- Não há amizade possível entre as classes. "
- "Para que serve a Arte?"
- "Para que serve a gramática?"
- As pessoas vulgares: são o que parecem?
- O significado cultural da decoração de interiores.
- Os ocidentais e o oriente: idealizamos os orientais?
- Uma camélia pode alterar o destino?
Eis o resultado da sua reclusão, insólita reclusão:
Uma camélia pode
alterar o destino
por Conceição Rocha
Porto, 27 de Junho de 2012
Introdução
Queridos amigos e amigas do
clube de leitura: a escassas horas de se decidir o futuro de Portugal e ciente
de que a minha e vossa honra residem na biqueira de onze pares de botas, umas
quantas cabeças e um apito que consta ser maldoso, não posso deixar de vos
narrar um episódio que o meu coração guardará eternamente na aurícula que
reservo à emoção, à ternura e mesmo à inteligência.
Como sabeis, o futebol é para
mim o Desporto, a Arte, o Quadrilátero da paixão. Tenho de confessar-vos que datas e
acontecimentos se me esvaem sem pudor, mesmo os que deveria reter por amor,
amizade ou utilidade; porém, perguntai-me o nome do ponta de lança da equipa lusa
no mundial de 60, ou de qualquer outro e não tardareis a ter a resposta em
segundos, acompanhada dos chutos que foram ao poste, dos cartões amarelos, do
tamanho da taça em decímetros e polegadas. Corolário desta paixão serena mas
avassaladora, a necessidade de estar presente nos grandes momentos, nacionais
ou do clube que amo como se ama o próprio Amor.
Esta pequena introdução
far-vos-á compreender e, porventura, aceitar de boa mente, a história que vos
vou contar. A sua veracidade pode ser atestada pelos cinco amigos que comigo
partilham a devoção dos estádios e que a presenciaram a meu lado em todo o seu
decorrer.Ei-la:
Estávamos às portas do
campeonato europeu de 80, na Itália. O fervor pelo desporto-rei e a escassez de
recursos com que me governo fez-me, como de costume, planear com alguma
antecedência viagem, instalação e lugares no estádio. Como português expedito,
logo me lembrei de recorrer ao meu sobrinho, rapaz esperto, com amizades por
todo o lado, feitas entre as discotecas e as viajatas para as quais parece
nunca lhe faltarem meios. Logo este se lembrou de um amigo a estudar em Roma, a
quem iria encomendar a escolha de pensão modesta mas limpa e até, se possível,
o encontro à chegada, no aeroporto. O amigo aceitou a incumbência, sendo-lhe
dito pelo meu sobrinho que me identificaria por uma camélia na lapela do
casaco. Tudo na perfeição, vamos ao que interessa.
Capítulo I: os ocidentais e o
oriente: idealizamos os orientais?
Entrado na pensão e passados
os preliminares, dirigi-me ao quarto, pousei o saco e apressei-me a sair,
pensando que poderia andar por ali algum português com vontade de desabafar. Mas não: pelo átrio
passarinhava um oriental, que vim a saber depois ser coreano. Como se ria para
mim, percebi que era um tipo amistoso, embora
não me agradasse partilhar telha justamente com um representante do
adversário que iríamos defrontar no dia seguinte. À cautela, perguntei ao
rececionista o que fazia ele e a resposta deixou-me espantado. O sujeito era o
decorador de interiores encarregado de decorar o altar votivo ao Kim-il-Sung, a
quem os jogadores tinham que agradecer a sorte de estarem vivos, pelo menos até
ao fim do jogo. Vénia daqui, vénia dali, corretos são eles, percebi que o homem
não queria descolar. À falta de melhor, arrastei-o comigo até ao museu onde o
amigo do meu sobrinho estudava uns quadros que lá havia e me esperava para
almoçar. O coreano a comer esparguete com garfo foi um espetáculo mas, quando
acabou a pratada, lá fomos visitar o museu para gastar o tempo. O doutor tinha
conversa para os quadros todos, aquelas mulheres com as carnes rosadas com
anjinhos à volta já estavam a mexer comigo e ele frio como um gelo a dizer que
era a deusa da caça, quem a caçava era eu, se se me punha a jeito com aqueles
peitos. Adiante. O coreano seguia-nos sempre, sempre a acenar com a cabeça como
se entendesse o doutor mais as complicações que ele ia contando. Especial
atenção deu a uma estátua grega sem cabeça e com os membros destruídos de tal
modo que se equilibrava através de um suporte de ferro. Caíram-lhe lágrimas.
