Joaquim de São Nicolau explodiu, finalmente, ao
fim de vários dias a sentar criancinhas no colo e a ouvir pedidos de presentes
e garantias de bom comportamento e boas notas ou de notas mais ou menos e de
arrependimento recente, tudo muito gritado ou muito irritante, porque as
criancinhas, muitas vezes, são o pior do mundo.
Há mais de uma semana, no único emprego que
conseguira arranjar nos últimos sete meses, São Nicolau, Nico para os amigos,
sufocava com o calor amazónico daquele centro comercial cheio de gente, de
barulho, de compras, de trocas, de pais e de mães a gritar aos filhos que não
iam comprar o jogo ou que não iam comer mais gelado ou que não havia gomas para
ninguém, mas que, pronto, está bem, só uma natinha, mas que tinham de prometer
que iam jantar e comer a sopa toda e tudo e que, sim, pode ser, levamos o jogo,
mas que iriam portar-se bem.
Nico afivelava, como se diz nos clássicos, um
sorriso bondidoso, típico dos bons
velhinhos, e ficara com cãibras nos maxilares, não tanto pelo sorriso, mas
antes pela irritação de ver pais e mães e avós e tios a fazerem todas as
vontades aos pequenos monstros cada vez mais poderosos, dominadores, arrastando
adultos inconsoláveis em direcção a consolas e vendo avós espantados a serem
engolidos por embrulhos.
Quando uma criancinha irritante (uma redundância
com pernas, portanto) se pôs aos gritos, no seu colo tão massacrado, a revelar
ao mundo o ódio a um Pai Natal que não lhe prometia explicitamente a espada
automática do rei Skeleton ou o caraças, quando percebeu que os pais tinham
mais medo do filho do que próprio Skeleton, caso existisse, explodiu e, sacando
da larguíssima manga uma pistola, ordenou ao pirralho que fosse chamar pai a
outro e disparou um tiro para o ar, no interior da casinha do Pai Natal, onde
estavam apinhadas umas trinta pessoas que ficaram imediatamente em silêncio.
- Esta merda acaba aqui e agora! Toda a gente no
chão com as mãos em cima da cabeça!
Finalmente, alguma coisa, mais do que as crianças,
metia medo aos adultos. Em pouco tempo, estava tudo deitado, em silêncio. Nico
suspirou e teve um sorriso de alívio.
- Até que enfim! Um bocadinho de sossego!
Durou pouco. Do lado de fora da casa, havia gritos
e correrias e guinchos e, em breve, a polícia chegou, acompanhada pelos
bombeiros e pelo presidente da câmara que explicava aos jornalistas que aquele
pai natal, evidentemente, não era do concelho, porque ali só havia gente boa,
os bandidos estavam todos na oposição ou no município contíguo.
O especialista em sequestros, ao fim de algum
tempo, conseguiu que fosse entregue um telemóvel a Nico e perguntou-lhe quais
eram as suas exigências, antecipando autocarros com ar condicionado, um
helicóptero para cinco pessoas e entrevistas nos programas da manhã a explicar
como tinha resolvido o caso do Pai Natal sociopata.
Nico pegou no telemóvel e explicou:
- Senhor agente… tenente?! Mas o que é que
interessa essa merda do posto, pá? Você quer que eu comece a matar gente?! Não
me volta a interromper, hã? Ó agente… Tem alguma coisa a dizer? Pois, está a
ver? É assim, ó subalterno: o que eu quero é muito simples! Quero que esta
miudagem não receba uma única prenda este Natal. Quero a garantia de que não há
prendas e acabou. Espere só um bocadinho, que vou perguntar aqui ao pessoal… Ó
pessoal! Vocês garantem-me que não vão dar prendas à canalhada aqui presente?
Um pai imprudente balbuciou:
- Mas é Natal…
Nico disparou mais uma vez para o ar:
- Natal? Mas quem é que é o Pai Natal aqui, hã?
Quem é que manda nesta merda do Natal?
- Desculpe, não pensei, tem razão…
Uma mãe, habituada a presidir a associações de
pais, pediu a palavra:
- Penso que estamos em posição de garantir que
nenhum destes meninos receberá prendas este Natal, porque, no fundo, é do
interesse de todos, porque nós queremos é o bem dos nossos filhos…
Nico interrompeu:
- Pronto, pronto, menos paleio!
