O Paraíso existe e é mesmo na outra esquina
Vlad
Um dos meus melhores amigos é polaco e chama-se Wlodzimierz.
Com um nome destes, rapidamente passou a Vladimir, nome com outras ressonâncias, e a Vlad para os mais íntimos.
Há anos foi para a cidade da Praia, em Cabo Verde, leccionar na Universidade Piaget.
É amante do mar e dos desertos. Todos os anos passa algum tempo no Mali, na Mauritânia ou no Níger, junto dos seus amigos Tuaregs. “Para limpar a alma”, diz ele.
Quando lhe chamamos a atenção para os riscos dessas expedições, responde calmamente: “qui nada”…
Nos tempos livres vai para o mar caçar tubarões, actividade que já tive o prazer de partilhar com ele.
É em casa do Vlad, da Rosa e da Cláudia, filha de ambos, que tenho passado alguns Natais e passagens de ano. A Rosa é caboverdiana do Norte, da ilha de Santo Antão.
São a minha família africana.
Diria mais: toda a família do Vlad e da Rosa são a minha família africana.
Perpétua
A irmã da Rosa, Perpétua, que vive lá para os lados de Terra Branca, também me acolhe como se de família se tratasse. Adepta fervorosa do F.C. do Porto, nunca se esquece de me pedir para dar cumprimentos ao marroquino Tarik, à época meu vizinho e amigo.
O mais velho dos três filhos de Perpétua, Helton, fica tempo sem fim a ouvir no meu i-pod a música de que mais gosta: “rap” e “hip – hop”, que lá coloco de propósito para esse efeito.
E sonha com a América.
Quando vou a casa de Perpétua, fico tempos infinitos a olhar para uma fotografia do seu pai, pendurada na parede. É uma fotografia antiga, com as cores a desbotarem a cada ano que passa, e não sei o que mais me fascina: se a fotografia em si mesma, ou a estranha semelhança com a fotografia de um velho na capa de um dos discos de jazz de que mais gosto: “Song for my Father”, de Horace Silver, também ele descendente da caboverdianos.
O homem da capa é o pai de Horace Silver.
Perpétua gosta de viver numa festa permanente.
Nesse fim de ano de 2009 a festa não parou: a Cláudia fez anos no dia de Natal, e dois dias depois casou a sobrinha de Perpétua, vinda expressamente do Canadá para o efeito. O noivo, de nome Belo, tem uma característica peculiar: deve ser o único caboverdiano que não sabe dançar. Esse facto ia-lhe custando o casamento logo no dia em que casou. Mas isso seria outra história.
Quim, o pescador
Na tarde do último dia do ano, depois de irmos ao mar, tínhamos passado por casa de Quim, o pescador, e de Zula, a sua mulher, que cuidava do bebé nascido poucos dias antes. A sua casa situa-se na encosta da montanha que protege Porto Mosquito, pequena localidade perto da Cidade Velha.
O pescador Quim tem uma deusa: chama-se Carolina, é branca e loira, de olhos azuis, e é do Porto. Conheceu-a numa ida ao mar a fazer mergulho com o Vlad.
Quim diz com frequência: “Vlad, arranja-me uma mulher branca que eu arranjo-te tubarão”.
Quando Quim soube que sou do Porto, insistiu em enviar um beijo para Carolina. Quando mo pediu pela última vez, à despedida, batendo no vidro do jipe, pensei na forma como Quim pensaria que local é o Porto. Eu não conhecia Carolina nenhuma. Ou melhor, conhecia várias, mas não a Carolina, deusa do Quim.
No entanto, e como a vida por vezes é surpreendente, mais do que qualquer ficção, não passaram mais de quinze dias depois de minha chegada para ter oportunidade de conhecer a dita Carolina. E foi numa circunstância peculiar: num funeral.
E não era uma deusa.
Konstantin, o alemão
Konstantin Richter é o vizinho mais próximo e colega do Vlad.
Brinco com ele ao chamar-lhe a atenção para o seu apelido: o mesmo de Miroslav, o músico, de Gherard, o pintor. Que linhagem!
Faz um trabalho de levantamento arqueológico na Cidade Velha. E tem como episódio mais significativo da sua vida uma viagem à volta do Mundo na “Sagres”. Como contrapartida, teve de realizar um diário gráfico, trabalho que desenvolveu com entusiasmo e algum talento.