Logo entendi que se lembrou que o desgraçado não podia pontapear nem cabecear. Consolei-o,
disse-lhe que a Grécia entrou em declínio e não foi por acaso, os italianos
venceram-nos mas foi fatalidade ocorrida há centenas de anos. A partir daí, a
Itália liderou vários campeonatos, muitos com a ajuda do luso génio na grande
área. Mais lhe expliquei por gestos que quem sabe chama arte a esses gregos
escacados, fabricados aos milhares para decorarem museus em todo o mundo. A
propósito: para onde teria ido o dinheiro que ganharam com tanto artigo que
produziram, embora de qualidade duvidosa, pois quase tudo se escacou? A verdade
é que os pedaços continuam a ser arte, o que me levou a refletir: para que serve a arte? Para um português e um china se
entenderem na frente de um mastronço sem cabeça nem pernas, na véspera de a
alma lusa mostrar o que vale com os pedaços que faltam ao grego de pedra.
Cansados mas satisfeitos,
fomos jantar e regressamos à pensão que o acaso nos fez partilhar. Agora só eu
e o oriental, taciturno, ensimesmado, como quem cogita sobre toda aquela
matéria artística espalhada pelo museu. Para o desanuviar, fui mostrar-lhe o
equipamento português completo com que me fardo e vi o seu. Achei-o tristonho,
sem o rubro do sangue na guelra e o verde dos relvados infinitos que povoam a
mente dos ganhadores. Entretanto despedimo-nos, arranjei-me e adormeci com a
música das trombetas da vitória anunciada. Não sem um último sorriso cínico ao
pensar na tristeza do meu pobre companheiro no dia seguinte.
Madrugador habituado aos
longos trajetos do começo do dia, acordei ainda não eram 6 horas. Levantei-me e
dirigi-me ao quarto de banho, no fundo do corredor, na esperança de o usar
limpo e ainda sem o sinal da passagem de outros corpos. Servi-me da sanita e,
ao puxar o autoclismo, espanto meu, a água saiu com um leve tom róseo e um som
vagamente melódico, uma espécie de música que situaria entre o “ser benfiquista”
e o glu-glu natural do tal aparelho, se me faço entender. Pensei que eram
costumes da terra, cada um com as suas invenções e até me deitei a imaginar
sobre que música escolheria para um autoclismo meu,
que valesse uma bela descarga após a hora da verdade. Não cheguei a uma
conclusão definitiva, mas a prisão de que sofro lembrou-me aquela do Pedro
Abrunhosa
“É
tempo de fechar os olhos
É tempo de pensar em ti
E cada dia é um dia a mais
E para ti é sempre
Tarde de mais
Tarde de mais
Tarde de mais”.
Não liguei mais ao caso,
lavei-me, barbeei-me, cortei-me, injuriei a mãe da gilette e voltei ao trono
para mais uma tentativa. Pouco mas bom, assim é que se começa o dia, voltei a
puxar o autoclismo. Desta vez, nem uma gota: nem cor nem música. Levantei a tampa
para ver se dava um jeito e que se me depara? Entupindo o canal de passagem da
água, uma camélia de plástico agarrada por um fio a uma caixa com tampa, selada
a toda a volta. Tirei os estranhos objetos, dei à descarga e toca a andar.
Virei a caixinha de todos os lados, abanei-a e nada dava indícios do que lá
houvesse. Mas… apesar de a minha cabeça estar entre as quatro linhas, não
deixei de pensar na coincidência da camélia: a camélia da minha lapela, o
especial olhar do doutor ao apontar um quadro repleto de camélias, o facto de o
coreano ter pegado, sem cerimónia, na camélia que ornamentava a mesa em que
almoçámos. Agora, a camélia no autoclismo.
Regressei ao quarto com a
ótima disposição que antecede muitas vezes as grandes fatalidades e resolvi bater
à porta do quarto do Olhos em Bico, desafiando-o para um suculento pequeno
almoço. O fulano não respondeu. Esta gente é madrugadora, pensei eu, estes
kim-il-sungs não fazem outra coisa senão trabalhar, comer arroz e andar de
bicicleta. Virei costas e vi então o camarada a entrar no quarto de banho.
Apressei o passo até ele e entreabri a porta para me fazer entender por gestos.
