Julien Sorel, exemplo do beylisme
Alexandra Azevedo
O
nome verdadeiro de Stendhal era Henry Beyle. A primeira obra que assina com o
nome de Stendhal data de 1917 - “Roma,
Nápoles e Florença”- uma narrativa de viagens
de tipo jornalístico em que mais do que descrever monumentos ou locais de
interesse, se ocupa da maneira de viver dos italianos que é o que
verdadeiramente o encanta em Itália. Aliás, Stendhal dirá “nunca
encontrei um povo que conviesse tão bem à minha alma” A razão de adoptar um
pseudónimo poderá estar ligada ao pudor
que sempre teve em expressar sentimentos, apesar de ter vivido em pleno
romantismo. Desde a infância, nomeadamente desde a morte da mãe, aos sete anos,
que Stendhal manteve a preocupação de proteger a sua intimidade, de nunca se expor
do ponto de vista sentimental. A esta atitude não será também alheia a influência do avô, mádico e
filósofo, imbuído das ideias do racionalismo, do esprit philosophique do século XVIII francês bem como a de um tio,
espécie de D. Juan de Grenoble que lhe terá dado sábias lições e contribuído
decisivamente para que atravessasse a adolescência sem mergulhar no vague des passions, então em moda.
Assim, e apesar de possuir uma grande sensibilidade e uma imaginação romanesca,
Stendhal refugiou-se sempre numa atitude cínica e desenvolta com medo de cair
no ridículo.
Tudo
isto terá contribuído para criar aquilo que ficou conhecido como beylisme, designação encontrada a partir do seu
verdadeiro nome, Beyle. O beylisme
é um conceito de vida, un art de vivre muito pessoal, de raiz
racionalista em que a base do conhecimento,
é a sensação. O sensualismo, doutrina do século XVIII segundo
a qual todos os conhecimentos e todas as faculdades do espírito advêm da sensação é, assim, a base
filosófica deste conceito de vida em que a busca da felicidade pessoal é o
desiderato a atingir. La chasse au
bonheur que enraiza na crença de que a vida terrena é a única de que o
homem dispõe, está sempre presente nas personagens de Stendhal e o prazer é o
grande e único critério estético e moral. Mas só os eleitos, aqueles que são
dotados de virtu, de força anímica, são
capazes de empreender esta chasse au
bonheur. É a virtu que dá às
personagens de Stendhal traços vigorosos, marcantes, individualistas, frios e
racionais como aqueles que encontramos em Julien Sorel.
Julien
caracteriza-se por uma ambição sem limites que tem na base o desejo de apagar
as suas origens humildes. Ao filho de um
carpinteiro só duas carreiras se podiam
apresentar: a carreira militar (o Vermelho) ou a carreira eclesiástica (o Negro). Julien sabe-o e, se
bem que a atracção pela carreira das armas e por Napoleão, o seu ídolo nunca
destronado, seja grande, é à carreira eclesiástica que se resigna.
Nesta
busca pela felicidade pessoal não pode haver lugar a sentimentos que ponham em
causa o alcançar dos objectivos. Por
isso, Julien luta consigo próprio para não
se deixar enlear nas teias do amor ou da amizade. É assim que começa por odiar a beleza de Mme de Rênal _ “Julien trouvait Mme de Rênal fort belle,
mais il la haissait à cause de sa beauté; c’était le premier écueil qui avait
faiilit arrêter sa fortune. Il lui parlait le moins possible, afin de faire
oublier le transport qui, le premier jour, l’avait porté à lui baiser la
main”(cap. VII) É por isso também que encara com indiferença a amizade que as
crianças têm por ele: “Les enfants l’adoraient, lui ne les aimait point; sa
pensée était ailleurs. Tout ce que ces marmots pouvaient faire ne
l’impentientait jamais. Froid, juste,
impassible,et
cependant aimé” (cap. VII) E mesmo o
sentimento de gratidão pela figura tutelar do Marquês de La Mole é rapidamente
posto de lado quando em causa estão os objectivos individualistas que o
norteiam, ainda que tenha de trazer ao espírito o desdém dos frequentadores da
casa ou da própria marquesa para activar o azedume de classe contra o marquês
de quem sabia ser estimado: “Et moi, je vais séduire sa fille! (…)Julien eut
l’idée de partir pour le Languedoc malgré la lettre de Mathilde, malgré
l’explication donnée au marquis. Cet éclair de vertu disparut bien vite.” (cap.
