terça-feira, 20 de novembro de 2012

O Museu da Inocência


A Vingança de Fusun
por Alexandra Azevedo

Um  museu é um lugar  onde o tempo fica cristalizado, suspenso. Mas o tempo cristalizado nos museus não é um tempo qualquer. É um tempo de que se tem orgulho e se quer, por isso, eternizar. “ Sim, é esse o fulcro da questão, Orhan Bey: o orgulho” diz Kemal Basmaci, “ é ele que ocupa o lugar central num museu.
Assim, e aparentemente, a intenção de criar um museu tão insólito quanto um “museu da inocência” residiria no objectivo enunciado por Kemal no final do romance: ”Com o meu museu quero ensinar, não só ao povo turco, mas a todos os povos do mundo, que devem orgulhar-se da vida que levam”.
 Os objectos recolhidos neste museu, objectos quotidianos e sem história, destinados ao desaparecimento e ao esquecimento estariam, portanto, ao serviço da redenção dos povos periféricos, do seu próprio ponto de vista, em relação ao Ocidente: “Viajei por toda a parte e vi com os meus próprios olhos: enquanto o Ocidente se orgulha de si, quase todo o resto do mundo vive cheio de vergonha. Mas se os objectos que nos fazem sentir envergonhados forem exibidos num museu, transformar-se-ão imediatamente em posses das quais nos podemos orgulhar. ”
No entanto, como explicar o nome dado a um museu que exibe objectos como beatas de cigarro, pentes, sapatos, colheres, travessões de cabelo ou lenços? De que inocência se trata? Inocente é aquele que está isento de culpa. E quem é inocente, neste romance? Não certamente Kemal Basmaci, pois na verdade, Kemal não ama Fusun como julga ou como quer crer e fazer crer. No início, aceita como natural ter Fusun como amante e ficar noivo de Sibel, na presunção de que Fusun cumpriria o papel que lhe cabia: continuar sua amante tal como a amante do pai (personagem sem nome a quem o pai se refere apenas como ela) fizera exemplarmente. Mas Fusun é de outra geração, não quer representar esse papel e recusa continuar uma ligação em que não é a protagonista, ainda que jure que não será de mais ninguém. A surpresa desta atitude tem em Kemal efeitos devastadores, mas nem por momentos avalia a possibilidade de romper com o percurso previamente delineado pela posição  social que ocupa; mais tarde, reatado o contacto com Fusun, sendo esta já casada (um casamento de conveniência e de  fachada decidido pelos pais para salvar as aparências), embora descreva com pormenores extremos a perturbação que lhe causa a proximidade das mãos de Fusun, do ombro de Fusun, da pele de Fusun, incansável e repetidamente  descritos, mostra-se insensível ao desejo  natural desta de ter uma vida própria e seguir a sua vocação de actriz de cinema. E num conluio bizarro com o marido, conspira para que todas as suas expectativas saiam goradas, ainda que lhe afrme que partilha essa ambição e de que  tudo faz para alcançar esse objectivo, criando inclusivamente uma produtora cinematográfica a Lemon Films que teria como principal missão lançar a sua carreira.
Desenganada, Fusun vinga-se. A sua vingança é a maior que poderia infligir a Kemal: impedi-lo definitivamente de a amar, de gozar plenamente a  sua presença,  precisamente agora, que ele, finalmente, conseguira romper as amarras que o tinham impedido de  enfrentar por ela as convenções sociais. Fusun não lhe perdoa: “Por tua causa não tive a oportunidade de viver a minha própria vida, Kemal_ acusou ela_ Eu queria ser actriz.” “Vocês os dois tinham tantos ciúmes, tanto medo que eu me tornasse famosa e vos deixasse, que tiveram que me manter em casa.”  A Fusun resta, assim, acelerar conscientemente para morte: “Na minha opinião, embora Fusun estivesse um pouco embriagada quando avançou a cento e cinquenta quilómetros por hora, direita àquela árvore com cento e cinco anos, parecia saber exactamente o que estava a fazer.” 
E é deste modo que os ganchos do cabelo de Fusun, o brinco de Fusun, a beata fumada por Fusun, são exibidos num museu: não enquanto objectos do quotidiano de que os povos que se vêem a si próprios como periféricos se devem orgulhar, tal com anunciado explicitamente no romance,  mas  enquanto meio para exorcizar os remorsos, aliás, nunca explícitos de Kemal, pois, tal como diz o próprio “Os museus deveriam mostrar-nos as nossas vidas. O meu museu engloba a vida que partilhei com Fusun e a totalidade da nossa experiência, e tudo o que lhe contei é verdade, Orhan Bey: Talvez algumas coisas não sejam suficientemente claras para todos os leitores ou visitantes, já que, embora eu lhe tenha contado a minha história e descrito a minha vida  com absoluta sinceridade, nem eu próprio sei ao certo quanto da mesma percebi enquanto um todo. Podemos deixar essa tarefa para futuros estudiosos e para os artigos que eles escreverão para a Inocência, a revista do museu”  