Que vejo eu? O homem com ar aflito a segurar a tampa do autoclismo com uma mão
e a vasculhar lá dentro com a outra, braço mergulhado até ao cotovelo. Num
impulso intuitivo daqueles que distinguem as pessoas vulgares daquelas que
efetivamente têm algum génio – o que mostra que nem
sempre as pessoas vulgares são o que parecem – nada lhe disse quanto ao
conteúdo do sanitário, muito menos ao facto de o ter surripiado. Mas aqueles
olhos em frincha veem mais do que nós pensamos e o meu rosto ter-me-á
possivelmente traído. Ainda não tinha chegado ao primeiro degrau já um soco me
mandava aos trambolhões pelas escadas abaixo. O nosso homem saltou sobre mim como
um leão sobre o gamo inocente, ao mesmo tempo que rugia aos meus ouvidos num
sotaque estranhíssimo “camélia, camélia”. Um golpe seco nos rins mostrou-me que
o filho da mãe sabia artes marciais, eles aprendem esses golpes desde pequeninos,
como a canalha de cá aprende gramática. Não sei para
que é que serve a gramática, mas sobre o kung-fu fiquei sem dúvidas. Dois
ou três socos no sítio e eis-me estirado naquele deserto de pensão que parecia
que só lá vivíamos os dois.
Quando acordei, porque
felizmente acordei, só tinha duas preocupações: se o jogo ainda não tinha
começado e se o gajo tinha pegado na flor e no resto que eu mal tinha escondido
no fundo do colchão. Levantei-me meio tonto e mais dorido que um defesa no fim
do derby e pude constatar que o fulano deu com as prendinhas e as levou com ele.
Capítulo II: aqui há gato
Felizmente faltava meia hora
para o jogo e o bilhetinho lá estava na carteira, esta não interessou ao
chinoca. Desatei a correr porta fora, apanhei um táxi que me pôs à porta da
catedral, onde já estavam fieis equipados pela lusa como eu, uma imensidão de
amadores locais e meia dúzia de desgraçados amarelos com a fatiota dos deles,
que só têm autorização para sair da pátria os que se portam bem e nem todos.
Vou para o meu lugar e deparo
espantado com o amigo do meu sobrinho, o artista ou lá o que era que andava a
estudar nos cacos do museu para se doutorar. Fiquei desconfiado. Ainda por
cima, o doutorzinho trazia uma camélia na lapela. Ó lá, pensei eu. Cheira-me a
caso para Moita Flores. Vou estar com um olho no burro, outro no cigano, ou
seja, um no jogo outro no parceiro do lado, pensei eu. Não foi preciso muito
tempo. Começa o desafio, a alma lusa ainda não tinha aquecido e já os amarelos
saltavam para cima dos nossos, não se sabia se aquilo era futebol ou kung-fu,
rasteiras, empurrões, faltas descaradas enquanto árbitros e juízes de linha,
sonâmbulos, trocavam as pernas, parecia que estavam a dançar o tango. O povo
assobiava, os lusos da bancada começavam a atirar as superboques para o relvado
e o meu vizinho na sorna, como quem vê o noticiário. Mãos nos bolsos, ar
satisfeito. Ar satisfeito? Mãos nos bolsos? Fez-se-me luz. Atirei-me a ele com
a fúria dos dois zero contra nós que já cantavam no marcador sem os árbitros
dizerem nada e arranquei-lhe a camélia. Com esta veio uma tripalhada elétrica,
uma antena saída da gola do casaco e um comando que o patife governava a partir
do bolso. Num instante desfiz a flor, parti a antena e espezinhei o comando.
Fosse o que fosse, já não comandava mais.
Um soco certeiro nos queixos deixou o doutor a sonhar com os anjos.
Resolvido este caso, olho para o campo e tenho a felicidade de ver que os
nossos, livres dos lasers mandados pelo traidor, recuperavam. Os coreanos, como
lesmas, era só o esférico na rede deles, fura que fura. Os árbitros a
continuarem chonés, tudo a arrear como devia no adversário para glória
nacional. Que se lixe, pensei.
Findo o jogo glorioso e nós
já nas meias finais, lembrei-me da engenhoca do autoclismo. Para que serviria?
Como se articularia com a do doutor da mula russa? Mais uma vez, fez-se luz no
cérebro de um homem comum. Saltei a bancada e, na confusão de abraços e fotos,
meti-me no túnel. Sabia que era aí a caminho do balneário que o amarelo ia
decorar o altar ao Kim-il-sung para os jogadores agradecerem a inspiração. Lá
estava o fulano com o seu altarzinho de flores a cercarem o retrato do
bochechudo chefe. Camélias, claro. Atirei-me a elas para as desfazer antes de
experimentar novamente os punhos do coreano, que já tinha como certos nas
ventas. Porém, qual o meu espanto, quem parecia que tinha levado uma coça era
ele. Torcia-se e chorava, arrancava os cabelos e olhava-me com desespero[1]. Nas
minhas mãos, um punhado de camélias plásticas outrora lindas, agora desfeitas.
Uma delas – a do autoclismo – com o fio ao dependuro e a caixa donde saía o som
roufenho entre o “sou benfiquista” e o glu-glu de um autoclismo. Era o coração
do maquinismo.