Tem saudades de Portugal e do tempo em que foi colega do Herman José no Colégio Alemão de Lisboa, onde o seu pai foi director.
Na sua pequena casa (a mais desorganizada e confusa que vi em dias da minha vida) tem um piano vertical que toca de forma divina. Não esquecerei a noite em que, emocionado, tocou para mim Liszt, Chopin e Schubert, enquanto lá fora, o grande jacarandá que quase tapa a janela, filtrava o luar e o vento.
A companheira de Konstantin, Isabel, nasceu em Alcácer do Sal e cresceu em Havana e Moscovo.
Tinha voltado recentemente do Egipto, onde, dizia, tinha entrado sozinha numa das grandes pirâmides e tivera um encontro com Cleópatra.
Na última noite do ano, à hora do jantar, bateu à porta de Vlad. Só. E perguntou se podia recitar poesia.
Pegou num dos livros da estante e leu poemas de Emily Dickinson. Ela sabia que é uma das escritoras de que mais gosto.
No fim, deu-me um pequeno frasco com uma essência forte, quase insuportável. Explicou-me que era o perfume de Cleópatra.
O pequeno frasco era tipicamente árabe, de gargalo muito alto, e a servir de tampa tinha um pouco de estanho de um maço de tabaco.
Não tinha como transporta-lo.
Caíra a noite profunda, pesada (também dentro da alma da Isabel. Estava doente).
O pequeno frasco acabou num descampado onde os únicos habitantes eram uma cadela e os seus quatro cachorrinhos.
Fim de ano (o Paraíso na outra esquina)
Em Cabo Verde as pessoas são amáveis e calorosas.
Pelas festas de Natal e fim de ano, em qualquer lugar que se entre e seja qual for a ilha onde se esteja, a “banda sonora” é sempre a mesma: Luiz Morais, grande músico já falecido, formado na vizinha Dakar, tocando a seu clarinete. Um som dolente e melancólico.
Nessa passagem de ano, resolvemos ir a um bar com música ao vivo, coisa frequente em Cabo Verde.
Depois do jantar, dirigimo-nos em transporte público (para bebermos à vontade, dizíamos) para a cidade – o Vlad e família vivem na periferia.
Rapidamente anoiteceu, e soprava um vento leste, fresco e com cheiro a sal, vindo do deserto ali tão próximo.
E o inesperado aconteceu: andamos tempos infinitos a pé, revezando-nos a levar a Cláudia ao colo. Éramos um grupo peculiar: um polaco branco e loiro (mas que se diz preto por dentro), uma caboverdiana, e um português, mais uma criança loira de feições africanas…
E não encontrávamos um local com música ao vivo…parecia impossível!
Passou muito tempo.
Já a hora ia tardia, e nós à deriva pelos bairros cidade.
Chegamos a um largo de terra batida.
Surgidos da noite e da poeira que o vento constante levantava, de forma inesperada e silenciosa, passam rapidamente por nós três homens de camisa branca, em passo apressado, transportando instrumentos de sopro: um saxofone, uma trompete e um clarinete. Brilhavam na escuridão.
Nem tivemos tempo de lhes perguntar para onde iam. Sumiram do outro lado da praça.
Perguntamos a uma menina que dava banho ao irmãozinho à porta de casa, para onde poderiam ter ido os músicos.
Respondeu-nos sem hesitar: foram para o outro lado, para o “Paraíso”.
Atravessamos a praça, cada vez com mais vento, cada vez com mais poeira.
Era verdade.
Na outra esquina lá estava o néon, brilhando com uma luz verde e baça, anunciando o Bar Paraíso.
Entrámos. Num espaço iluminado como no Natal em qualquer lugar do mundo, os presentes conversavam calmamente enquanto se ouviam lânguidas mornas.
Ao fundo, um palco vazio.
Com o aproximar da meia - noite e com a contagem decrescente dos últimos segundos entoada em coro, os foguetes anunciaram a passagem de ano, e a lentidão das mornas deu lugar ao ritmo frenético do funáná.
E no palco lá estavam os nossos músicos, no palco do Paraíso na outra esquina.
Capa do disco “Song For my Father” de Horace Silver |
Orlando Falcão
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