XIII)
Julien é uma
personagem que simultaneamente repugna e atrai. O leitor é sabiamente levado a
desculpar a personagem, mas apenas em certa medida. O esmagamento dos
princípios morais não é completamente desculpado porquanto o autor nos faz
sofrer pelas vítimas de Julien, nomeadamente Mme de Rênal a quem perdoamos sem
hesitações o pecado do adultério. Mas Julien faz vítimas porque também ele é
uma vitima. Nas relações amorosas que estabelece com Mme de Rênal ou Matthilde,
Julien quer antes de mais o triunfo de amar mulheres de posição social mais
elevada o que imediatamente o impede de verdadeiramente amar. Aliás, Élise nem
sequer é uma hipótese para Julien justamente por ser uma criada. Julien é o
instrumento de crítica social do autor que defende uma determinada visão
politico-social marcada pelo anti-clericalismo, pelo anti-monarquismo e pela justiça social. No
final do romance, Julien entra no tribunal como acusado e transforma-se em
acusador. No seu discurso, depois de assumir o crime de tentativa de
assassinato, afirma que o seu verdadeiro crime foi nascer numa classe inferior e ter ousado instruir-se
e, sobretudo, ter tido a audácia de frequentar aquilo a que o orgulho dos ricos
chama a sociedade.
E a
obra termina com a execução de Julien redimindo, assim, de certo modo, a
amoralidade que se desprende da personagem em particular e do romance em geral.
27 de Junho de 2019
A política
como pano de fundo de O Vermelho e o Negro
(alguns apontamentos para a sua
compreensão)
por
Conceição Rocha
·
A
acção do romance decorre entre 1826 e 1830, mas para tornar as suas referências
políticas compreensíveis é necessário revisitar todo o período que decorre
entre a Revolução Francesa (com início formal em 1789) e a Revolução Liberal
também em França (1830).
·
O
movimento Jacobino, republicano e laico, foi determinante para a
concretização da Revolução Francesa. Os mais importantes revolucionários
integravam o clube jacobino, assim designado porque estava instalado desde
1789 num
convento desactivado, em Paris,
na rua de S. Tiago, nome que em latim se diz Jacobus. Os jacobinos tomam o poder em 1793, instituem
a república e afirmam-se como paladinos da democracia de massas, do sufrágio
universal (para os homens), do reconhecimento do mérito como única forma de
aceder ao poder, da escolarização universal, etc. Muito implantados nas massas,
perseguem, julgam e guilhotinam Luís XVI e Mª Antonieta, uma boa parte da
aristocracia e algum clero. Robespierre (1758
– 1794) é o revolucionário mais destacado e sanguinário.
Robespierre |
·
Robespierre é guilhotinado em 1794 (10 do Thermidor) e o jacobinismo instalado
no poder, que caiu em desgraça popular por causa da fome, dos atentados e da
justiça popular, fez com que uma grande fração do povo se aliasse à
aristocracia e ao clero para destituir o poder revolucionário.
·
Em
1789 Napoleão Bonaparte tinha 20 anos e já na Córsega, de onde é natural,
participava nos movimentos nacionalistas e republicanos da ilha, colónia
francesa.
·
Em
1799 está já em Paris com uma carreira militar brilhante e um discurso
nacionalista com grandes repercussões.
·
9
de Novembro de 1799 – é o 18 do Brumário, tomada do poder por Napoleão,
início do Consulado, Napoleão é o Primeiro Cônsul. Representa o ideário de uma
burguesia crescentemente poderosa, rica, que, além de se ligar com os restos de
aristocracia ainda existentes, ela própria se nobilita e se faz representar em
todos os órgãos do poder.
·
1804
– Napoleão é coroado imperador e a vida corre-lhe relativamente bem no
expansionismo europeu que empreende. O seu ideário é querido nos territórios
europeus que, divididos em regiões e agrupados segundo as vitórias e as
derrotas guerreiras (os territórios que irão ser a Alemanha, a Polónia, a
Áustria, etc), têm no nacionalismo do imperador uma esperança de unificação.