Abrindo muitos os olhos raiados, dirigiu-se às
crianças:
- Ouviram? Ouviram bem? Ai de quem peça prendas lá
em casa, que eu entro pela chaminé e espeto-vos com um tiro!
Uma menina ainda interveio:
- Mas nós não temos chaminé…
Nico aproximou-se, até quase lhe tocar com o
nariz:
- Eu faço uma chaminé onde eu quiser, que eu sou o
Pai Natal, percebeste?
Os olhos da menina ficaram imediatamente cheios de
lágrimas e baixou a cabeça, sufocando soluços.
Nico gritou para o exterior, anunciando que iria
sair com os braços no ar. Pouco depois, estava a ser manietado pelos agentes e
desafiado por um tenente vitorioso e complexado. Nada disso impediu Nico de
dirigir mais um olhar em direcção às vítimas, esganiçando mais uma ameaça:
- Livrem-se das prendas, já, que eu sou o Pai
Natal e saio pela chaminé da prisão e vou ver tudo!
Todas as criancinhas obrigaram os pais a devolver
as prendas e todas elas, mas todas, voltaram a acreditar no Pai Natal.
O Natal da Fada do Lar (daqui
em diante identificada por FdL) não é a 25 de Dezembro. Isso é para as pessoas
normais.E, obviamente, a FdL não é uma
pessoa normal. É…uma Fada! Logo não lhe chega um dia. Na melhor e mais optimista
das hipóteses é todo um mês.
Portanto, a vinte e tal de Novembro, já enfadadade ver árvores de Natal de
plástico em todas as lojas e centros comerciais da cidade, a FdL prepara-se
estoicamente para enfrentar a discussão ecológica anual com as pessoas verdes que a rodeiam (e
intimamente a consideram pouco menos que homicida), finda a qual estabelece que
a 1 de Dezembro se dirigirá, como habitualmente, à Circumbalação (ler com o
sotaque adequado) para enfrentar um não menos delicado assunto: a altura da
árvore! Aqui, a discussão pode tomar cambiantes inesperados. A começar pelo
pé-direito da sala! Ainda que seja altamente provável e até facilmente verificável
que este não tem o hábito de descer ou subir de uns anos para os outros, a cada
Dia da Restauração, seja ou não feriado, o mesmo diálogo se renova: _ Esta não.
É grande demais e eu não estou para serrar troncos nem galhos! - Grande?!
Grande?! Nem chega ao tecto e eu quero a Minha
Árvore de Natal a chegar ao tecto. A estrela tem de ficar encostada ao
tecto!_ Ah! No ano passado nem conseguiste pôr a estrela! _ Isso foi porque não
serraste o suficiente! Estavas de má vontade! Entretanto a vendedora observa
sem intervir. Só intervirá depois de perceber quem é que verdadeiramentedecide da compra da árvore. _ Ó Sinhore!
Grande isto? Nem dois metros. É das mais piquenas que tenho aqui! E, astuta,
acrescenta: _ E está num bom preço! Este ano tudoparecia, portanto, bem encaminhado para a FdL quando uma inglesa
velha e cheia de sotaque, que saiu de um
carro trazendo a reboque o seu jovemmotorista,resolveu meter-se na conversa: Eu também não
gosto deárvores grandes!It’s a silly thing! Mas o meumarido quer sempreuma árvore até ao tecto e o pé-direito da
nossa sala é muito alto. E lançou um olho guloso à árvore da FdL. Valeu a
pronta intervenção da vendedora:_ Esta é para esta sinhora, minha sinhora. Já
está bendida! E confiante na política do acto consumado, começou a rebocar a
gigantesca árvore para o carro da FdL, dando instruções precisas sobre bancos e
bagageiras sem dar espaço a hesitações de última hora. Minutos mais tarde,
sentada no banco da frente com três galhos a furarem-lhe a nuca, a FdL pensava
consolada: A letra A já está!
Na ordem alfabética da lista de
tarefas de Natal de uma FdL, a seguir à letra A segue-se a letra P: presentes.
Primeira grande preocupação: não repetir presentes. Logo, o primeiro passo é
consultar a lista de presentes dos últimos anos para não voltar a ouvir _
Obrigada! Gosto muito! Mas já tenho uma
igual que me ofereceste há três anos!
Ser FdL exige, assim, toda uma
logística e o cumprimento rigoroso de
um Protocolo de Procedimentos sob pena
de perda do seu precioso estatuto de FdL.
