Brevíssima Mixórdia Teológica
por Maria Amélia Correia
“E ele (Richard
Smithe) dizia: -Minha amiga não meta nisto a ideia de Deus. Trata-se apenas do
seu amante e do seu marido. Não misture uma coisa concreta com fantasmas.”
E não conseguiria G. Greene escrever um romance apenas com
estes três personagens? Claro que sim. Centenas dos seus pares o fizeram,
alguns com muito êxito, outros nem tanto. Em todos, ou melhor em quase todos, a
culpabilidade está presente, mas neste, ela é tratada duma forma exacerbada,
quase histérica! (passo a hipérbole). A culpa ligada à figura de um Deus
judaico – cristão colérico, que castiga sem dó nem piedade e que só é redimida
com a morte, é terrível não há dúvida!...
Bendrix ainda no princípio do “affaire” afirma (págs. 79 e
80): “Sarah possuía artes extraordinárias para eliminar o remorso. Ao contrário
de todos nós, não a perseguia qualquer consciência de culpa.”… “Diz-se dos
católicos que no confessionário se libertam da hipoteca do passado – e sem
dúvida que, sob este aspecto ela poderia ser classificada de católica nata,
embora acreditasse em Deus tanto quanto eu”. Na pag.103 reitera “Tínhamos tão
alegremente acordado em eliminar Deus do nosso mundo. ”
Como estava enganado Mr. Bendrix, a culpa é empurrada porta
fora e quando menos se espera entra-nos pela janela. Não está Deus em toda a parte?
Este olho divino não nos abandona. Pena é que por vezes seja tão desprovido de compaixão...
Pobre Sara martirizada pelo silêncio ensurdecedor dum Deus que infunde temor e
tremor como disse o filósofo. A certa altura queria ver-se livre Dele, mas qual
quê, era como um visgo agarrado sua à pele.
O Deus de Greene é o Pai severo e implacável do Velho Testamento,
não o comove a dor terrível dos dois adúlteros, nem o sofrimento do marido enganado.
Apetece dizer parafraseando o poeta: Mas aos mansos Senhor, porque lhes dais
tanta dor, porque padecem assim? Pura
hipocrisia do Altíssimo, porque o seu filho, ao que sabemos legítimo, veio pregar
na montanha para quem o quis ouvir: Bem-aventurados os mansos porque eles
pertencem ao reino dos céus.
Três almas dilaceradas a sofrer as penas do inferno cá na
terra. Foi preciso castigá-los e levá-los a engolir a taça do fel para expiação
das suas culpas. Não havia necessidade!...
Mas tentemos outra abordagem. Se acreditarmos que Deus
escreve direito por linhas tortas, isto é, que os desígnios divinos são
demasiado complicados para a pequenez da mente humana, podemos sempre pensar
que este caminho das pedras deu belos frutos: Santificou a pecadora adúltera e
pacificou o resto do pessoal. Eis um catolicismo de consolo mais maternal!
Enfim a salvação! Podiam pedir mais e melhor? Podia sair
melhor na fotografia?
Como eu gosto de finais felizes! E esta hem?
Sarah Miles uma prostituta e
uma impostora
por Maria José Marques
O Fim da
Aventura é um romance em que Graham Green constrói magistralmente a narrativa
de uma paixão avassaladora que prende um homem e uma mulher, Maurice Bendrix e
Sarah Miles, e a descoberta de Deus no meio do desespero.
Ao imaginar que irá perder o homem amado
para sempre durante um bombardeamento, Sarah promete renunciar a esse amor intercedendo
pela vida dele perante um Deus que ela crê não existir. A graça é alcançada e é
aí que reside o conflito de Sarah e do amante que não compreende a razão do fim
do “ affair “ . Sarah passa por uma verdadeira Via Crucis e quanto mais tenta
negar a veracidade do milagre, mais se sente tocada por Deus e imersa num Amor
profundo. Porém, o que sente por Maurice, seu ex-amante, permanece vivo e cada
vez mais intenso com a separação forçada.
A acção do
romance é muito limitada em termos de acontecimentos o que o torna tanto mais
interessante a sua arquitectura formal.