 E é justamente na medida em que confessa não saber ao certo quanto entendeu da sua própria vida que Kemal se vê como um inocente, mas um inocente com remorsos, afinal tal como o pai, pois quando a vida o colocou perante o dilema de seguir a tradição tranquilamente machista da sociedade turca ou não aceitar a subjugação das mulheres de que a sociedade turca mais ortodoxa se orgulhava, não foi capaz de tomar a decisão que no seu íntimo, mais uma vez tal como o pai, sabia ser a correcta.
 Assim, os objectos  postos  ao serviço da redenção da sua culpa sem perdão, são de um tempo pouco inocente do ponto de vista das vítimas, e de que a sociedade turca nada tem para se orgulhar.


2 de Novembro de 2012
Alexandra Azevedo






domingo, 18 de novembro de 2012

O Museu da Inocência




O MUSEU DA INOCÊNCIA, Orhan Pamuk,  2010                                              Clube Leitura Nov.2012 

O TABU DA VIRGINDADE _  Sessão de Karaoke  por Manuela Pereira 

AS QUE USAM MINI-SAIA  (versão light para Virgens de Os Maridos das Outras, Miguel Araújo 2012 /Azeitonas)


Toda a gente sabe que as virgens são puras
São o arquétipo da perfeição
de boas famílias e educação
sabem preservar-se castas
sabem preservar-se puras
Toda a gente sabe que as virgens são puras

Toda a gente sabe que as virgens são belas
Estão destinadas a casar  (e a procriar)
e as que se deixam violar
têm tiras pretas
a tapar os olhos delas
Toda a gente sabe que as virgens são belas

Mas as que usam mini-saia nã0
Porque as que usam mini-saia são
as amantes da diversão
vorazes por satisfação
Dispostas a tudo são criaturas de aluguer
que servem para fazer felizes as escapadelas de um qualquer
E tudo o que as virgens não, e tudo o que as virgens não, e tudo o que as virgens não
As que usam mini-saia são, as que usam mini-saia são

Toda a gente sabe que as virgens são inocentes
A virgindade é o seu maior tesouro
a sua honra vale mais que ouro
Não olham os homens
baixam  (a cabeça) delicadamente
Toda a gente sabe que as virgens são inocentes

Toda a gente sabe que as virgens são sérias
As noivas podem entregar-se então
a homens com boa intenção
Mas não vão em lérias,
mas não vão em lérias
Toda a gente sabe que as virgens são sérias

Mas as que usam mini-saia não
Porque as que usam mini-saia são
as amantes da diversão
vorazes por satisfação
Amadas criaturas de outra espécie qualquer
que servem para fazer felizes as escapadelas de um qualquer
E tudo o que as virgens não, e tudo o que as virgens não, e tudo o que as virgens não
As que usam mini-saia são, as que usam mini-saia são .                                                                                
                                                                                                                                                                                            Manuela Pereira



terça-feira, 2 de outubro de 2012

O Museu da Inocência




Orhan Pamuk no museu da Inocência inaugurado a 27 de abril de 2012
 
 Numa casa vermelho-escura otomana no distrito de antiquários de Istambul, um bairro em acelerada ascensão social onde objetos trabalhados em bronze se espalham nas calçadas de íngremes ruas de paralelepípedos, está tomando forma um museu idiossincrático.