As duas semanas seguintes são,
portanto, destinadas às “compras de
Natal” e a dar voltas à imaginação para encontrar o presente ideal para cada um.
Quanto ao seu próprio presente, a FdL há longos anos que decidiu dar sobre isso
explicações detalhadas ao Pai Natal,
farta que estava de receber leões em prata, numa primeira fase ou, em fase
posterior, romances de Lobo Antunes, autor que, desde Fado Alexandrino, se recusa a ler.
Assim chegada à terceira semana
de Dezembro, a FdL confronta-se com a terceira letra da sua peculiar ordem
alfabética, a letra B: o Bacalhau! E aqui as coisas começam a aquecer.
Congelado ou seco? A FdL é adepta fervorosa do primeiro, seguro e confiável
como é próprio de um peixe que dá pelo nome de Fiel Amigo, mas os puristas do
Natal, os tradicionalistas intransigentes, não abrem mão do bacalhau seco e são
capazes de mergulhar em discussões acesas sobre
qual o melhor local para nascer quando se é um bacalhau. Em regra ganham
os defensores da Noruega, aniquilando os seus opositores com… a cura amarela!
Deixando bem claro que não intervirá em coisas como “mudar a água ao bacalhau”,
a FdL, pode até abdicar das suas convicções e, ano sim ano não, cede aos
incompreensíveis caprichos dos
indefectíveis do “bacalhau como deve ser”.
E o Natal aproxima-se a passos
largos. É preciso pensar nos doces tradicionais, uns mais tradicionais que outros.
As letras do alfabeto começam a enlouquecer: volta o A, agora da aletria, volta o B , agora do bolo inglês,
surge o R das rabanadas, volta o P, agora
do pudim francês e a girândola de letras ganha velocidade na perseguição
à fruta cristalizada: o N, o C , o A, o P! As nozes, as cerejas, não esquecer
as passas! E a tia que não dispensa as amêndoas e o primo que pergunta sempre
pela abóbora cristalizada!
E enquanto sorri, sentada à mesa da
consoada, olhando por cima das velas e das rosas, a Fada do Lar pensa: E se eu falasse com a minha prima americana e me
passasse para o Clube das Fadas dos
Dentes?
Os olhos verde erva da Vitória abriram-se muito à medida que
o arroz – doce ia desaparecendo do prato e em seu lugar, aparecia um jardim de
uma terra de um país onde não havia balas a atravessar o corpo das pessoas, uma
terra onde as pessoas se amavam e dançavam ao som de uma música de fundo muito
suave quase imperceptível.
Através dos seus olhos entrou no fundo do prato e emigrou
para esse país, onde os pavões passeavam as suas longas e majestosas caudas por
entre os leandros e buchos dos jardins. Esse país onde o céu era dum azul
pleno, o azul dum mar profundo onde os barcos não se afundavam cheios de gente,
de meninas como ela, de pais e de irmãos, como os que ela já não tinha.
Dos olhos da Vitória soltou-se uma lágrima. Vitória deixou
de ouvir a história que aquela mulher tão bonita contava e começou a sentir a
música tocada naquele jardim daquele país onde acabara de entrar. O jardim
principiou então a animar-se. Uns meninos brincavam com bolas, outros faziam
piruetas em cima de patins e deslizavam a uma velocidade por ela nunca vista,
outros brincavam aos jogos iguais aos da sua aldeia natal e sempre, sempre com
os pais a murmurarem baixinho que tivessem cuidado, com risos entrecortados
entre eles!
De repente repara num banco desse jardim. Vitória estava lá,
ao lado do seu irmão. “Vês Vitória como ainda podemos ser felizes?”Era o
entardecer. O sol doirava os mil vidros das janelas das casas que circundavam o
jardim. A música soava agora num crescendo constante. E Vitória teve medo. Apertou
a mão do irmão e pediu: “ Não me deixes, tenho medo” e a sua voz era apenas um
murmúrio. O rapaz sorriu e apertou-lhe a mão. “ Não vês que não é possível?
Tenho que regressar. Os nossos pais esperam-me além, no mar”. “ Não vás ainda.
Fica mais um pouco, por favor”.
Dos olhos verdesda Vitória soltou-se uma lágrima e
lentamente a imagem do irmão começou a esbater-se, até desaparecer por
completo. Vitória achou-se sozinha sentada no banco daquele jardim, naquele
país tão distante onde as balas não entram!