Recorde-se a 3ª sinfonia de Beethoven (1802), a Heroica, cujo título inicial
era “Buonaparte”, título depois rasurado por B. na partitura original, quando
Bonaparte se torna inimigo de toda a Europa.
·
1812
– derrota de Napoleão na Rússia
·
1814
– destituição e exílio na ilha de Elba
·
1815
– escapa aos seguranças e aporta em França; mobiliza tropas leais e toma o
poder. Tem toda a Europa contra si.
Elba |
·
1815
– Batalha de Waterloo na Flandres, hoje
Bélgica, grande derrota. Napoleão abdica e vai exilado para St.ª Helena, sendo
o poder retomado pelo grupo político burguês –recém aristocrata.
·
Nas
décadas de 20 e 30 alastram-se os movimentos liberais e nacionalistas na
Europa, ideários muito caros à burguesia industrial e desenvolvimentista. Ao mesmo tempo cresce em miséria e desemprego
o proletariado urbano, mais tarde a própria pequena burguesia. Com o decréscimo
do consumo, ocorre crise também no tecido produtivo.
·
Em
França reina Carlos X Bourbon que revitaliza o absolutismo de direito divino,
favorece a nobreza e sufoca a burguesia com impostos, licenças e toda a espécie
de soluções para lhes extorquir recursos.
·
27,
28 e 29 de Julho de 1830 – a maçonaria, povo e burguesia de Paris revoltam-se e
vencem as tropas de Carlos X. (Este período é tema dos Miseráveis de
Victor Hugo). A alta burguesia põe no poder Luís Filipe de Orleães, de
um ramo da realeza francesa não Bourbon. Os Orleães subscrevem o ideário
liberal, o crescimento económico, a revolução industrial e o poder assente no
capital financeiro.
Carlos X |
·
O
Livro II do Vermelho e o Negro começa antes da revolução de Julho de
1830. As suas personagens circulam à volta de um espírito contra-revolucionário,
conservador, perfumado pelo gosto romântico do individualismo, da vivência de
emoções, da profunda oposição entre Paris e a província, entre nobreza e
burguesia, entre jansenistas e jesuítas, entre valores como o do altruísmo
revolucionário e o egocentrismo requerido pela necessidade de mobilidade social
numa sociedade profundamente estratificada.
Luís Filipe de Orleães |
·
Jansenismo:
doutrina religiosa inspirada nas ideias de um
bispo de Ypres, Cornelio Jansenius (1585
– 1638) inspirada nas doutrinas de Stº Agostinho que deram origem à reforma
calvinista. São diversas as implicações desta doutrina. Por um lado, “o pecado
pessoal significa uma privação da graça: quem peca, é porque não tem graça,
pois se a tivesse agiria segundo ela. Por outro lado, o homem não tem mérito
nas boas obras, pois elas são fruto da graça que interiormente o determina, e
não da sua liberdade.
Cornelio Jansenius |
Além disso, o homem privado da graça peca infalivelmente
e é incapaz de qualquer boa obra, pois segue sempre a concupiscência. Daí que
as obras dos infiéis sejam sempre pecado, pois estão privados da graça eficaz
proveniente da redenção de Cristo”[1]. Os seus
seguidores negavam que Cristo tivesse morrido pela salvação de todos os homens,
mas apenas por aqueles que serão finalmente salvos (ou seja, os eleitos). Esta
e outras teses Jansenistas foram oficialmente condenadas pelo Papa Inocêncio X
em 1653. Desde o séc. XVII que o jansenismo despertava em França a simpatia de
intelectuais cultos e apreciadores de sociedades secretas com grande pendor
espiritualista e profundamente anti-clericais. Os séculos XVIII e XIX
assistiram a grandes polémicas religiosas entre académicos jansenistas e clero jesuíta, estes
intelectuais profundamente opositores do jansenismo.
Stendall e a alma humana
por
Maria Amélia Correia
“O Vermelho
e o Negro” Stendhal
Stendhal (S)
analisa de uma forma brilhante a alma humana.