O narrador,Bendrix,sente-se enredado” numa
rede inextricável de acontecimentos” – o fim da aventura amorosa- que não
provocou e, para reverter a situação actual procura no passado um indício, um
sentido para a presente recusa de Sarah. Oescritor Bendrix / Graham Green, sente-se “enredado (…)
numa rede inextricável de ciúme de imaginar-se substituido por outro amante ,
Bendrix chega a dizer de Sarah “entregava-se
ao primeiro que lhe aparecesse” ( p.244),
leva-o a procurar Henry, marido de Sarah, e forjar com ele uma aliança
para contratar um detective que lhes traga um relato da vida dela que lhes
escapa.O diário de Sarah , a sua voz na arquitectura do romance, é obtido pelo
detective contratado , Parkis, e assim Bendrix tem as respostas que procura
embora não sejam as que deseja, os dilemas religiosos e morais de Sarah são
expostos, e nele surge a figura de Smythe o homem que “ rebatia os argumentos
da existência de Deus.”
Este é o
triângulo amoroso que não chega a ser. Maurice Bendrix é o amante exigente e
ciumento, escritor com poucos contragimentos no uso do seu tempo, Henry Miles funcionário
ocupado com o seu trabalho em tempo de guerra, marido delicado, bom ,paciente
que reconhece “ Fiz muito mal a Sarah
quando casei com ela “ e tenta estar mais presente na vida dela quando já é
tarde de mais e Sarah a mulher que diz
de si própria “ sou uma prostituta, uma
impostora, desprezo-me”
De onde vem esta
auto depreciação de Sarah ? O autor Graham Green não facilita, não oferece
pistas no desenvolvimento da personalidade da personagem. A mãe de Sarah, Mrs
Bertram, não terá sido o melhor modelo no que respeita à verdade e o facto de
ter baptizado Sarah não por verdadeira convicção católica mas para despeitar o
marido é revelador da sua personalidade. Por outro lado, na arquitectura do
romance, este baptismo vem legitimar e certificar o catolicismo de Sarah para
surpresa de alguns.
Mas não é só
isto que explica que Sarah se diga ” uma
prostituta e uma impostora “ tão repetidamente ao longo do romance , e que
o próprio amante Maurice a veja assim
nos seus acessos de fúria ciumenta e noutros momento lamente que ela se sinta
desse modo. A minha leitura é de que
Graham Green quer na verdade que o leitor veja Sarah como uma alma perdida em contraste com a sua
luta para amar Deus. “ nesta prostituta,
nesta impostora, que encontras digno de amor ?” Escreve ela no seu diário: ( p. 139)
“ Os homens, se pensam que os apreciamos,
apreciam-nos pelo nosso bom gosto,e, quando nos apreciam, temos a ilusão de que
por momentos há que apreciar. Tenho procurado viver a vida inteira nesta
ilusão, num analgésico que me permite esquecer que sou uma prostituta e uma
impostora.” Sarah dá aos homens atenção e apreço numa troca que é ao mesmo tempo recíproca e ilusória.
Sarah só
encontra a definição da sua personalidade em função da sua relação com os
outros. Na perspectiva da promoção profissional de Henry poder levar a que lhe
chamassem “ Lady Miles “ Sarah
imagina-se “Lady Miles- que não tem
amantes, nem bebe, (…) e todo esse tempo onde estaria eu ? ( p.142 )”
Portanto ela acha-se uma impostora por ter uma imagem pública de esposa fiel enquanto vai traindo o marido com os seus
colegas e superiores, prostituta por se envolver com vários homens , incluindo
Maurice que nem precisou de a seduzir para se tornarem amantes. Mas a definição
daquela que Sarah crê ser a sua identidade está patente quando, depois de estar
a beber sozinha se interroga “Eu era
alguém que amava Maurice, se entregava a diversos homens e gostava da sua
pinga. Que fica, se abandonamos tudo aquilo que nos faz sermos nós ? “
Culpada,
inocente é uma questão de perspectiva temporal e circunstancial “ Enquanto fui o que a lei considera a parte
culpada podia contemplar ( Henry ) afectuosamente(…).Agora que eu passara à
categoria de inocente fazia-me perder a cabeça “ Culpada enquanto amante de
Maurice, inocente depois renunciar a ele para o salvar Sarah continua a
entregar-se a outros homens que não faziam parte do acordo feito por ela com
Deus.
