurrou devagar a porta que cedeu ao peso da sua
mão. Sentiu de imediato o cheiro das coisas abandonadas. Ao forte e acre odor do mofo associava-se um aroma familiar que lhe vinha do lado mais recôndito da sua memória. Livros! Aqui há livros! – Pensou. Está alguém em casa? – Perguntou, elevando a voz. Mas do interior da casa não lhe chegou qualquer ruído. Adentrou-se no silêncio e avançou com prudência, deixando que os seus olhos se habituassem à escuridão. Penetrou num compartimento estreito e tateou aquilo que lhe pareceu ser uma mesa coberta por um oleado. Rodeou o todo com as mãos até encontrar uma gaveta. Sentiu a rugosidade do puxador e fê-lo mover-se com força na sua direção. Porém, o tempo e a humidade tinham-se se encarregado de fazer inchar a madeira e a gaveta negava-se a ceder. Puxou com mais força até conseguir alcançar uma pequena abertura. Introduziu então a mão pela ranhura e, sob a pressão dos seus dedos, a gaveta abriu-se por completo. Apercebeu-se de imediato da existência, no seu interior, de um pequeno rolo cilíndrico de cera. Lembrou-se que na cozinha estreita de chão abaulado da casa dos seus pais, ao lado do fogão tinham sempre duas caixas de fósforos: uma para os novos e outra para os utilizados que, por economia, serviam para passar o lume de um bico para o outro. Estendeu a mão na escuridão e os seus dedos descobriram duas caixas. Abriu a que estava mais próxima, riscou um fósforo e alegrou-se por ter acertado à primeira. Acendeu a vela e a luz tremeluzente permitiu-lhe distinguir as paredes cobertas de fuligem da cozinha. Havia três bancos de vime, à roda da mesa coberta por um oleado que em tempos devia ter sido florido. Os seus passos levaram-no para o exterior do cubículo, mas ao chegar ao aposento contíguo, tropeçou numa pequena pilha de livros. Tossiu, esfregou os olhos tentando lutar contra a poeira e com a mão livre ergueu a vela. Apercebeu-se então que a superfície total da cabana não ia além dos 30 metros quadrados. O pé-direito era baixo, mas ao contrário do que seria de esperar, ele não parecia sentir-se acanhado. O seu corpo acomodava-se ao espaço como se este sempre lhe fosse familiar. Por breves segundos interrogou-se sobre a razão daquele sentimento de pertença ao lugar, mas bastou-lhe um olhar à sua volta para perceber porquê. Os seus olhos detiveram-se num sofá com algumas almofadas puídas e nas estantes que se erguiam até ao teto. Tal como o espaço que servia de quarto dos pais durante a noite e de sala de jantar e de estar durante o dia, também aquele parecia ser um lugar multifuncional: quarto, sala, escritório, biblioteca… Passou os dedos pelas lombadas cobertas de pó e viu-se, de repente, transportado para a atmosfera do pequeno rés-do-chão do bairro de Kerem Avraham onde nascera e passara a totalidade da sua infância e da sua adolescência até ao ano em que se rebelara e decidira viver no Kibutz Houlda.
Lá estavam eles, os livros cujo aroma familiar farejara desde que penetrara naquela casa. Lá estavam eles! Florestas de palavras, cabanas de palavras, prados de palavras onde tantas e tantas vezes se perdera. Lá estavam eles! Dedicados substitutos dos irmãos, das irmãs, dos primos e dos amigos que não tivera na infância. Lá estavam eles! Passaportes sem visto que o transportavam para mundos onde não havia pátios fustigados pelos ventos do deserto nem telhados de zinco colados às casas de pedra, nem interiores com corredores escuros e asfixiantes. Lá estavam eles, a lembrar-lhe os seus tempos de menino, em quem todas as esperanças eram depositadas. “Amos, o que é que queres ser quando fores grande?” Quero ser um livro!” Era a resposta desconcertante que dava aos mais velhos. Desviou o olhar para a pequena cozinha e reviu mentalmente o belo rosto da sua mãe, Fania, iluminado pela fraca claridade que provinha da frincha entreaberta. Lá estava ela! Ela, com as suas estranhas e nebulosas histórias que ia desfiando enquanto arranjava a hortaliça ou escolhia as lentilhas. Histórias assustadoras que nunca começavam no princípio, nem acabavam bem, mas que, flutuando numa semi-obscuridade, andavam à roda de si mesmas, emergiam de repente do nevoeiro, espantando-o, causando-lhe arrepios na espinha e o deixavam fascinado.
