Viagens na Minha Terra: a distância entre autor e narrador
por António Nabais
A narratologia distingue autor e narrador, sendo o
primeiro uma pessoa real e o segundo, um ser de papel. O primeiro está sujeito
às leis da morte física, o narrador estará livre dessa lei, enquanto a
narrativa existir.
Esta distinção faz sentido e terá nascido do combate
ao biografismo que olhava para a literatura – ou para a arte em geral – como um
tecido mais ou menos revelador da vida do autor, com tudo o que isso implica.
Um exemplo dessa leitura biografista será o monumental
livro que João Gaspar Simões escreveu sobre Eça. Os exageros biografistas
transformaram a análise literária numa espécie de arqueologia da vida dos
autores, sendo o texto um simples veículo de informação. Olhava-se para a
literatura para descobrir o autor, ficando, portanto, a literatura esquecida,
reduzida a uma fonte.
Há poucos anos, o programa de Português do Ensino
Secundário, num delírio absoluto, considerava que os sonetos camonianos eram
textos autobiográficos. Basta, entre outros exemplos, comparar “O dia em que eu
nasci moura e pereça” com o Livro de Job para se saber que
toda a tristeza apocalíptica do poema é, afinal, intertextualidade. A expressão
de um sentimento não é o sentimento, um bocadinho à semelhança do cachimbo de
Magritte e relembrando o “fingidor” de Pessoa.
José Saramago, discípulo declarado de Garrett,
defendeu, no entanto, quase a proscrição do narrador: "Um livro não está formado somente
por personagens, conflitos, situações, lances, peripécias, surpresas,
efeitos de estilo, exibições ginásticas de técnicas de narração — um livro é, acima
de tudo, a expressão do seu autor. Pergunto-me até, se o que determina
o leitor a ler não será a secreta esperança de descobrir no interior do
livro a pessoa invisível mas omnipresente do seu autor."
Seja como for, a distinção autor/narrador constitui
uma “diferença ontológica irreversível” (“Autor”, Dicionário de Narratologia).
Por outro lado, entre autor e narrador haverá sempre diferentes distâncias
conforme os contextos, mesmo que, no auge do estruturalismo, tenham querido
quase declarar a morte do autor, porque tudo seria apenas texto e estruturas
invariantes.
Em Viagens na Minha Terra, também por ser uma
obra “inclassificável” (capítulo XXXII), com um narrador autodiegético tão
presente, numa mistura de ficção, reportagem de confissão, autor e narrador
estão tão próximos que é fácil – e talvez desejado por Garrett – confundi-los.
Aliás, a obsessão de Garrett por introduzir notas ao texto ou a
referencialidade histórica e pessoal presente (as referências a Passos Manuel
ou aquilo que se sabe do liberal desiludido em que Garrett se transformou)
aumentam a possibilidade de o narrador estar morto, cedendo o lugar ao autor.
Os estudiosos da obra de Garrett, sem desprezar a
importância da terminologia narratológica, têm já abordado, sendo de realçar o
artigo “A Morte do Leitor nas «Viagens» de Garrett, de Victor J. Mendes, na Colóquio-Letras
153/154, de Julho-Dezembro 1999.
A minha memória guarda o tédio com que li este livro
pela primeira vez, há mais de quarenta anos. Outras memórias nasceram das releituras
seguintes, de uma obra que constitui um desafio a qualquer leitor, incluindo
este leitor formatado para distinguir autor e narrador, distinção, repita-se,
extremamente operativa. Um autor que, no século XIX, consegue o feito de
incomodar leitores desta maneira só pode ser louvado, um autor que tenta impor
a sua própria (in)classificação (o romântico que se recusa a sê-lo), é um marco
na vida de qualquer leitor e de qualquer clube de leitura.
Como se consegue criar literatura, contando apenas
aquilo que se pensou e se sentiu durante uma simples viagem? Sendo Garrett.
Aceitando a possibilidade de que, afinal, não haja narrador, Viagens na
Minha Terra não é um livro, é uma gravação que nos permite ouvir a voz do
autor.
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