“ Quero o vulgar e corrupto amor humano” escreve
Sarah numa página do seu diário que Maurice há-de ler e reler o que, na
magnífica arquitectura do romance facilita ao leitor captar uma ideia central . Sem este amor humano há
um deserto , encontrar Deus nesse deserto é outra questão.
Na morte de
Sarah, alguns dos que a amaram em vida, o jovem Lance, o materialista Smythe, e
mesmo Maurice sentem-se tocados pela santidade de Sarah e cada um beneficiário
de um milagre operado por ela. Assim Sarah Miles, como tantas outras Madalenas,
passa de pecadora a santa e Maurice trata de manter essa santidade que se
tornaria muito inconveniente se fosse tornada pública.
A arte de comparar
por António Nabais
“El mundo era tan reciente, que muchas cosas carecían de
nombre, y para mencionarlas había que señalarlas com el dedo.”
Gabriel García Márquez, Cien Años de Soledad
“Our ordinary
conceptual system, in terms of which we both think and act, is fundamentally
metaphorical in nature.”
George Lakoff and Mark Johnson, Metaphors
We Live By
Não podemos comunicar verbalmente sem comparar, porque,
muitas vezes, uma palavra não chega, por si só, para explicar a um interlocutor
aquilo que queremos dizer, porque não há explicações. Para que todos nos
entendamos verdadeiramente somos, frequentemente, obrigados a usar, por
exemplo, frases começadas por “É como se…”
É como se
tivesse uma moto-serra dentro da cabeça, é como se me estivessem a arrancar um
dente, é como se…
Entre a metáfora e a comparação vai um corte que
é um avanço, como se (como se, estais a ver?) a coisa comparada se
transformasse efectivamente na coisa a que é comparada. Costuma dizer-se que a
metáfora é uma “comparação sem como”, mas, ao escolher uma metáfora, estamos a
estreitar, a metáfora é o percurso mais rápido entre dois termos de comparação,
uma recta entre duas realidades (olhai a metáfora metaforizada em recta). Se
alguém é o sol da nossa vida, passa a ser mais do que uma coisa que queremos
comparar com o sol, é como se (outra vez?) passasse a ter mais brilho e como se
(sem comentários) isso fizesse de nós um planeta sem uma luz própria, um
planeta que não teria vida sem esse sol a que(m) devemos tudo.
No fundo, no fundo (também isto é metáfora), não
podemos explicar-nos verdadeiramente sem comparar, sem metaforizar, sem criar
imagens mais ou menos complexas. Não vivemos sem isso, porque precisamos disso
para viver, como fica patente no livro Metaphors
we live by.
Por outro lado, a escolha do segundo termo de
comparação, independentemente da sua extensão, não é apenas denotativa,
misturando, muitas vezes, informação, sentimentos e estado de espírito.
Em O Fim da
Aventura, Graham Greene mostra uma incomparável arte de comparar, como
poderemos confirmar através da análise de alguns exemplos.
Na p. 36, para explicar que perdeu a noção da
passagem do tempo, o narrador usa a pouco inventiva metáfora das “trevas”, em
que a ausência de luz é reveladora da ausência de racionalidade, para a
reforçar com a magnífica imagem “como a um cego notar as variações da
claridade.”
Na
mesma página, há uma longa imagem que serve para mostrar que sente “admiração e
confiança nos preconceitos, assim à semelhança de quanto as aldeias, vistas da
estrada onde os automóveis passam, tão sossegadas parecem com as suas pedras
cobertas de colmo, e sugerem ideias de paz.” É o próprio narrador, como se vê,
que explica o que pretende transmitir com a imagem, não fosse o leitor ficar
sem perceber.
Diante
das dificuldades que a relação com Sarah coloca ao trabalho de Bendrix, o amor entre
ambos é alvo de uma outra imagem longa na p. 59: “O nosso amor era como uma
criaturinha apanhada numa armadilha e esvaindo-se em sangue até à morte: eu
tinha de fechar os olhos para torcer-lhe o pescoço.” Este período constituirá
um indício daquilo que virá a acontecer. A fragilidade do amor está patente no
diminutivo, ao mesmo tempo que a palavra escolhida pode revelar a clássica
dificuldade em definir o sentimento. Além disso, a “armadilha” acentua as
dificuldades da relação. O facto de se estar a esvair em sangue reforça o
ferimento e antecipa a morte. Para matar esse amor, o narrador teria de fechar
os olhos, neste caso, deixar de amar, uma metáfora nada usual de racionalidade,
em que “abrir os olhos” é sinal de razão.
