CLUBE DE LEITURA DA EASR – Margarida Mouta - Julho de 2022
Introdução
Pela sua natureza híbrida, “Viagens na Minha
Terra” é difícil de enquadrar num único género literário. Esta é, como sabemos,
uma das várias características que permitem detetar na obra fortes traços de
contemporaneidade. Calhou-me na rifa o tema Actualidade
e anacronismo em “Viagens na Minha Terra”. Procurando não me afastar muito do tema
proposto, tentarei provar, com este pequeno texto destinado a esta ilustre assembleia,
que é efetivamente possível equacionar essa contemporaneidade. Não esperem,
contudo, encontrar na minha prosa, ecos do relato jornalístico, da novela
sentimental, da memória autobiográfica, do ensaio sociopolítico, do diário
íntimo ou até mesmo da prosa de ficção que encontramos no texto garrettiano. O
meu fôlego e modesto talento não darão para tanto. Tentarei, tão-só, apresentar-vos
numas quatro condensadas páginas –constrangimento imposto pelo tempo de duração
da vossa paciência e pela hora do nosso jantar – um breve esquisso da viagem e
da novela sentimental. Quanto às digressões, filosóficas, literárias ou outras,
façamo-las no decorrer da nossa sessão.
A Viagem de
Lisboa a Santarém
Convido-vos a iniciar a viagem não a 17 de
julho de 1843, mas 179 anos depois, neste ano da graça de 2022. Embarquemos,
pois, não sem antes fazermos uma pequena viagem à roda dos nossos quartos para
provarmos a improficuidade do programa turístico proposto pela agência do
Senhor Xavier de Maistre.
Posto isto, completado que está o circuito da
alcova, aceitemos o convite da Associação Caminhando que proporciona
cruzeiros no rio Tejo e comecemos, sem mais delongas e sem madrugadas
desnecessárias, a nossa viagem. Partiremos às 10 horas da Praça do Comércio. A
primeira etapa levar-nos-á ao Parque das Nações, onde teremos oportunidade de
apreciar o belo Centro Comercial Vasco da Gama, recinto em que o povo, que
tem sempre melhor gosto e mais puro do que essa escuma descorada que
anda ao de cima das populações, e que se chama a si mesma Sociedade, passa
as tardes de domingo; admiraremos depois esse prodígio da técnica que é a Ponte
Vasco da Gama, para depois nos deleitarmos com a graça do parque habitacional
da Póvoa de Santa Iria; espreitaremos a zona ribeirinha de Alhandra sob o olhar
vigilante do PAN e suas hostes implantadas na Praça de Touros e, finalmente, chegaremos
a Vila Franca, aquela que continua sendo de Xira, apesar dos sucessivos, odiosos
e engulhosos governos de patuscos que nos têm calhado em sorte.
Embarquemos, pois! Viajando em velocidade de
cruzeiro, contemplemos de todo o nosso vagar este majestoso e pitoresco
anfiteatro de Lisboa oriental que é vista de fora, a mais grandiosa parte da
cidade. Que outra saída tem Lisboa que
se compare em beleza com esta? Tirado Belém, nenhuma. E aí correríamos o
sério risco de um encontro matinal com ósculos presidenciais que atrasariam sem
dúvida a nossa partida.
O nosso barco não é sério nem sisudo, dispõe
de mesas e de toldos que nos protegem do sol, mas hélàs, por todo o lado
se vêem avisos que nos impedirão de acender os nossos charutos. Encontramo-nos
num transporte público fluvial e, pour cause, aspirar
molemente as narcóticas exalações de um bom cigarro de Havana é uma das
coisas que nos estarão interditas neste barco, quiçá nesta terra, que já não é
o país do cigarro livre. Tal ousadia revelaria uma atitude hoje taxada de
politicamente incorrecta que acarretaria à autora deste texto o risco de ser
acusada de aceitar o patrocínio da indústria do tabaco. Perdoem-me o desabafo
desta ponderação que está na ordem das coisas, mas este necessário e
inevitável reviramento por que vai passando o mundo, há-de levar muito tempo,
há-de ser contrastado por muita reação antes de completar-se…
Eis-nos chegados à Azambuja. Aí não vislumbrámos
o desembarcadouro, mas pudemos aspirar o cheiro a queimado das agulhas de pinheiro
que restavam no pinhal, devastado por sucessivos incêndios. Houve um breve
momento em que cada um de nós se interrogou, meditativo: Onde estão os
arvoredos fechados, os sítios medonhos desta espessura? Pois isto é possível?
Pois o Pinhal de Azambuja é isto?...
Desencantados, incapazes de dezambujar a nossa
frustração, decidimos passar aí a noite. Através do Tripadviser encontramos uma
Guesthouse, onde nos perguntaram, em inglês, se havíamos feito reserva.