O homem sentiu, de repente um enorme cansaço. Pousou a mochila no sofá, despiu o casaco, bebeu um pouco de água do cantil e preparou-se para saborear o falafel que Nilli, a sua mulher lhe preparara com a ternura e a cautela que lhe eram habituais. “Sei bem como tu és, Amos. Dizes que será um passeio curto, mas depois começas a deambular por aí, enganas-te no caminho ou esqueces as horas. Sabe-se lá quando voltarás… não me espantaria nada que só te visse chegar amanhã!”  Nilli! O prilampo. O gerador, a central elétrica que permanecia sendo a sua chama e que melhor do que ninguém conhecia e iluminava os contornos do que lhe ia na alma. O pão de pita e as bolinhas fritas de grão-de-bico apaziguaram a sua fome, mas sentiu-se, de repente, derrotado por uma estranha fadiga. Não era o peso dos seus 62 anos. Não era o cansaço da longa caminhada que o trouxera até ali. Era aquela casa, aquela atmosfera que o empurrava de forma atroz e irresistível para uma verdade que sempre calara dentro de si. A lembrança dolorosa do suicídio da mãe – um ato que ele jamais cessara de questionar – doeu-lhe como um ferimento de guerra nunca cicatrizado. Ao mesmo tempo, não pôde evitar um certo ressentimento ao evocar a figura do seu pai, um homem que tinha um fraco pelo sublime. Sacudiu o pó das almofadas e recostou-se no sofá. Na parede em frente havia um quadro com uma moldura dourada. As tintas tinham-se esbatido, mas pareceu-lhe vislumbrar uma figura feminina num ambiente campestre. Uma pastora, talvez? Sim, era isso. Devia ser uma pastora. Fechou os olhos e sentiu-se tentado a apagar a vela e a deixar-se adormecer. Mas uma inquietação obsessiva começou a avolumar-se no seu cérebro. O quadro parecia querer dizer-lhe algo. Mas o quê? Doía-lhe a cabeça e a fronte estava perlada de suor. Aquela pintura de tons esmaecidos estava associada à sua mãe, sem dúvida. Mas porquê? Não se lembrava da existência de qualquer original ou mesmo reprodução na casa dos pais. De repente, como que impelido por uma mola, deu um salto. Começou a ouvir dentro de si a voz da tia Sónia, irmã da sua mãe, evocando a reação de fúria que Fania tivera perante uma pintura semelhante àquela. Ele e a tia tinham mantido havia pouco, uma longa conversa feita de evocações e reminiscências. De acordo com a velha tia Sónia, a sua mãe, que na altura deveria ter uns dezasseis anos, denunciara, exaltada a falsidade de um quadro existente lá em casa que retratava uma pastora com rosto de anjo e vestes de seda. “Disse que [o quadro} edulcorava a realidade. Que na vida os pastores andavam vestidos de trapos e não com roupas de seda, que tinham feridas de frio e de fome na cara e não rostos de anjo, e cabelos sujos com piolhos e desgrenhados e não caracóis como aqueles. E que ignorar o sofrimento era quase tão mau como causá-lo.” Um breve arrepio sacudiu o homem.  Então era isso que a casa lhe estava a dizer: ignorar o sofrimento era quase tão mau como causá-lo.
Persuadira-se de que quando mudara o seu nome de Klauzner para Oz, o semantismo do novo nome hebraico (que significava Luz) acabaria por lhe trazer a claridade desejada, ajudando-o a esquecer as trevas. Apercebia-se agora que tal não acontecera. Deu-se conta que durante muitos anos tinha vivido com esse ressentimento e essa dor. Tinham sido muitos anos a detestar o pai pelo que ele fora e a mãe pelo que tinha feito. Tinham sido muitos anos. Anos de mais. Chegara a hora da reconciliação e do perdão.
Foi com ternura que lembrou os reptos para contar histórias que a mãe lhe lançava na sua infância: “Queres continuar?” “Sim, quero!” Tinha chegado a sua vez de continuar a história. Já tinha escrito outras histórias, mas agora era diferente. Iria prosseguir com palavras, a existência tumultuosa da sua família. Prepara-te, Amos – disse para consigo. Vai ser um longo romance. Mantém-te no registo que te é peculiar: o da autobiografia. De vez em quando, sempre que necessário, terás que fazer incursões pela História, remontar aos tempos em que os judeus viviam na Ucrânia ou na Lituânia. Provavelmente não seguirás uma ordem cronológica. Falarás com ternura e humor daqueles que a Europa rejeitou e que o Oriente recebeu com hostilidade, daqueles que foram marcados pelos seus próprios dramas íntimos, pelas suas ilusões perdidas, pelos seus sonhos destroçados. Falarás da tua própria génese como escritor. Da tua rejeição do meio intelectual, da tua escolha pelo kibutz e finalmente do teu retorno ao mundo das palavras e dos livros. E falarás dela. Porque ela será a pedra angular do teu livro. Falarás dela com ternura, com delicadeza, com amor. É isso: será uma história de Amor e Trevas.

O homem sentia agora uma enorme paz. Pouco a pouco o cansaço venceu-o. Cobriu-se com o seu próprio casaco e mergulhou num sono profundo. Nilli tinha razão. Só o veria regressar no dia seguinte.
 Acordou às primeiras horas do amanhecer, sentindo-se com fome, mas reconfortado. Não poderia jurar, mas pareceu-lhe ouvir lá fora, o pássaro Elisa acompanhando o seu despertar com o seu trinado beethoveano. Desta vez o seu “Ti-da-di-da-di…”era um canto especial de exaltação, saudando uma luz que tinha finalmente atravessado a imensidão das trevas. 


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