No
final do acto amoroso, o cabelo de Sarah é “como licor entornado” (p.78): para
além da textura do próprio cabelo, pode haver uma certa relação entre
embriaguez e clímax; o adjectivo serve para ilustrar o desarranjo causado pelo
próprio acto. As duas comparações que se seguem (“como se tivesse ganho uma
corrida” e “qual jovem atleta”) colocam a tónica nos efeitos físicos e
transmitem uma imagem eufórica.
Relativamente
aos efeitos perniciosos da insegurança nas relações, o narrador utiliza a
imagem de uma cidade cercada: “Numa cidade apertadamente assediada, qualquer
sentinela é um traidor em potência.” (P. 86) Penso que, aqui, se pretende
ilustrar que o excesso de vigilância pode causar a perdição da cidade, ou seja,
do amor.
Na
p. 88, o narrador afirma que “a pena que eu tinha de mim mesmo, mais a minha
fúria, passeavam de mãos dadas pelas avenidas crepusculares como dois doidos
sem enfermeiro.” A riqueza de recursos neste período é impressionante,
começando com uma personificação da pena e da fúria, intimamente ligadas (“de
mãos dadas”), passando pela adjectivação (“crepusculares”) que retoma a falta
de luz como dificuldade de racionalização), terminando com a comparação que
inclui a ideia de patologia descontrolada.
Na
p. 133, no diário de Sarah, confirmar-se-á a dificuldade que qualquer autor
terá em encontrar uma voz que não seja a sua, pois a imagem utilizada pela
amante de Bendrix é própria do narrador: “Tudo é como se estivéssemos
esculpindo a mesma estátua, talhando-a cada um na miséria do outro. Mas nem
sequer sei que imagem é.” A estátua é a “mesma”, ou seja, uma única, isto é, a
relação entre ambos. Tendo em conta o sofrimento dos amantes, a matéria-prima é
a “miséria” (poderá haver aqui uma má tradução de “misery”). O período final
retoma a impossibilidade de definir a relação.
Ainda
no diário de Sarah, há uma extraordinária e cruel de comparação entre a cara de
um superior de Henry e “um engano de cerâmica” (p. 140). Na página seguinte,
para que o leitor perceba a ausência de desejo sexual, os corpos de Sarah e do
marido são “como estátuas jacentes.”
Na
p. 204, na carta que Sarah escreveu, encontra-se uma comparação que poderá
definir o grande problema de Graham Greene ou de muitos crentes: “Apanhei a fé
como quem apanha uma doença.” Não há dúvidas quanto ao sentido pejorativo que
se pretende exprimir. Ao mesmo tempo, de acordo com esta frase, a fé é algo que
acontece e que não se domina. Aliás, imediatamente antes disso, Sarah afirma
que não haveria nada que a pudesse impedir de ter fé, como se fosse uma doença
incurável.
Na
p. 242, aas respostas do Padre Crompton são “como árvores atravessadas na
estrada.” Na realidade, esta comparação confirma a antipatia da personagem: a
“estrada” corresponderá à comunicação entre as pessoas, tornada impossível pela
dureza das respostas.
No
final do romance, Maurice e Henry tornam-se inseparáveis, unidos pela mulher
que os tinha desunido. Na p. 253, o primeiro espreita o sono do segundo e,
depois de ter descoberto que é “apenas um homem”, compara-o ao “primeiro
soldado inimigo que um homem encontra num campo de batalha, morto e indistinguível,
nem Branco, nem Vermelho, um ser humano à sua própria semelhança.” A
infelicidade é uma das várias maneiras de morrer estando vivo e é essa espécie
de morte que une estes dois antigos inimigos, dois rivais tão semelhantes na
sua humanidade. Num romance de um católico tão revoltado com Deus, é curioso
notar o eco do Génesis, com a divindade a ser expulsa, porque o homem é feito à
sua “própria semelhança.”
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