Ao entrarmos, a primeira coisa que vemos é uma parede inteira pontilhada de pontas de cigarros uniformemente espaçadas - prova da prolongada agonia de um homem que furtivamente guardou 4.213 bitucas dos cigarros de sua amada depois que ela se casou com outra pessoa. Mas a palavra "obsessão" é desestimulada, diz Orhan Pamuk, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, enquanto supervisiona os toques finais de seu Museu da Inocência.

Pamuk, um artista "manqué", estudou arquitetura, mas migrou para a literatura aos 23 anos. Seu "museu sentimental" foi concebido em meados da década de 1990 como contraponto a seu oitavo livro, "O Museu da Inocência" (2008) - publicado depois que ele recebeu o Nobel em 2006. Como o autor, seu herói Kemal nasceu na abastada burguesia de Istambul. Mas após um envolvimento amoroso com Füsun, bela vendedora e distante parente pobre, Kemal rompe um noivado oficial para tentar reconquistá-la. A história tem os contornos dos melodramas televisivos turcos (Pamuk passou uma temporada escrevendo roteiros na década de 1980).

Mas a dor é real em um romance que, como grande parte da ficção de Pamuk, sonda as ansiedades e falsidades da vida, em que a sensação é de uma sociedade atrasada, embora imite uma modernidade ocidentalizada. A amada de Kemal morre e - incapaz de encontrar paz - ele constrói um museu com os objetos que ela tocou, enquanto Pamuk reúne lembranças para inspirar a narrativa.

Na demorada reta final até a abertura do museu, Pamuk está bastante animado, dançando em torno das escadas de pintores e da fiação ao som do ruído ensurdecedor de furadeiras e serras ("Eu não vou dizer para eles irem embora - eu quero que isso seja autêntico", ele berra, com um sorriso). Aos 59 anos, alegria e entusiasmo o tornam ainda mais juvenil. Em 1998 ele comprou uma dilapidada casa de esquina em Cukurcuma, nas ruelas de Beyoglu, do outro lado do Chifre de Ouro, em relação aos palácios de Sultanahmet, mas foi frustrado pela lentidão da reforma.

"É como construir uma casa: a burocracia - o encanador nunca vem na hora combinada. Honestamente, muita lamentação e arrependimento foi investido nela." Pamuk diz ter devolvido uma pequena verba destinada pela cidade de Istambul por causa de um "acirrado embate político" e bancou "95%" do projeto com dinheiro proveniente de seus direitos autorais, trabalhando com arquitetos turcos e alemães, entre eles Ihsan Bilgin e Gregor Sunder-Plassmann. Ele também teve de contratar guarda-costas, em razão de antigas ameaças de morte de facções de extrema-direita.

O pequeno museu é, predominantemente, uma sequência de pequenos nichos, cada um correspondente a um dos 83 capítulos da novela - faltam 10, que serão incluídos posteriormente. "Nossa constituição é o livro", afirma Pamuk. "Foi uma alegria desenvolver o romance com a textura viva daquele tempo." Embora o caso de amor de Kemal aconteça nos anos 1970 e 80 - superposto ao golpe militar na Turquia em 1980 - a mostra cobre o meio século a partir dos anos 1950.

Construída em 1894, a casa é supostamente a casa da família Füsun. A vitrine de saleiros junto ao poço da escada comemora os jantares de Kemal lá. Em destaque, vê-se o vestido que ela supostamente usava quando Kemal a seduziu. "Isso é o mais próximo que chegamos dela", murmura Pamuk, como se falasse de um conhecido. Há largas coleções de brincos, grampos de cabelo e caixas de fósforos, surrupiados no "ritual de consolação" de Kemal e um sortimento variado de objetos: de um coração de porcelana quebrado a um triciclo de brinquedo. Muitos já estavam na coleção de Pamuk, mas ele adquiriu centenas de fotografias e cartões-postais anônimos. Seus romances, acredita ele, têm uma qualidade "eclética - milhares de pequenas coisas. Nós também estamos fazendo isso; museus têm tudo a ver com detalhes".

