terça-feira, 10 de janeiro de 2017

O Natal no Clube de Leitura

Quando um homem quiser
Por António Nabais 
- Vai chamar pai a outro! Já chega!
Joaquim de São Nicolau explodiu, finalmente, ao fim de vários dias a sentar criancinhas no colo e a ouvir pedidos de presentes e garantias de bom comportamento e boas notas ou de notas mais ou menos e de arrependimento recente, tudo muito gritado ou muito irritante, porque as criancinhas, muitas vezes, são o pior do mundo.
Há mais de uma semana, no único emprego que conseguira arranjar nos últimos sete meses, São Nicolau, Nico para os amigos, sufocava com o calor amazónico daquele centro comercial cheio de gente, de barulho, de compras, de trocas, de pais e de mães a gritar aos filhos que não iam comprar o jogo ou que não iam comer mais gelado ou que não havia gomas para ninguém, mas que, pronto, está bem, só uma natinha, mas que tinham de prometer que iam jantar e comer a sopa toda e tudo e que, sim, pode ser, levamos o jogo, mas que iriam portar-se bem.
Nico afivelava, como se diz nos clássicos, um sorriso bondidoso, típico dos bons velhinhos, e ficara com cãibras nos maxilares, não tanto pelo sorriso, mas antes pela irritação de ver pais e mães e avós e tios a fazerem todas as vontades aos pequenos monstros cada vez mais poderosos, dominadores, arrastando adultos inconsoláveis em direcção a consolas e vendo avós espantados a serem engolidos por embrulhos.
Quando uma criancinha irritante (uma redundância com pernas, portanto) se pôs aos gritos, no seu colo tão massacrado, a revelar ao mundo o ódio a um Pai Natal que não lhe prometia explicitamente a espada automática do rei Skeleton ou o caraças, quando percebeu que os pais tinham mais medo do filho do que próprio Skeleton, caso existisse, explodiu e, sacando da larguíssima manga uma pistola, ordenou ao pirralho que fosse chamar pai a outro e disparou um tiro para o ar, no interior da casinha do Pai Natal, onde estavam apinhadas umas trinta pessoas que ficaram imediatamente em silêncio.
- Esta merda acaba aqui e agora! Toda a gente no chão com as mãos em cima da cabeça!
Finalmente, alguma coisa, mais do que as crianças, metia medo aos adultos. Em pouco tempo, estava tudo deitado, em silêncio. Nico suspirou e teve um sorriso de alívio.
- Até que enfim! Um bocadinho de sossego!

Durou pouco. Do lado de fora da casa, havia gritos e correrias e guinchos e, em breve, a polícia chegou, acompanhada pelos bombeiros e pelo presidente da câmara que explicava aos jornalistas que aquele pai natal, evidentemente, não era do concelho, porque ali só havia gente boa, os bandidos estavam todos na oposição ou no município contíguo.
O especialista em sequestros, ao fim de algum tempo, conseguiu que fosse entregue um telemóvel a Nico e perguntou-lhe quais eram as suas exigências, antecipando autocarros com ar condicionado, um helicóptero para cinco pessoas e entrevistas nos programas da manhã a explicar como tinha resolvido o caso do Pai Natal sociopata.
Nico pegou no telemóvel e explicou:
- Senhor agente… tenente?! Mas o que é que interessa essa merda do posto, pá? Você quer que eu comece a matar gente?! Não me volta a interromper, hã? Ó agente… Tem alguma coisa a dizer? Pois, está a ver? É assim, ó subalterno: o que eu quero é muito simples! Quero que esta miudagem não receba uma única prenda este Natal. Quero a garantia de que não há prendas e acabou. Espere só um bocadinho, que vou perguntar aqui ao pessoal… Ó pessoal! Vocês garantem-me que não vão dar prendas à canalhada aqui presente?
Um pai imprudente balbuciou:
- Mas é Natal…
Nico disparou mais uma vez para o ar:
- Natal? Mas quem é que é o Pai Natal aqui, hã? Quem é que manda nesta merda do Natal?
- Desculpe, não pensei, tem razão…
Uma mãe, habituada a presidir a associações de pais, pediu a palavra:
- Penso que estamos em posição de garantir que nenhum destes meninos receberá prendas este Natal, porque, no fundo, é do interesse de todos, porque nós queremos é o bem dos nossos filhos…
Nico interrompeu:
- Pronto, pronto, menos paleio!
Abrindo muitos os olhos raiados, dirigiu-se às crianças:
- Ouviram? Ouviram bem? Ai de quem peça prendas lá em casa, que eu entro pela chaminé e espeto-vos com um tiro!
Uma menina ainda interveio:
- Mas nós não temos chaminé…
Nico aproximou-se, até quase lhe tocar com o nariz:
- Eu faço uma chaminé onde eu quiser, que eu sou o Pai Natal, percebeste?
Os olhos da menina ficaram imediatamente cheios de lágrimas e baixou a cabeça, sufocando soluços.
Nico gritou para o exterior, anunciando que iria sair com os braços no ar. Pouco depois, estava a ser manietado pelos agentes e desafiado por um tenente vitorioso e complexado. Nada disso impediu Nico de dirigir mais um olhar em direcção às vítimas, esganiçando mais uma ameaça:
- Livrem-se das prendas, já, que eu sou o Pai Natal e saio pela chaminé da prisão e vou ver tudo!
Todas as criancinhas obrigaram os pais a devolver as prendas e todas elas, mas todas, voltaram a acreditar no Pai Natal.



2 comentários:

  1. Hilariante! Sublinho, em especial, a definição de criança irritante _uma redundância com pernas_ e a caricatura de uma mãe habituada a presidir a associações de pais! É que é tal e qual!

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  2. Que Pai Natal tão violento!!! Mas, afinal, a violência é sempre a resposta à tirania...

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