A forma
soberba como Stendhal descreve o martírio do Sr. de Rênal (SR) quando
descobriu, através de uma carta anónima a infidelidade da mulher é exemplar a
este propósito. O SR não ama a mulher no sentido romântico do termo, é um
materialista pragmático, possivelmente nunca conheceu a paixão ou mesmo o amor.
Fez um casamento de conveniência com a Sra de Rênal (SRA), como era comum na
época. Esta juntava qualidades inexcedíveis, era bonita, rica, piedosa, ingénua
e generosa. Todos lhe invejavam a mulher.
Eis que a
leitura da carta vem abalar completamente a sua existência. Quem a teria
escrito? Afinal em Verrières todos o invejavam e/ou detestavam. Abrir-se com
amigos? Não os possuía. Aqueles que se diziam seus amigos ficariam regalados
com a sua infelicidade, e os verdadeiros amigos contou dois, tinha-os afastado
ou atraiçoado. Habituara-se a Luísa, seria difícil viver sem ela, não falando
já da herança que a aguardava duma tia muitíssimo rica.
Seria
calúnia? Esta hipótese resolvia-lhe os problemas. Mas se não era, estava
disposto a ser o motivo da chacota geral? Então sentiu vontade de apanhar a
mulher e o campónio em flagrante delito e matá-los, com a faca de caça. O
Código Penal era a seu favor, mas a ideia de duas mortes sanguinolentas
apavorou-o, era demasiado cobarde.
Pôr o
preceptor na rua ao pontapé? Seria um escândalo em toda a província,
ridicularizado nos jornais, a notícia chegaria a Paris. Toda a sua glória e
força num lamaçal. Se expulsasse a sua mulher de casa, era certo e sabido que a
tia rica a acolheria em Besançon, e poderia mesmo viver uma vida flauteada em
Paris com o amado Julien. SR sem a fortuna e coberto de vergonha o gáudio para
as gentes de Verrières.
Fazer de
conta que nada acontecera, ficar com as suspeitas, não verificar nada? Não lhe
seria possível ficar de mãos atadas e todo o Verrières imaginá-lo um manso.
Arranjar uma
maneira de se assegurar da verdade, como espalhar uma fina camada de farelos
diante da porta de Julião? Mas isto de nada valeria e a atrevida da Elisa e os
outros criados iriam constatar que morria de ciúmes.
No desespero
total pensou que a morte da mulher, tudo resolveria. Ficar viúvo salvá-lo-ia do
ridículo.
O abalo do
SR fez-me lembrar as terríveis penas por que passou Jorge quando leu a carta
que o primo Basílio enviara de Paris a Luísa, passados meses de a ter
abandonado com a desculpa de negócios urgentes. O nosso Eça não fica atrás de S
na análise psicológica.
Jorge,
contrariamente a SR amava apaixonadamente a sua mulher. Quando chegou do
Alentejo encontrou Luísa bastante perturbada e dominada por Juliana, incapaz de
a despedir. Após a morte de Juliana, a sua mulher adoecera com febres de
desgosto ou crescimentos como diagnosticara Julião. Jorge, acreditava pouco no
diagnóstico, mas foi infatigável na doença de Luísa, velava-a noite e dia e
esta mostrava-se apaixonadíssima pelo marido.
A carta que
chegara de Paris para Luísa continuava na mesa do escritório e começou a
irritá-lo. Arranjou desculpas para a abrir, podia ser um assunto urgente, até
uma herança e afinal não havia segredos entre eles. Quando a começou a ler não
compreendeu as letras embrulhavam-se. Mas ao reler com vagar ficou estupefacto
sem reacção, até que de repente atirou-se de bruços sobre a mesa rompeu a chorar
convulsivamente “rolando a cabeça entre os braços, mordendo as mangas, batendo
os pés, louco!” Teve um impulso de a atirar à cara de Luísa que jazia doente na
alcova, mas tudo o que conseguiu foi cair de joelhos, junto à cama e
agarrar-lhe as mãos aos soluços.
Também lhe
passou pela mente que a carta podia ser uma mistificação, teria sido enviada
por um inimigo, mas era tão pouco provável, ou talvez Basílio tivesse outra
Luísa em Lisboa.