Cabisbaixos, humildemente rendidos à evidência da modernidade, demos o nosso
melhor na língua de Shakespeare e de Julian Barnes, com um Do you have any
rooms available for tonight? Enfim… Como diria o nosso Camões, todo o mundo
é composto de mudança. Até o interior da mais mísera terreola. E nós não queremos
caluniar a boa gente da Azambuja, mas rien est beau que le vrai, já
dizia o Boileau, que cedo aprendeu a não ter ilusões. Na manhã seguinte, a
viagem prosseguirá numa camioneta de carreira onde se não anda sem receio. O
piso, em manifesto mau estado, prenuncia dores ciáticas. Continuamos à
espera que se faça a lei da responsabilidade ministerial para que cada ministro
seja obrigado a viajar por estas estradas pelo menos uma vez em cada ano –
diz alguém. Se uns concordam molemente com as cabeças, outros discordam com
veemência. E então as nossas belas autoestradas que autorizam grandes
velocidades e servem hoje para aumentar a sinistralidade e embaraçar ministros?
A viagem irá prosseguir com uma breve paragem
no Cartaxo para fazer jus ao vinho da região, enjoados que estamos da coca-cola
e do sumo de laranja de pacote servido na guesthouse.
Agora que chegou a hora de atravessarmos a
charneca entre o Cartaxo e Santarém, evoquemos de novo Camões, esse que foi um
romântico avant la lettre. E antes que nos disponhamos a fazer versos,
declaremos desde já: Nós não somos romanescos. Românticos, Deus nos livre de
o sermos. Nós, que integramos o computador digital nos nossos processos
produtivos e artísticos, deixando-nos alvoroçar pela teoria quântica do
cibertexto, não somos do tempo de nos deixarmos levar pela arte do sonho e da
fantasia. Nós somos do tempo do pós-pós-modernismo, da desvalorização da
inspiração fugaz dos momentos fortes da vida subjetiva, seduzidos que estamos
pelos processos de desconstrução da narrativa. Por isso, nada de anacronismos
líricos.
Diga-se, todavia, em abono da verdade, que
perante a bela e vasta planície, ainda tentamos alcançar o deslumbramento,
aspirar o aroma selvagem que exalam as suas plantas, alguns de nós ainda se
sentiram mesmo dispostos a fazer os tais versos, mas fomos rapidamente
confrontados com o convite do Observatório da Paisagem da Charneca,
instando-nos a participar num webinar cujo tema era a reflexão sobre a
identidade do território e a sua matriz biofísica e cultural, seguindo as
recomendações da Convenção Europeia da Paisagem. Não tivemos como escapar e,
sacando dos portáteis, obedientemente clicámos no link. Valeu-nos o facto de a
palestra não durar mais do que os 60 minutos da praxe, pelo que pudemos ainda chegar à ponte da
Asseca a horas de avistarmos um dos mais lindos e deliciosos sítios da terra: o
vale de Santarém. Um vale que é, como sabem, pátria dos rouxinóis, avezinha que
servirá de epíteto, perdão, modificador restritivo do nome à jovem que
protagonizará a segunda parte deste esquisso.
A novela
sentimental
O Vale de Santarém tem 10,15 km² de área e 2 920
habitantes (2011). Sede de freguesia
desde meados do século XIX, foi elevado à categoria de Vila em 21 de junho de
1995.
Embora haja quem diga que é um lugar privilegiado da
natureza em que tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita, um lugar de onde
as paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não
podem senão fugir para longe, evitarei aqui a referência a esses atributos
idílicos. Nesta novela, o vale de Santarém será apenas considerado tout
court como o espaço aberto onde uma parte da acção ocorrerá.
Tudo começou com a observação de uma janela.
Não pretendo discutir aqui a importância simbólica desta
janela, discussão que se situa para além
do cânones clássicos e que tem como base a fenomenologia do espaço. Se refiro aqui a janela, é porque efetivamente,
tudo começou com a observação de uma janela.
Ao fundo do vale, avistei uma casa reconstruída sobre uma
ruína. Os muros em granito sugeriam um prolongamento ao longo do terreno e, no
espaço que os mediava, um pano de vidro abria-se sobre a paisagem, acentuando o
contraste com a construção antiga.
Informaram-me depois que se tratava de
uma das casas da autoria de Souto Moura. Achei curioso o esclarecimento, tanto
mais que tinha lido algures que este célebre arquiteto confessara um dia
publicamente a sua dificuldade em desenhar janelas. An irony of fate, indeed!
Parei e pus-me a namorar a janela. Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar
ali? –
Pensei, atiçada pela curiosidade. Julguei entrever, por detrás do vidro,
um vulto debruçado a escrever, mas não consegui distinguir se se tratava de um
homem a compor poemas ou de uma mulher a escrever cartas de amor. Vim a
descobrir que o vulto era fruto da minha imaginação. A casa estava fechada há
um par de anos.
