domingo, 12 de junho de 2011

N Tua Face_ Luc

                                        
LUC = Lucrécio? 
por José Melo

            Uma das figuras centrais do romance “Na Tua Face”, não porque “intervenha” demasiado na acção – em grande parte do desenvolvimento dela Luc entra e sai, aparece e desaparece, é sempre um pretexto, uma espécie de empecilho, um “havemos de falar”, “eu tenho de lhe dizer” – mas porque ele é o centro da tragédia que se enovela neste romance-problema. Trata-se duma sucessão de frustrações: a) amores não realizados ou apenas os possíveis – Ângela em vez de Bárbara/Babi; b) de filhos –Luz e Luc – tidos por atacado como meras “funções fisiológicas” (o ideal era serem gémeos, diz-se algures, para tudo ficar resolvido, como um dossiê que se fecha na vida); c) de um “artista” que nem é médico nem é artista, que anda “há séculos” a tentar pintar um quadro, coisa grande, diluviana, cheia de “conteúdo”, que tenta sair daquilo que considera ser a  banalização dos “bonecos” para o jornal; d) de um marido que se sente intelectualmente diminuído perante a cultura clássica da esposa; e) de um ateísmo “estético” que chega a ser quase sacrílego, de muitos outros itens que fazem da vida quotidiana um sentido enfadonho de um qualquer Sísifo que transporta o seu rochedo como um fardo cheio de fealdade, de horror, de referências ao não-belo, mas que deixa entrever alguma graciosidade nostálgica por Coimbra, pelo mar, pela memória do passado, por alguns arquétipos do mundo rural, etc.
            Luc é um herói trágico: morre jovem, porque decide livremente assumir o seu acto suicidário, quando paradoxalmente, tudo levaria a pensar que, em teoria, Luc seria igual a Lucrécio, o autor latino de “De rerum natura”, assemelhado a ele no facto possível do suicídio de ambos, mas distanciado no concernente a alguns aspectos da filosofia do Epicurismo: aqui Luc é tudo menos epicurista, quando aquele defendia como prazer supremo uma vida longa e uma racionalização dos prazeres, ainda que partilhando o lado enigmático da existência. Na Conferência de Ângela na reitoria que Luc partilha com a mãe, sem ir assistir, porque “já conhecia”, como confessou diante da irmã Luz que detestava a paixão da mãe por essa sua paixão adúltera –“andava então muito inquieto com o acne metafísico da sua juvenilidade” (cit. final da pg. 141), diz ela a certa altura: “Lucrécio é o grande profeta da nossa hora. O homem, disse ele, é um doente que ignora a causa do seu mal, mas ele não a ignorava e deu-lhe remédio. E o grande remédio era sobretudo entender que nada é para entender e o homem também.” (ver cit. seguinte, pg. 143). E mais à frente, há uma referência ao “único problema real do homem”: a MORTE  (pg. 145) E para ela só há uma saída digna: o suicídio, ou seja, “o triunfo do homem sobre o destino” (pg. 145). Teses caras ao existencialismo de Heidegger ou de Sartre – “O homem é um ser para a morte”…Por isso, nada de ilusões, de paixões, de deuses…

sábado, 4 de junho de 2011

Na Tua Face_ Bárbara

EASR – Clube de Leitura – Maio 2011
Bárbara
 por Luz Rosmaninho 
Ninguém quis ser bárbara. Nem mesmo Bárbara. Ou quando quis não foi e o desejo não ficou.
Babi não foi mais do que memória de uma juventude ficcional, idealizada, nessa Coimbra também ela cidade‐memória, “tempo‐espaço de unidade original do sonho, do amor, do desassossego das grandes questões abertas ao infinito”1.
Fui então à procura de Bárbara. Encontrei‐a no mito da juventude que aqui tem esse tempo e
esse espaço próprio – Coimbra. É aí que o autor constrói o mito da mulher amada – essa
Bárbara, lado B. A tua face. Relâmpagos, iluminações que trazem aparições. Relâmpagos que
vão e vêm, que iluminam pedaços de vida que fazem as vidas. Ou flashes de Luz na sua
fotografia. Mas é na ausência de luz que se fixam as revelações.
Daniel, na sua forma de ser tímido, precisa de viver e com Ângela vive; Bárbara entretece‐lhe a
vida dando‐o a Ângela, não inteiro, não ele, mas o que dele é possível ali estar.
Ângela e Bárbara são assim A/B, duas faces da mesma moeda. O presente passado e o passado
sempre presente. Uma só em duas – a heteronímia do amor, como referiu Isabel Pires de
Lima?

Na Tua Face_ De Rerum Natura


De Rerum Natura

por António Nabais
De Rerum Natura, I, 1-9

Aeneadum genetrix, hominum divomque voluptas,
alma Venus, caeli subter labentia signa
quae mare navigerum, quae terras frugiferentis
concelebras, per te quoniam genus omne animantum
concipitur visitque exortum lumina solis:              
te, dea, te fugiunt venti, te nubila caeli
adventumque tuum, tibi suavis daedala tellus
summittit flores, tibi rident aequora ponti
placatumque nitet diffuso lumine caelum.                                                                  

Criadora dos romanos, volúpia dos homens e dos deuses,
alma Vénus, que, por baixo dos astros errantes do céu,
povoas o mar navegável e as terras frugíferas,
porque todos os animais são concebidos por ti
e graças a ti vêem a luz do sol nascente:
de ti, deusa, de ti fogem os ventos, de ti fogem as nuvens do céu,
quando chegas; a ti a suave terra engenhosa
te dá flores, para ti riem as águas do mar
e o céu plácido derrama uma luz benfazeja.