Ao SR não
foram dadas informações sobre o romance, nem este era um homem imaginativo,
mas o pobre Jorge foi confrontado com as
“boas manhãs no Paraíso” e imaginou os começos do romance no divã, na alcova,
enfim pormenores que faziam com que se sentisse enlouquecer.
Matar Luísa
a devassa passou-lhe pela cabeça também. Não usaria a faca como SR, esganá-la-ia,
dar-lhe-ia clorofórmio ou láudano para beber. Ou então enviá-la-ia para um
convento e depois e iria morrer longe em África. Mas a ambivalência torturava-o
pensava em todos os momentos maravilhosos que tinham vivido juntos.
Jorge
possuía amigos sinceros, ao contrário de SR, e Sebastião era como irmão.
Deu-lhe a ler a carta, indagou o que sabia o amigo. O amigo não lhe podia valer
e ele interrogava-o em pranto: Que lhe fiz eu para isto? Adorava aquela
mulher.
Jorge foi
heróico, a doença de Luísa fez-lhe perdoar a afronta e por fim tornou-se um
viúvo inconsolável.
“O Vermelho e o
Negro” de Stendhal
O Título
por
Margarida Mouta
Le Rouge et le Noir,
essa feliz simbiose que constitui o título da obra, comporta em si duas cores
que gozam, sem dúvida, de um estatuto privilegiado no romance. O “Rouge”, nas
suas variantes “écarlate” ou “vermeil e o Noir nas variantes “sombre” e
“obscure”, constituem mesmo uma espécie de atalho para a compreensão da obra,
pois estão presentes no romance quase da 1ª à última página, desde as vestes
negras do tímido e frágil preceptor que surge no início cheio de esperança até ao
sangue que escorre da guilhotina que põe termo à sua vida, no final da obra.
Sabemos que o
primeiro título escolhido por Stendhal era “Julien”, mas mais tarde, Le Rouge et le Noir viria a impor-se,
dando origem a muitas interpretações.
O
Vermelho e o Negro é, pois, um título em aberto. Vejamos
algumas hipóteses que foram surgindo desde 1830, ano da sua publicação, e que,
de uma forma mais linear ou mais rebuscada, pretendem fundamentar essas
diferentes interpretações.
HIPÓTESE Nº 1
A
explicação tradicional: vermelho – a carreira militar /
negro – a carreira eclesiástica
De acordo com esta
interpretação, o dilema em que Julien Sorel se encontra mergulhado exprime-se nestas
duas cores. Para um jovem nascido no povo, só havia dois meios de sair da sua
condição social: a igreja ou o exército. Assim, o negro evocaria a sotaina dos
padres e o vermelho a cor dos uniformes militares.
Levantam-se várias objeções
a esta hipótese. A condição dos padres de aldeia não era propriamente
brilhante. Exceptuando alguns raros casos, os padres são sempre representados
por Stendhal como camponeses grosseiros que escolhem esta via para escapar ao
trabalho nos campos, não tendo nada a ver, portanto, com a situação do alto
clero. Se assim fosse, o autor escolheria, por certo, mais depressa o tom
púrpura das vestes dos cardeais. Por outro lado, os uniformes vermelhos tinham
mais que ver com o exército inglês do que com o das tropas francesas,
frequentemente de cor azul.
Apesar destas
reservas, esta hipótese tem alguma base de sustentação, se pensarmos no hábito
dos jesuítas, uma força poderosa no tempo em que o romance foi escrito e na cor
dos uniformes da guarda de lanceiros que, esses sim, eram vermelhos.
HIPÓTESE nº 2
A
explicação política: vermelho
– A esquerda liberal / negro- Monarquia
Embora ainda não
houvese o desfile das bandeiras vermelhas, o vermelho poderia associar-se à
esquerda liberal, de cariz republicano e o negro às forças da monarquia apoiada
pelo partido dos Padres, pelo que o título poderia bem reportar-se ao conflito
político que divida a França dessa época.