O
proprietário, um tal Carlos, deputado com assento na Assembleia da República e
com negócios na banca privada, passava a maior parte do seu tempo em Lisboa ou
em Bruxelas. Em tempos fora um homem garboso, era sócio do clube de ténis,
jogava a sua partida de golfe e não descurava o treino no ginásio, mas com o
passar dos anos deixara-se engordar e era agora a típica figura do canastrão
dedicado à política. Formara-se em Direito em Coimbra e cedo se exilara na Inglaterra,
não tanto para fugir à guerra colonial e às imposições do regime que, na
altura, obrigava os mancebos a combaterem pela pátria, mas mais por obscuras
razões de família sobre as quais a minha fonte não se quis pronunciar, mas que
tinham que ver com umas vagas suspeitas que Carlos alimentava sobre um
sacerdote amigo da família, o Padre Dinis. Na casa, haviam habitado D.
Francisca, avó do proprietário e da sua prima Joaninha, uma jovem de grandes
olhos verdes, dada à ornitologia, que dedicava os seus dias à avó extremosa e à
delicada arte de criar passarinhos, mais especificamente rouxinóis.
Avó
e neta recebiam todas as semanas a visita do Padre Dinis, que chegava
religiosamente à sexta-feira, depois de fazer o totoloto. Entre D. Francisca e
o sacerdote havia sempre grandes cochichos que indiciavam um segredo de família
que, ao que tudo indica, tinha que ver com Carlos. Este, entretanto, nas suas
andanças na doce Albion, conhecera Georgina, e preso aos encantos desta senhora
de fino trato, ar majestoso e altivo, lânguidos olhos de gazela e boas
maneiras à inglesa, ficara noivo. Ao que consta, esta não terá sido a sua única
conquista, pois afirma quem o conheceu na juventude que se lhe contam no rol
das enfeitiçadas pelos seus dotes de sedutor, pelo menos uma Júlia, uma Laura e
uma tal de Soledad com quem terá tido um caso na Ilha Terceira. Isto para já
não falar da prima Joaninha, que quanto mais prima mais se lhe arrima, como diz
o povo.
Quando
os ecos da Revolução do 25 de Abril chegam a Inglaterra, Carlos, antifascista
assumido, apressa-se a regressar à pátria. Arrebatado pelo clima que se vivia
no país durante o PREC, envolve-se nas campanhas de dinamização do MFA e o
verão quente irá surpreendê-lo em Santarém, onde as forças da reação preparam
uma intentona. E é aí, no frondoso bosque do Vale de Santarém que reencontra a
prima Joaninha. Esta, esquecida a paixão pela ornitologia, entrega-se de alma e
coração à paixão pelo primo Carlos. Ambos se deixam arrebatar pelos sentimentos
e encetam uma tórrida ligação que conseguirá ofuscar o próprio Verão quente de
75. De mistura com beijos fogosos, Joaninha vai segredando ao ouvido de Carlos
juras de amor entremeadas com pedidos para que visite a avó. Ele, porém, faz
orelhas moucas a estes pedidos por uma qualquer razão que não consegui
descortinar. Sei apenas que, apaixonado, ma non tropo, Carlos se deixa
dominar pelo seu temperamento instável; trava uma luta interior que o dilacera,
sofre por não
poder dar-se inteiro e para sempre no amor, mas não deixa de se envaidecer por
ter um coração grande de mais. Jogando pelo seguro, opta por ocultar a
Joaninha que está noivo de Georgina. Mas Joaninha, embora pareça uma criança, é
mulher e desconfia que Carlos tem outra.
Entretanto,
as forças da reação, encabeçadas pelos membros mais ferozes da ultradireita, procuram
reverter as mudanças democráticas introduzidas
após o 25 de abril. As FAE - Forças de
Acção Externa, lideradas por Alpoim Calvão intensificam o ataque e ocupam a região. Os grupos
rivais entram em confronto e Carlos é baleado.
De acordo com o testemunho de Diogo Pacheco de
Amorim, antigo membro do MDLP e hoje militante proeminente do partido político Chega, Carlos
só escapou com vida graças à Divina Providência. Por vontade de Amorim, aquele
guedelhudo com ar emproado que não passava de um esquerdelho metido a besta,
teria ficado logo ali, estendido na mata de Santarém, no meio dos fetos.
Tudo o que acabei de afirmar neste último parágrafo são conjeturas. De fonte limpa,
sei apenas que Carlos se tornou proprietário daquela bela casa restaurada que
encontrei no fundo vale. Disse-me a minha fonte que se tornou íntimo do
Comendador Berardo e que em breve ele próprio receberá das mãos do Presidente
da República a condecoração de Grande-Oficial da Ordem da Liberdade. Aguardemos
o próximo 10 de junho.
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