Lucrécio terá nascido entre os princípios do século I e morreu em 55 a. C. O poema De Rerum Natura teve como objectivo a divulgação das ideias epicuristas, uma corrente filosófica que mereceu a resistência e a crítica de Cícero, em particular, e dos romanos, em geral. Na realidade, as bases do epicurismo, ao contrário do estoicismo, eram contrárias à mentalidade romana, uma vez que conduziam ao utilitarismo e ao individualismo. Numa versão mais simplista, o epicurismo era visto como uma defesa do prazer puro e simples, versão que, aliás, se foi propagando até aos dias de hoje: esse excesso hedonista era contrário ao culto do mos maiorum, o conjunto de valores ancestrais que obrigava os verdadeiros romanos a dedicarem-se ao serviço público e a colocarem-se à disposição da pátria.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Na Tua Face _ O Belo, O Horrível, a Arte

O belo, o horrível, a arte em Na tua face de Vergílio Ferreira


Les Demoiselles d'Avignon

Viditque Deus cuncta quae fecerat et erant valde bona, Gênesis (I, 31)
                (E viu Deus todas as coisas que tinha feito e eram muito boas)

 
                                      
                                                                                                                                                                   
Em Na tua face, Vergílio Ferreira reflecte sobre a natureza do belo e do feio, sobre a sua relatividade e medita sobre a subjectividade e as ‘oscilações’ do gosto.     
Daniel resume assim a sua filosofia e a sua concepção de beleza, uma sua teoria em que a fealdade é um dos fundamentos
 Tenho uma filosofia da fealdade, vou pensá-la a sério para caber na ordem da vida.Porque o feio não existe.” (p. 20). “Uma filosofia que meta tudo no mesmo saco desde o mais alto que se chama a beleza virtude perfeição, até ao mais baixo que se chamaordinaríssimo e excrementício.” (p. 69)“Que é ser bonito?” (p. 24), “Que é ser feio?” (p.25).Para  Daniel a beleza é algo que se relaciona com a inocência, a pureza de infância, com o   sagrado que se perdeu no homem. Por isso “Queria ir a Penalva  e entrar na catedral deserta,    iluminada dos vitrais. E reabsorver em mim o sagrado da vida. A beleza, pois, e o que é? Aprender a verdade do ser que tem a beleza no infinito.” (p. 26).

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Na Tua Face_ Daniel


Daniel 
 por Conceição Rocha  
Ângela amou-o imaginando-o como Lucrécio recitando o Poema
O Daniel de Na tua face pareceu-me um jogador do jogo das escondidas, mas num espaço completamente claro. O que permite a escondida não são buracos, alçapões ou obstáculos físicos como aqueles que as crianças utilizam para se esconderem, mas ambiguidades, interpretações, labirintos mentais que D. vai percorrendo enquanto constrói e desconstrói uma narrativa sobre si mesmo, a sua família e a diáfana Bárbara, ponto de chegada e sujeito do desejo.  

Daniel é um gato, um felino doméstico. Como este, move-se em relativo silêncio num espaço familiar ordenado, onde foi ter por uma escolha passiva, mas não destituída de aceitação. Aí participa com o envolvimento físico mínimo indispensável, mas com o olhar arguto, penetrante, que utiliza o real como pretexto para o sobrepor e envolver com inquietações, interrogações, efabulações que dão sentido a uma vida solitária, a única que D. é capaz de gerir com eficácia. Da solidão extrai o melhor dos sumos, e creio que isso só mesmo os gatos e os seus similares humanos o conseguem com sucesso: a ficção, o transportar os factos para o outro lado de si próprios, sem ter que mexer um só músculo nesse esforço, sem ter mais do que dar uns passos numa ou outra rua, casa ou praia. D., como gato que se preza, sabe exactamente o que quer: quer para si uma certa indefinição. Hesitar, não se decidir, implica que o outro nunca se aproprie de si pelo conhecimento, pela previsibilidade. D. atravessa a vida-romance, dramas e mesmo tragédias, num silêncio emocionalmente contido, só quebrado pelo pensar alto que é a escrita em primeira pessoa. Mesmo aí só se expõe o suficiente para que conheçamos factos através de pessoas – Ângela, a latinista cegueta, os filhos, encaixados nas suas específicas infelicidades e Bárbara, o motivo primordial de tudo.  Perante eles, D. é um  vai-vem de inclusão e fuga, sem precisar de se movimentar muito para além da sua não-pintura, da sua não-medicina, da sua não-paternidade, da sua não-maritalidade, da sua desejada, imensa Bárbara,  totalmente ficcional mesmo que exista e que se imagine dentro dela o drama de uma maternidade desrealizada.