Três anos atrás, vi alguns desses objetos espalhados no chão de seu escritório, nas imediações. Mas cada nicho, aqui, é composto como uma instalação de arte, surrealista, minimalista ou barroca. Pamuk, que elabora as capas de seus livros, esquematizou muitos dos nichos. "Está cada vez mais um museu de atmosfera", diz. O efeito desejado é uma "aura ou sentimento do livro". Felizmente, isso inclui seu humor. Um cartaz anatômico fornece uma "analogia de como começa a dor do amor". Um surreal tubo com gravata borboleta evoca o psiquiatra que a noiva de Kemal insiste que ele consulte. As descascadas persianas verdes e um lampião, recuperados de uma mansão abandonada à beira do Bósforo, lembram Kemal das impotentes noites em que ele tentava apaziguar sua pretendida. Em "Streets that Remind Me of Her" (ruas que me fazem lembrar dela), um mapa de 1934 do bairro de Nisantasi - o bairro rico da família de Pamuk -, há áreas assinaladas com amarelo, laranja ou vermelho, dependendo do grau de angústia que suas associações despertam em Kemal.

O museu, como o romance, é em igual medida celebração da cidade natal de Pamuk, casa e lamentação por um amor perdido. "É, em parte, memória da cultura, como vamos a um piquenique como este" - Pamuk aponta para uma cesta repleta de frutas. Isso dá margem a um nicho pós-moderno de curiosidades que podem ser apreciadas sem conhecer o romance. Usando tecnologia museológica de ponta, ele mescla documentário e ficção, produzindo um efeito a um só tempo lúdico e profundo. Vídeos mostrando o Bósforo são exibidos em telas, enquanto luvas de boxe acima de uma máquina de escrever aludem ao ex-datilógrafo de Pamuk, que tinha um segundo emprego de boxeador. Pouca coisa é o que parece. Após testes com cigarros fumados por uma máquina de vácuo, as pontas de cigarro que estão sendo instaladas por uma mulher em uma escada são de autoria de um artista plástico. Até mesmo o comercial de TV para o refrigerante Meltem no estilo dos anos 1970 é uma campanha simulada por um dos maiores publicitários da Turquia em homenagem a um refrigerante fictício.

"É um museu nostálgico", admite Pamuk. "Mas não apenas isso. O fato é que estamos preservando coisas que nunca foram representadas, evidenciando qualidades comuns, da vida cotidiana. Acreditamos fortemente em honrar essas efemérides". Figurinhas de futebolistas que vêm com os chicletes comprados por Kemal custaram caro, porque "na Turquia, colecionadores também disputam a posse desses objetos". Existem trenzinhos e bilhetes de viagem nas balsas. "As pessoas em Istambul, assim como em Veneza, são nostálgicas em relação às embarcações. Também serão ouvidos sons emitidos através de orifícios nas caixas" - ele imita uma sirene de nevoeiro. O relógio de parede levado escada acima ("Este é um momento importante", anuncia Pamuk) está sendo regulado por um dos principais relojoeiros de Istambul, que se comprometeu a garantir que manterá a hora certa.

Kemal visita 1.743 museus em 15 anos, e Pamuk viu "perto desse número" durante viagens para lançamentos de livros na década de 1990, entre eles o Gustave-Moreau, em Paris, e a Casa de Thomas Mann, em Lübeck. Como escreveu no "Modest Manifesto", havia poucos museus em Istambul, quando ele era criança, mas aqueles que ele visitou depois o convenceram de que, como os romances, podem falar em nome das pessoas e não de instituições.