HIPÓTESE nº 3
A
explicação do jogo : vermelho e negro – cores que
evocam a roleta
A
roleta era um jogo que já existia no século XIX (pense-se n’ O Jogador de
Dostoïevsk). Por outro lado, o Diário de Stendahal faz referência a um jogo de
cartas apelidado exatamente de Vermelho e Negro
«ARRÊTÉ: Considérant qu'audaces fortuna juvat (La fortune
sourit aux audacieux), et que si je ne fais rien d'extraordinaire je n'aurai
jamais assez d'argent pour m'amuser, j'arrête: (…) Art. 3 Tous les mois j'irai
jouer 6 francs et quatre pièces de 30 sous à la rouge et noire au n°113. Ainsi
pour 13 francs 10 sous, j'acquerrai le droit de faire des châteaux en Espagne.»
Audaz
e ambicioso, Julien Sorel estaria, portanto, nas mãos da fortuna.
HIPÓTESE nº 4
A
explicação da crítica social: vermelho- vestes dos
magistrados / negro – o partido dos padres
De acordo com esta interpretação, Stendhal faria
assim alusão às duas principais forças de repressão da sociedade do seu tempo.
O vermelho dos magistrados (que iriam condenar Julien) e o negro dos padres que
são a origem da sua desgraça.
HIPÓTESE nº 5
A
explicação literária: vermelho – Românticos / negro –
clássicos
O vermelho, ligado à
impetuosidade fogosa dos jovens românticos opor-se-ia ao negro do classicismo.
Há ainda quem veja
no título reminiscências da obra “Corine ou l’Italie” de madame de Staël
publicada em 1807 e que Stendhal leu. Nesse livro, Madame de Staël evoca uma relação singular entre a natureza e
o homem, apresentando uma descrição do Vesúvio que parece ter inspirado
Stendhal : « … la nature n’est plus dans ces lieux en relation
avec l’homme, il ne peut plus s’en croire le dominateur ; elle échappe à son
tyran par la mort. Le feu du torrent est d’une couleur funèbre ; néanmoins,
quand il brûle les vignes ou les arbres, on en voit sortir une flamme claire et
brillante ; mais la lave même est sombre, tel qu’on se représente un fleuve
d’enfer ; elle roule lentement comme un sable noir de jour, et rouge la
nuit ». Tal
como Julien Sorel, a natureza oferece-se à morte para escapar à tirania da lava
incandescente do Vesúvio.
Pode-se também
admitir a hipótese de Stendhal ser influenciado por si próprio. No seu Journal
(La campangne de Russie), revela-se um admirador dos incêndios, primeiro em
Smolensk, depois em Moscovo: « Nous sortîmes de la
ville, par le plus bel incendie du monde. C’est
la frénésie du rouge qui conduit au noir de la mort ».
HIPÓTESE nº 6
A
explicação com base no simbolismo das cores
O vermelho –
paradigma do sangue, do desejo, das forças vitais, da paixão, do amor, mas
também a cor das paradas, das festas, das cerimónias, a cor que se ostenta para
dar nas vistas, par se ser admirado, a cor da glória.
O negro - paradigma
da noite, dos segredos, da dissimulação, das forças ocultas, dos complots, de tudo
o se não pode fazer às claras.
Unindo estes valores
simbólicos ao universo do romance, poderíamos obter a chave da leitura do
título. Um jovem brilhante, levado por um complexo de inferioridade e por uma
ambição desmedida abraça o negro da única via que se lhe oferece, a da
hipocrisia, da dissumulação e da intriga que a carreira eclesiástica propõe aos
seres de baixa condição mas dotados de grande inteligência. O desejo de ser
reconhecido conduzi-lo-á à sua perda. E só na morte encontrará o esplendor do
vermelho.
“L'homme a deux êtres en lui “, diz
Julien na prisão. Para o crítico Paul Desalmand, o par indissociável
vermelho/negro simboliza a imbricação em Julien de Eros e Tanatos, do instinto
de vida e do instinto de morte, inextricavelmente ligados, o vermelho do desejo
e o negro da morte.
O vermelho e o negro
surgiria então como a feliz solução encontrada por Stendhal para nos dar desde
o primeiro momento, uma pista de leitura sobre o caráter simultaneamente sombrio
e inflamado de Julien Sorel, o que nos reenvia para o título que o autor inicialmente
pensara atribuir à sua obra.
27 de junho de 2019
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