“ Que se passa Vitória? Há dentro da tenda mais arroz-doce”.
A bela senhora de colete azul arrancara-a ao seu enleio. Os outros meninos riam
e já jogavam, naquele campo cheio de tendas, os jogos da terra que foi sua,
quando as balas não sopravam por entre as casas e os bosques,
do lugar que chamou de seu país.
Disfarçadamente limpou os olhos e sorriu: “ Tinha uma
pestana no olho. Mas aceito mais arroz doce”.
A senhora trouxe-lhe outro pratinho. Vitória arrebatou-o das
mãos e comeu o arroz todo num ápice. Sofregamente olhava para o fundo do prato
à procura do país do seu sonho! Havia uma árvore e uma menina sentada,
encostada ao seu tronco. Mas a menina estava irremediavelmente só.
Na sessão do dia 4 de Novembro de 2016, não se discutiu uma obra previamente escolhida. Desta vez, cada um escolheu um livro sobre que falar . E as escolhas foram estas:
"Alentejo Prometido" de Henrique Raposo analisado por António nabais
"Se Isto É Um Homem" de Promo Levy por Maria João Leite de Castro
"A Sombra do Que Fomos" de Luís Sepúlveda por Alexandra Azevedo
Alentejo Prometido (O romance do Raposo)
por António Nabais
O nosso pensamento é
tendencialmente estruturalista, deseja taxinomias, incomoda-se com desvios ou
com o inexplicável, perturba-o a realidade, que é móvel, inclassificável,
tantas vezes caótica, avessa a quem a estruture, pensando-a.
Este conflito durará tanto
tempo quanto durar a humanidade, com certeza. Deste impulso classificador e
arquivístico resulta, por exemplo, a caracterização de povos. Assim, os alemães
são organizados, os portugueses não, os espanhóis são alegres, os italianos
faladores, convencidos os franceses.
É verdade que muitas destas
afirmações são verdadeiras, mas não deixa de ser um risco tentar captar a alma
de um povo, psicanalisar a
personalidade de uma nação, especialmente se o fizermos com base em impressões
ou porque só o podemos fazer sobretudo com base em impressões.
Henrique Raposo é um licenciado
em História e mestre em Ciências Políticas. É cronista do Expresso e já publicou vários livros, nomeadamente Alentejo Prometido.
O espaço mediático actual está
sobrecarregado de opiniões, o que não é o mesmo que dizer análises ou rigor.
Não é forçoso, evidentemente, que a as primeiras impliquem as outras duas, mas
há uma inflação que leva a que cronistas e comentadores escrevam profusamente
com uma enorme leviandade, resolvendo as grandes questões da humanidade em duas
penadas, porque podem. Foi assim que Henrique Raposo, numa crónica, decidiu que
a natalidade desceu porque a sociedade é egoísta e porque não há problemas
económicos, porque quem tem um filho tem dois. Note-se que há um fundo de
verdade na ideia do egoísmo, mas deixa de fazer sentido quando é apontada como
sendo a única causa ou quando se desvaloriza levianamente a importância do
dinheiro.
Não se pede ao Henrique Raposo
cronista que esteja sempre a recorrer ao historiador diplomado que também é,
mas o rigor do segundo deveria, no mínimo, impedir o primeiro de escrever
disparates que ficam bem numa conversa de café, depois de umas cervejolas a
mais, e que caem mal em livro ou num jornal de referência. Diga-se o mesmo, por
exemplo, a propósito de Miguel Sousa Tavares, o cronista que prescinde de tudo
o que jornalismo lhe deveria ter ensinado, especialmente quando escreve sobre
Educação ou sobre professores.
Alentejo Prometido é um livro de impressões, com alguns bons
arremessos literários. Não se esperaria que o autor produzisse, portanto, um
tratado ou uma análise sociológica, mas a distância entre Raposo e o Raul
Brandão de Os Pescadores ou o Ramalho
de A Holanda é abissal, para não
incluirmos livros que também pensaram Portugal e os portugueses como Os Maias ou Viagens na Minha Terra. Henrique Raposo é, apenas, um Eduardo
Lourenço de fancaria ou um António Sérgio de plástico, porque quer escrever
sobre a realidade portuguesa, mas perde pouco tempo a pensar. E é sabido que
não se deve falar (ou escrever) antes de pensar.