Os museus, afirma agora, "deveriam ser mais como romances - menos sobre nações, tribos, instituições; mais sobre histórias pessoais". Eles "sempre representaram o poder - um príncipe ou Estado, grupos institucionais. Bem, nós também temos um poder: esse sujeito loucamente apaixonado, chorando, colecionando cigarros. Afirmamos que sua experiência é universal, todo mundo, acreditamos, se apaixona e passa pelos estados de ânimo de Kemal". Assim como Kemal se dá conta de que "eu também poderia ter algo digno de ser exibido orgulhosamente, e a noção me libertou", diz Pamuk, "estamos dizendo: 'Construa o seu museu e você terá poder'. Pelo menos você não se envergonhará de sua coleção ou de sua história".

O romance contém um mapa de situação e um bilhete para entrada gratuita. Ele será carimbado pelos guardas em ternos de veludo "da cor de madeira escura", como estipula Kemal. Pamuk tem um conjunto de ternos, "porque às vezes os usarei discretamente e montarei guarda aos objetos". Assim, os visitantes não deverão se surpreender caso encontrem o agraciado com o Nobel à espreita, entre os nichos. "Vou trabalhar nisso durante 20 anos, até eu morrer; será divertido."

O Museu da Inocência, em Istambul, será inaugurado no dia 27.

 (Tradução de Sergio Blum)
Por Maya Jaggi | Do Financial Times, de Istambul

quinta-feira, 5 de julho de 2012

A Elegância do Ouriço

27 de junho de 2012: todos suspensos do jogo Portugal/ Espanha, todos com um único pensamento: ganhar à Espanha (que  tem sempre um saborzinho especial). Todos? Não! Isolada na sua torre de marfim com vista para um jacarandá que já lá não está...Conceição escreve!Solitária, escreve!Indiferente, escreve!E nenhum dos temas propostos para reflexão escapa à sua capacidade inventiva:
 
  • Não há amizade possível entre as classes. "
  • "Para que serve a Arte?"
  • "Para que serve a gramática?"
  • As pessoas vulgares: são o que parecem?
  • O significado cultural da decoração de interiores.
  • Os ocidentais e o oriente: idealizamos os orientais?
  • Uma camélia pode alterar o destino?




 Eis o resultado da sua reclusão, insólita reclusão:

Uma camélia pode alterar o destino

por Conceição Rocha
  

Porto, 27 de Junho de 2012


Introdução

Queridos amigos e amigas do clube de leitura: a escassas horas de se decidir o futuro de Portugal e ciente de que a minha e vossa honra residem na biqueira de onze pares de botas, umas quantas cabeças e um apito que consta ser maldoso, não posso deixar de vos narrar um episódio que o meu coração guardará eternamente na aurícula que reservo à emoção, à ternura e mesmo à inteligência.
Como sabeis, o futebol é para mim o Desporto, a Arte, o Quadrilátero da paixão.  Tenho de confessar-vos que datas e acontecimentos se me esvaem sem pudor, mesmo os que deveria reter por amor, amizade ou utilidade; porém, perguntai-me o nome do ponta de lança da equipa lusa no mundial de 60, ou de qualquer outro e não tardareis a ter a resposta em segundos, acompanhada dos chutos que foram ao poste, dos cartões amarelos, do tamanho da taça em decímetros e polegadas. Corolário desta paixão serena mas avassaladora, a necessidade de estar presente nos grandes momentos, nacionais ou do clube que amo como se ama o próprio Amor.
Esta pequena introdução far-vos-á compreender e, porventura, aceitar de boa mente, a história que vos vou contar. A sua veracidade pode ser atestada pelos cinco amigos que comigo partilham a devoção dos estádios e que a presenciaram a meu lado em todo o seu decorrer.Ei-la:

      Eis como uma camélia pode alterar o destino:



Estávamos às portas do campeonato europeu de 80, na Itália. O fervor pelo desporto-rei e a escassez de recursos com que me governo fez-me, como de costume, planear com alguma antecedência viagem, instalação e lugares no estádio. Como português expedito, logo me lembrei de recorrer ao meu sobrinho, rapaz esperto, com amizades por todo o lado, feitas entre as discotecas e as viajatas para as quais parece nunca lhe faltarem meios. Logo este se lembrou de um amigo a estudar em Roma, a quem iria encomendar a escolha de pensão modesta mas limpa e até, se possível, o encontro à chegada, no aeroporto. O amigo aceitou a incumbência, sendo-lhe dito pelo meu sobrinho que me identificaria por uma camélia na lapela do casaco. Tudo na perfeição, vamos ao que interessa.