A minha excelente disposição
de luso vitorioso induziu-me a acreditar que, se chamasse a polícia, o caso se
desvendaria. Assim fiz e, tranquilamente, fui para a pensão, não sem antes
fazer uns riscos nuns carros com as cores da Coreia e partir uma garrafa nas
costas de um amarelo, que talvez fosse japonês, mas é tudo dos mesmos lados.
Capítulo III: as pessoas são o
que parecem?
Soube dias depois pela Bola, órgão que
fundamenta os meus debates diariamente em sede de emprego, que o doutor do
museu, na miséria por ter perdido a bolsa de estudos, foi comprado (por
indicação do Dias Loureiro) pelo Duarte Lima que tinha recebido dos coreanos
dois milhões para colaborar na lusa derrota. Duarte Lima, um claro adepto da
seleção suíça, aceitou que os coreanos usassem a sua tecnologia laser de longa
distância para afetar os neurónios, ou seja, os pés, da esquadra lusa, fazendo
com que os outros ganhassem. Para quê? Para desmoralizarem os portugueses e,
assim, poderem facilmente penetrar na nossa economia comprando os bancos que
ainda restassem da aquisição angolana.
O pobre coreano - cientista
notável mas ingénuo às mãos de um luso estratega como este vosso amigo – foi
encarregado de montar a engenhoca para radiar os neurónios em jogo. As camélias
continham os engenhos letais: a do nosso doutorzinho, sentado na bancada,
transmitia a ordem de bloqueio mental ao falso decorador de altares; este, que
não percebia nada de futebol, mandava os lasers para o campo. Não contavam os
patifes é que eu entrasse no jogo e lhes estragasse o resultado. Mas foi um
bocado por acaso:
Tudo começou na véspera. O
meu sobrinho pediu ao amigo que me acolhesse no aeroporto e me arranjasse um
alojamento barato, mas digno. O idiota meteu-me na pensão onde estava o
coreano, para economizar trabalho: já que tinha que me receber e trazer o outro
debaixo de olho, matava dois coelhos de uma cajadada. Ambos no mesmo sítio.
Para o amigo me reconhecer, o
meu sobrinho disse-lhe que levaria um fato
cor camel. Camel? Que camel,
perguntei-me eu quando li a mensagem do meu sobrinho no telemóvel, dando-me as
instruções. “O rapaz enganou-se”, pensei eu. “Devia querer escrever camélia.
Camélia na lapela, para o outro me reconhecer”. E assim foi. Dei um salto ao
jardim do Palácio, fanei uma camélia vermelha com um pezinho verde – verde e
vermelho, pois claro – e, no dia, plantei-a na lapela do fato castanho, único
que tenho para os dias especiais. Só mais tarde soube que camel é uma cor, a
cor do meu fato. O doutorzinho ficou com cara de parvo quando me viu de flor ao
peito. Não sabia que havia mais um na jogada, pensava que era só ele e o chino.
Por isso e pelo incidente do autoclismo musical é que me quiseram pôr fora de
jogo com o par de murros. Mas esta carona não vai à vida com os punhos de
qualquer Fu Manchu, como se viu.
Aí está como uma camélia pode alterar o destino de uma pessoa,
um povo, uma pátria.
Resta-me concluir que no
avião de regresso, com a alegria da vitória, o pessoal fez tal bandalheira que
já não se sabia quem era da turística ou da executiva. Não há como a lusa gente
para mostrar como a amizade entre classes é possível.
Finalmente: porquê camélia,
uma flor que, ainda que delicada, não tem cheiro e é frágil, mesmo sendo de plástico?
A resposta, meus caros e
caras, soube-a por alguém que me exigiu confidencialidade: dessas pétalas
delicadas extraem os orientais, em rigoroso segredo, há milhares de anos, um
elixir precioso. Em dose prescrita para cada caso, o elixir dota quem o toma de
um especial jeito para esquecer as patifarias, convencendo-se da mais cândida
inocência. Mais me segredou que a mezinha circula em Portugal em grande
liberdade. Se quiserem saber mais, o meu sobrinho, neste momento em Santa Cruz do Bispo, mas com
grande facilidade de contacto com o exterior, pode dar mais informações. A camélia era, pois,
para estes, um símbolo, como para outros o é o avental, a cruz, a rosa, enfim,
prendas não faltam a quem quer fazê-las pela calada.
Perdoem-me, amigas e amigos,
a linguagem pouco cuidada com que vos conto as ocorrências. O entusiasmo da
vitória nesses idos de 80 e o facto de não estar dentro dos rigores da
gramática, faz com que não saiba muito bem como exprimir-me. Mas o que
interessa está dito e o principal foi a vitória.
O pior veio depois.
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