Henrique Raposo tem direito a
ter vergonha das suas origens, tem direito dizer mal da terra dos antepassados
e tem direito a escrever disparates com que procura encontrar razões para a
vergonha, mesmo que a razão as desconheça. Ao longo dos anos, este espécime
transformou-se num dos meus ódios de estimação e, no fundo, agradeço à
Alexandra o ter-me incumbido de ler este livrinho, porque juntei alimento para
este meu saudável vício de abominar o Raposo.
A tendência para generalizar
sobre habitantes de países ou de regiões radica no nosso desejo de arrumar a
realidade, como já vimos, mas, de uma maneira geral, não resiste a uma análise,
especialmente se se basear apenas em impressões ou em preconceitos. É o que
acontece com o livro do Raposo. Passarei a comentar alguns excertos.
A dada altura, Raposo refere o
facto de a bastardia ser comum no Alentejo, dando Nicolau Breyner e Manuel
Alegre como exemplos de rapazes de boas famílias que “iniciavam a vida sexual
impondo-se às criadas e trabalhadoras.” (p. 36) Para além do pormenor de Manuel
Alegre ser de Águeda, em que se baseia Henrique Raposo para dizer que é um fenómeno
mais presente no Alentejo do que noutras regiões? Curiosamente, na p. 91,
Raposo declarará, talvez distraído: “a cultura machista do sul é idêntica à
cultura machista do norte.” É: o machismo é muito parecido em todo o lado.
Outra especificidade alentejana,
na visão de Raposo, é a violação das mulheres em locais isolados. O
cronista-também-historiador escreve, a propósito, o seguinte: “Quando lemos
relatos da época é impossível não ficarmos incomodados com uma certa atmosfera
muçulmana que reinava nestas bandas. Uma mulher sozinha algures na seara ou no
casão das máquinas era presa fácil; se estivesse sozinha é porque estava a
pedi-las.” (p. 39). Pergunta-se: os alentejanos violam mais que o resto dos
portugueses? Coube aos muçulmanos o exclusivo histórico da violação, face ao
pudor e ao cavalheirismo dos cristãos?
A propósito do tema da
violação, Raposo acrescenta que as alentejanas violadas serão, no futuro, o
verdadeiro símbolo da opressão no Alentejo, ao contrário da “ceifeira Catarina
Eufémia” (p. 41). Na p. 59, surge, mais uma vez, uma referência à jovem
camponesa assassinada em Baleizão: “o grande símbolo alentejano não é Catarina
Eufémia, mas sim António Dias Matos.” Conjecturemos: o horror de Raposo à
esquerda, às greves e às revoltas sociais levam-no a desvalorizar uma das
muitas histórias de exploração e de abuso, histórias que, evidentemente, também
não são específicas do Alentejo. Em que é que o peso histórico da violação
compete com a longa história dos abusos cometidos por patrões e proprietários
de todo o mundo?
Nas pp. 51-52, Raposo recorre
ao futebol para aprofundar os defeitos dos alentejanos, uma gente sem virtudes,
pelo menos neste livro: “O União nunca sairá da Liga dos Últimos porque quando
chegamos a Santiago só vemos pessoas sozinhas a andar de um lado para o outro;
quando chegamos a Arouca vemos pessoas a falar em grandes grupos.” Uma análise
ligeiramente mais aprofundada, e só ligeiramente, permitiria descobrir que os
clubes de futebol com melhores resultados estão situados, de uma maneira geral,
em cidades ou em regiões mais desenvolvidas: na primeira divisão, não há um
único clube algarvio e, este ano, o Desportivo de Chaves é o único clube
transmontano. E que dizer dos catorze anos seguidos que o Lusitano de Évora
esteve na Primeira Divisão? Será que, durante esse período, as pessoas falavam
nas ruas eborenses em grandes grupos, andando a evitar-se desde então?
Mais à frente, na p. 63, Raposo
desvaloriza as condições de vida como fonte dos problemas sociais: “(…) a marca
de água do alentejano não é a pobreza ou o calor.” Os problemas dos alentejanos
têm as seguintes causas: “anarquia, guerra, guerrilha, banditismo, maltesiaria,
ditadura, repressão.” Ainda na mesma página, um dos problemas apontados por
Raposo é “os vapores da reforma agrária.” Note-se que os problemas de qualquer
região do mundo podem ter causas complexas e contraditórias que não se excluem.
