Livros e palavras
por António Nabais
Com um pai maníaco da etimologia e dos arquivos e com uma mãe cansada de viver mas não de ler, livros e palavras viriam a ser as fundações da vida do narrador.
Nas pp. 337-338, o discurso da mãe sobre o carácter canino dos livros é extraordinário. O livro é um companheiro fiel, sempre disponível, mesmo que desprezado por muito tempo.
As palavras, para o narrador, não servem tanto para significar a realidade como para fugir dela. Na p. 173, são as palavras que garantem a evasão: “O que me rodeava não contava. O que contava eram as palavras." A palavra narrativa, depreende-se. Talvez se possa, aqui, com propriedade, substituir o provérbio “As palavras leva-as o vento” por “As palavras são o vento”.
Nas pp. 301-302, o escritor, no presente, na noite em que escrevem todos os escritores, nasce uma alegoria com que, de modo entre o poético e o onírico, Oz pretende explicar para que serve a escrita, ou melhor, como acontece a escrita, já que parece ser algo que não se domina, antes domina quem escreve. A palavra, a escrita, aqui, já não é evasão; a palavra serve para voltar ao passado, seja porque o passado se impõe seja porque o escritor o procura.
Na relação entre o autor e as palavras surge uma terceira figura seminal, para além dos pais: a professora Zelda. Com ela chegam a perífrase e a metáfora. O fascínio daquilo que Zelda dizia era tal que o narrador, na p. 350, afirma o seguinte: “Era como se falasse uma língua afastada do hebraico e todavia diferente e impressionante.” Se, antes de Zelda, as palavras serviam para fugir da realidade, agora serviam para modificar a própria realidade, a ponto de os alunos acreditarem que a professora podia apagar o Purim.
O fascínio dos alunos pela professora levava-os a transformarem-se em pequenos cyranos, já que ela se dedicava a representar o papel de Roxanne, desejosa de ser seduzida pelas palavras dos alunos.
O primeiro amor de um jovem ciente do ou crente no valor das palavras só podia ser esta mesma professora. Mesmo tratando-se de um amor não isento de erotismo, o primeiro aspecto a ser referido é a voz, veículo das palavras: “Gostava da cor da voz dela” (p. 353). Ao longo do resto do capítulo ainda é possível ler mais passos sobre o efeito das palavras de Zelda, nas pp. 357 e 361.
O narrador apercebe-se, no entanto, de que as palavras também podem ser excessivas, como se pode ver na p. 351: “Naquela época, em Jerusalém, as pessoas não se ouviam umas às outras.” E se calhar nem se ouviam a elas próprias”. É neste contexto que Zelda apresenta, ainda, outra diferença: sabia ouvir e sabia mandar calar, exactamente para combater o excesso de palavras.
No final deste capítulo, volta a surgir o valor dos livros. Num contexto em que escasseavam os meios de comunicação, em que a vida estava suspensa, em que os judeus estavam “rodeados pelos montes, as grutas, os desertos, os Ingleses, os Árabes, a Resistência […]” (p. 365), os livros “eram o fio de vida ténue que ligava o nosso submarino ao mundo exterior.” (idem).
É no meio dos medos passados, presentes e futuros, no meio dos efeitos da Shoa, do recolher obrigatório ou da iminência dos ataques árabes, que o narrador descobre que quer ser um livro, por sentir que essa transformação poderá assegurar-lhe a sobrevivência. Termina, aqui, um percurso possível na relação entre o narrador e as palavras: aprendeu a usá-las para se evadir; com Zelda, percebeu que as palavras poderiam modificar a realidade; ao querer ser livro, percebe que a solução está em ser palavra, porque só assim viverá para sempre. Não seria a primeira vez que alguém notaria que a paronímia livro/livre faz o sentido quase todo.
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