Capítulo I: os ocidentais e o oriente: idealizamos os orientais?


Entrado na pensão e passados os preliminares, dirigi-me ao quarto, pousei o saco e apressei-me a sair, pensando que poderia andar por ali algum português com  vontade de desabafar. Mas não: pelo átrio passarinhava um oriental, que vim a saber depois ser coreano. Como se ria para mim, percebi que era um tipo amistoso, embora  não me agradasse partilhar telha justamente com um representante do adversário que iríamos defrontar no dia seguinte. À cautela, perguntei ao rececionista o que fazia ele e a resposta deixou-me espantado. O sujeito era o decorador de interiores encarregado de decorar o altar votivo ao Kim-il-Sung, a quem os jogadores tinham que agradecer a sorte de estarem vivos, pelo menos até ao fim do jogo. Vénia daqui, vénia dali, corretos são eles, percebi que o homem não queria descolar. À falta de melhor, arrastei-o comigo até ao museu onde o amigo do meu sobrinho estudava uns quadros que lá havia e me esperava para almoçar. O coreano a comer esparguete com garfo foi um espetáculo mas, quando acabou a pratada, lá fomos visitar o museu para gastar o tempo. O doutor tinha conversa para os quadros todos, aquelas mulheres com as carnes rosadas com anjinhos à volta já estavam a mexer comigo e ele frio como um gelo a dizer que era a deusa da caça, quem a caçava era eu, se se me punha a jeito com aqueles peitos. Adiante. O coreano seguia-nos sempre, sempre a acenar com a cabeça como se entendesse o doutor mais as complicações que ele ia contando. Especial atenção deu a uma estátua grega sem cabeça e com os membros destruídos de tal modo que se equilibrava através de um suporte de ferro. Caíram-lhe lágrimas. Logo entendi que se lembrou que o desgraçado não podia pontapear nem cabecear. Consolei-o, disse-lhe que a Grécia entrou em declínio e não foi por acaso, os italianos venceram-nos mas foi fatalidade ocorrida há centenas de anos. A partir daí, a Itália liderou vários campeonatos, muitos com a ajuda do luso génio na grande área. Mais lhe expliquei por gestos que quem sabe chama arte a esses gregos escacados, fabricados aos milhares para decorarem museus em todo o mundo. A propósito: para onde teria ido o dinheiro que ganharam com tanto artigo que produziram, embora de qualidade duvidosa, pois quase tudo se escacou? A verdade é que os pedaços continuam a ser arte, o que me levou a refletir: para que serve a arte? Para um português e um china se entenderem na frente de um mastronço sem cabeça nem pernas, na véspera de a alma lusa mostrar o que vale com os pedaços que faltam ao grego de pedra. 
Cansados mas satisfeitos, fomos jantar e regressamos à pensão que o acaso nos fez partilhar. Agora só eu e o oriental, taciturno, ensimesmado, como quem cogita sobre toda aquela matéria artística espalhada pelo museu. Para o desanuviar, fui mostrar-lhe o equipamento português completo com que me fardo e vi o seu. Achei-o tristonho, sem o rubro do sangue na guelra e o verde dos relvados infinitos que povoam a mente dos ganhadores. Entretanto despedimo-nos, arranjei-me e adormeci com a música das trombetas da vitória anunciada. Não sem um último sorriso cínico ao pensar na tristeza do meu pobre companheiro no dia seguinte.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

A Elegância do Ouriço

O Gosto do Arroz com Chá Verde


Yasujiro Ozu


Desde o primeiro filme, "O Gosto do Arroz com Chá Verde", que fiquei fascinada com o espaço de vida japonês e com aquelas portas de correr que se recusam a trespassar o espaço e deslizam suavemente sobre carris invisíveis.

"A Elegância do Ouriço",  Muriel Barbery