Raposo é que prefere excluir algumas, porque, ao longo do livro, prefere
afirmar que os problemas dos alentejanos, no fundo, derivam dos seus defeitos e
nunca das condições que lhes tenham sido impostas, sendo que estas não apagam
aqueles.
Numa visita ao “berço lunar” do
pai (p. 64), ocorre a Raposo uma “explicação ainda mais simples para a cultura
alentejana e para a minha família.” Já se sabe que uma pessoa pode ter uma boa
ideia quase sem querer, mas vejamos. Depois de ter descrito o sítio em que o
pai passou a infância, mostrando que era um local com uma aridez raríssima para
o próprio Alentejo, eis que Raposo consegue, mais uma vez, enunciar uma
característica exclusivamente alentejana: “É óbvio que a minha avó só podia
considerar absurda a ideia de um neto superar o seu meio social: ela criou os
filhos num local onde era natural a ideia do homem superar o seu meio natural.”
Psicologia barata e sociologia de bolso: onde está a especificidade? Quantos
pais e mães, em todo o país, nos meios rurais pobres do século XX, acreditavam
na possibilidade de ascensão social dos filhos ou dos netos?
Mais uma especificidade
alentejana consiste, segundo Raposo, nos padres que quebram, até
ostensivamente, o voto de castidade (p. 77). Podemos sempre colocar a hipótese
de que todo o país seja, afinal, o Alentejo, tal a profusão de histórias sobre
padres que viveram matrimónios de facto, contra todos os direitos.
Sobre a questão do suicídio,
Raposo tem explicações coerentemente simplistas, recusando a solidão como uma
das causas, chegando ao ponto de afirmar que a “fraca religiosidade é uma
alavanca suicida” (p. 86), o que necessitaria de uma argumentação mais
sustentada, uma vez que a História está carregada de gente que morre (também
através do suicídio) em nome da religião. Aceitar-se-ia, por exemplo, que a
pouca importância dada aos dogmas católicos leve a que o suicídio não seja
visto como um pecado e, portanto, surja como uma solução fácil. Ainda assim, as
razões serão bastante mais complexas do que as enunciadas por Raposo.
Henrique Raposo não gosta dos
alentejanos e está no seu direito. Um psicólogo poderá descobrir se isso
resulta de vergonha, de trauma ou do facto de o cheiro a comunismo ser
demasiado forte para a pituitária do cronista. Este livro é a manifestação
desse sentimento, com direito a arroubos de argumentação e a uns pozinhos
estatísticos. Antes de Raposo, outros souberam escrever sobre as suas
antipatias ou sobre as suas paixões, mas o nosso autor tem demasiada
auto-estima para poder corrigir as suas insuficiências: declarando-se um autor
“fora da caixa” e politicamente incorrecto, desvalorizará facilmente os seus
críticos, porque irá considerar que são incapazes de o compreender. Uma
adivinha, a propósito: quem será o autor de um livro intitulado História Politicamente Incorrecta do
Portugal Contemporâneo?
Adenda: declaro,
solenemente, que abomino todas as pessoas que ameaçaram o Henrique Raposo. E
abomino, por duas razões: em primeiro lugar, porque sou contra a censura;
depois, porque temo que o Raposo possa acobardar-se, deixar de escrever e
privar-me de um dos meus melhores ódios de estimação.
Se isto é um homem
de
Primo Levi
por
Maria João Leite de Castro
Primo Levi (31/07/1919 -
11/04/1987) vai para Auschwitz em 1944, tinha 24 anos. Com ele, iam 650 judeus
italianos. Destes, só 20 sobreviveram. Foi libertado em 27/01/1945, tendo
permanecido no campo 11 meses.
No livro, Levi narra o
horror que ele e centenas de milhares de outras pessoas, de outras histórias,
todas dramáticas, todas simples e incompreensíveis como as histórias da Bíblia
(e interroga-se e não são, elas próprias,
histórias de uma nova Bíblia?) vivem em Auschwitz. A sua escrita é depurada
de artifícios, de sentimentalismos desnecessários que ofuscariam o essencial, a
objectividade da narrativa. É uma escrita urgente e reflexiva. É a escrita de
alguém que, apesar de ter sido sujeito à maior adversidade, à maior humilhação
e despojamento físico e moral, não perdeu a sua humanidade.
Nota
prévia: visto que fomos convidados a falar sobre um livro que,
de alguma forma nos marcou, a minha análise vai ser mais subjectiva,
centrando-me mais naquilo que o livro me disse do que na totalidade do que o
livro diz. Naturalmente que uma ideia não pode ser separada de outra.
Li o livro pela primeira vez
em 2000, quando tinha acabado de fazer uma tese de mestrado exactamente sobre a
questão do mal (O absurdo do mal e o
lugarda práxis). Li e trabalhei
autores para quem o mal era uma absoluta fatalidade, uma doença ontológica (René Girard) , enquanto para outros (Paul
Ricoeur), o problema do mal, embora não possa ser conceptualizado num sistema
explicativo, embora continue absurdo e escandaloso, não inviabiliza uma via da
regeneração, nem nega o lugar da esperança e da acção.
O problema do mal, para
Ricoeur, não é …um problema meramente
especulativo: ele exige a convergência entre o pensamento, a acção (no sentido
moral e político) e a transformação espiritual dos nossos sentimentos.
Os horizontes da prática, ou
as respostas para o mal são, para Ricoeur, a acção política, a narrativa
(aquela que recorda as vítimas), a religião e culmina na sabedoria,
representada na Filosofia da Vontade, pela personagem de Job. É nele que
encontramos a transformação espiritual dos sentimentos que em cima referimos.
Job escapa à moral da retribuição.
Numa altura em que Bob Dylan
ganha o prémio Nobel da Literatura e face a tão diversas, saudáveis, antagónicas
e até extremadas posições sobre este facto, impõe-se talvez questionar
/repensar o que é a Literatura:
Domínio
técnico exímio da escrita e construção perfeita de narrativas coerentes?
Criações
originais e belas, independentemente da sua coerência estrutural,
despoletadoras de sentimentos e emoções marcantes?
Formas
originais e únicas de narrar uma realidade ou uma perspectiva dessa mesma
realidade?
Forma
privilegiada de transmitir uma mensagem, de dizer o indizível, de gravar
uma memória que não pode ser apagada?
Penso que é neste último
registo que a obra de Primo Levi, “Se isto é um homem” se inscreve. Aliás, ele
próprio o afirma: A necessidade de contar
aos “outros” de tornar os “outros” conscientes, tomara entre nós, antes e
depois da libertação, o carácter de um impulso imediato e violento, a ponto de
rivalizar com as outras necessidades primárias (pág.10).
Isto não significa que o
livro não seja primorosamente escrito e que não seja, em certos momentos, belo,
de uma beleza literária comparável ao Requiem de Mozart e belo também na
descrição de sentimentos que surgem no campo como estrelas de luz que parecem anular
a sua densidade negra, fétida e sufocante. Belo ainda porque, apesar de todo o
absurdo e de todo o escândalo que o campo representa, apesar de por a nu o lado
mais tenebroso da condição humana, nos permite continuar a crer numa certa
forma de regeneração.
É o próprio primo Levi que a
apresenta :
(…) Neste mundo abalado cada dia mais profundamente pelas convulsões do fim
próximo, entre novos terrores, esperanças e intervalos de escravidão
exacerbada, aconteceu-me encontrar Lorenzo.
(…)
Em termos concretos, reduz-se a pouca coisa: um operário civil italiano
trouxe-me um bocado de pão e os restos do seu rancho, todos os dias, durante 6
meses; ofereceu-me uma camisola sua cheia de remendos; escreveu por mim um
postal para a Itália e fez-me chegar a resposta. Por tudo isto, nem pediu nem
aceitou alguma recompensa, porque era bom e simples e não achava que o bem
pudesse fazer-se para obter compensações (…).(pág.122)
(…)
Por mais sentido que faça querer definir as causas pelas quais precisamente a
minha vida, entre milhares de outras equivalentes, pôde aguentar a prova, creio
que devo justamente a Lorenzo o facto de estar vivo hoje; não tanto pela sua
ajuda material, quanto por me ter constantemente lembrado com a sua presença,
com a sua maneira tão linear e fácil de ser bom, que ainda existia um mundo
justo para além do nosso, algo e alguém ainda puro e incontaminado, não
corrupto e não selvagem, alheio ao ódio e ao medo; algo que mal se pode
definir, uma remota possibilidade de bem, pela qual, porém, valia a pena
conservar-se.
As
personagens deste livro não são homens.(…)
Mas
Lorenzo era um homem; a sua humanidade era pura e incontaminada, estava fora
deste mundo de negação. Graças a Lorenzo, aconteceu-me não esquecer que também
eu era um homem. (pág.125)
A Sombra do Que Fomos
de Luís Sepúlveda
por Alexandra Azevedo
Cacho
Salinas odiava os frangos, as galinhas, os patos, os perus, qualquer bicho que
tivesse penas, mas mesmo assim parou diante do grelhador onde rodavam
lentamente uns quarenta broilers,
alinhados como os soldados cibernéticos de A
Guerra das Estrelas.
_
Como estão os frangos? _ perguntou ao vendedor que meditava, perdido nas
páginas desportivas de um jornal.
_ Em
pêlo, mortos, como quer que estejam?_ respondeu o aludido.(…)
Desculpa
se fui malcriado, mas fodem-me a cabeça todo o dia, seja queixando-se dos
frangos, seja pedindo-me os currículos. (…)
O
vendedor tinha sido, e era, comunista_ porque isso é como uma verruga moral que
nunca se arranca _, precisou. Também era retornado ao país após dez anos de
exílio na Suécia. Suspirava ao referir-se a Gotemburgo, às suas ilhas, ao mar
cor de aço, àquelas mulheres que_ especificava _ escolhem livremente e com
alegria o macho que desfrutará da cama Ikea e com quem não há truque que valha.
A sombra do que fomos, Luís Sepúlveda
“A sombra do que fomos”
é um livro que se lê com um sorriso nos lábios e uma lágrima ao canto do olho.
Os heróis deste
romance, ou melhor, os anti-heróis deste romance são quatro homens de sessenta
anos e como o próprio título deixa entrever pelo uso da primeira pessoa, há
algo de autobiográfico nesta narrativa.
Na verdade, Cacho
Salinas, Lolo Garmendia, Lucho Arencibia
e Pedro Nolasco são antigos revolucionários, militantes de esquerda no
Chile que o golpe de estado de Pinochet atirou para o exílio tal com aconteceu
ao próprio Luís de Sepúlveda. Membro da Unidade Popular Chilena, nos anos
setenta, também Sepúlveda teve de abandonar o Chile após o golpe de direita que
mergulhou o país numa ditadura sangrenta e actualmente vive em Gijón, Espanha,
depois de ter deambulado pela Europa, nomeadamente Paris e Hamburgo.
“A Sombra do que Fomos”
aborda justamente a temática do regresso. Mas o regresso é impossível porque
impossível é regressar ao passado: do
exílio não se regressa…qualquer intenção de o fazer é um engano, uma tentativa
absurda de habitar um país guardado na memória. E tudo é belo no país da
memória, não há percalços no país da memória, não há tremores e até a chuva é
grata no país da memória. O país de Peter Pan é o país da memória.
Assim o encontro que os
quatro homens tinham marcado, numa Santiago chuvosa, para realizar uma última e
definitiva acção revolucionária em plena primeira década do século XXI, é
cómica e absurdamente abortado quando, no calor de uma disputa conjugal, insolitamente,
um gira-discos voa de uma janela e vitima Pedro Nolasco, o cérebro da operação.
A
narrativa flui, leve, num registo discursivo apesar de tudo sem amargura e onde,
pelo contrário, o humor é uma constante. Os três revolucionários, agora órfãos
de revolução, entreolham-se um pouco confusos, hesitantes em redescobrir
naqueles rostos envelhecidos, os temerários esquerdistas de outrora,
intimamente temendo o ridículo de procurar refazer uma luta a que se recusam a
reconhecer o esvaziamento produzido pelo passar do tempo e consumado ao ritmo
das experiências no mundo capitalista, experiências lamentavelmente agradáveis.
A mulher de um deles, por exemplo, suspira continua e indecorosamente por
Berlim…
A
tudo isto se junta um sábio inspector que investiga o misterioso assassínio e
as indispensáveis transcrições de mails que qualquer romance de hoje em dia não
dispensa.
“A
sombra do que fomos”, um romance de Luís de Sepúlveda de2009, recebeu o
prémio Primavera do Romance, um prémio atribuído desde 1997 pela editora
madrilena Espasa Calpe, criado com o objectivo de apoiar a criação literária e
contribuir para a difusão do romance em língua castelhana no mundo
hispano-americano. A dotação do prémio é generosa: 200 000€ mais publicação. É
entregue durante o mês de Março do ano seguinte à sua atribuição. Na Primavera.