A Vingança de Fusun
por Alexandra Azevedo
Um
museu é um lugar onde o tempo
fica cristalizado, suspenso. Mas o tempo cristalizado nos museus não é um tempo
qualquer. É um tempo de que se tem orgulho e se quer, por isso, eternizar. “ Sim, é esse o fulcro da questão, Orhan Bey: o orgulho” diz
Kemal Basmaci, “ é ele que ocupa o lugar central
num museu.
Assim, e aparentemente, a intenção de
criar um museu tão insólito quanto um “museu da inocência” residiria no
objectivo enunciado por Kemal no final do romance: ”Com
o meu museu quero ensinar, não só ao povo turco, mas a todos os povos do mundo,
que devem orgulhar-se da vida que levam”.
Os objectos recolhidos neste museu, objectos quotidianos
e sem história, destinados ao desaparecimento e ao esquecimento estariam,
portanto, ao serviço da redenção dos povos periféricos, do seu próprio ponto de
vista, em relação ao Ocidente: “Viajei por toda a
parte e vi com os meus próprios olhos: enquanto o Ocidente se orgulha de si,
quase todo o resto do mundo vive cheio de vergonha. Mas se os objectos que nos
fazem sentir envergonhados forem exibidos num museu, transformar-se-ão
imediatamente em posses das quais nos podemos orgulhar. ”
No entanto, como explicar o nome dado
a um museu que exibe objectos como beatas de cigarro, pentes, sapatos,
colheres, travessões de cabelo ou lenços? De que inocência se trata? Inocente é
aquele que está isento de culpa. E quem é inocente, neste romance? Não
certamente Kemal Basmaci, pois na verdade, Kemal não ama Fusun como julga ou
como quer crer e fazer crer. No início, aceita como natural ter Fusun como
amante e ficar noivo de Sibel, na presunção de que Fusun cumpriria o papel que
lhe cabia: continuar sua amante tal como a amante do pai (personagem sem nome a
quem o pai se refere apenas como ela)
fizera exemplarmente. Mas Fusun é de outra geração, não quer representar esse
papel e recusa continuar uma ligação em que não é a protagonista, ainda que
jure que não será de mais ninguém. A surpresa desta atitude tem em Kemal
efeitos devastadores, mas nem por momentos avalia a possibilidade de romper com
o percurso previamente delineado pela posição
social que ocupa; mais tarde, reatado o contacto com Fusun, sendo esta
já casada (um casamento de conveniência e de
fachada decidido pelos pais para salvar as aparências), embora descreva
com pormenores extremos a perturbação que lhe causa a proximidade das mãos de
Fusun, do ombro de Fusun, da pele de Fusun, incansável e repetidamente descritos, mostra-se insensível ao
desejo natural desta de ter uma vida
própria e seguir a sua vocação de actriz de cinema. E num conluio bizarro com o
marido, conspira para que todas as suas expectativas saiam goradas, ainda que lhe
afrme que partilha essa ambição e de que
tudo faz para alcançar esse objectivo, criando inclusivamente uma
produtora cinematográfica a Lemon Films
que teria como principal missão lançar a sua carreira.
Desenganada, Fusun vinga-se. A sua
vingança é a maior que poderia infligir a Kemal: impedi-lo definitivamente de a
amar, de gozar plenamente a sua
presença, precisamente agora, que ele,
finalmente, conseguira romper as amarras que o tinham impedido de enfrentar por ela as convenções sociais.
Fusun não lhe perdoa: “Por tua causa não tive a
oportunidade de viver a minha própria vida, Kemal_ acusou ela_ Eu queria ser
actriz.” “Vocês os dois tinham tantos ciúmes, tanto medo que eu me tornasse
famosa e vos deixasse, que tiveram que me manter em casa.” A Fusun resta, assim, acelerar conscientemente
para morte: “Na minha opinião, embora Fusun
estivesse um pouco embriagada quando avançou a cento e cinquenta quilómetros
por hora, direita àquela árvore com cento e cinco anos, parecia saber
exactamente o que estava a fazer.”
E é deste modo que os ganchos do
cabelo de Fusun, o brinco de Fusun, a beata fumada por Fusun, são exibidos num
museu: não enquanto objectos do quotidiano de que os povos que se vêem a si
próprios como periféricos se devem orgulhar, tal com anunciado explicitamente
no romance, mas enquanto meio para exorcizar os remorsos,
aliás, nunca explícitos de Kemal, pois, tal como diz o próprio “Os museus deveriam mostrar-nos as nossas vidas. O meu
museu engloba a vida que partilhei com Fusun e a totalidade da nossa
experiência, e tudo o que lhe contei é verdade, Orhan Bey: Talvez algumas
coisas não sejam suficientemente claras para todos os leitores ou visitantes,
já que, embora eu lhe tenha contado a minha história e descrito a minha
vida com absoluta sinceridade, nem eu próprio sei ao certo quanto da mesma
percebi enquanto um todo. Podemos deixar essa tarefa para futuros
estudiosos e para os artigos que eles escreverão para a Inocência, a revista do museu”
E é justamente na medida em que confessa não
saber ao certo quanto entendeu da sua própria vida que Kemal se vê como um
inocente, mas um inocente com remorsos, afinal tal como o pai, pois quando a
vida o colocou perante o dilema de seguir a tradição tranquilamente machista da
sociedade turca ou não aceitar a subjugação das mulheres de que a sociedade
turca mais ortodoxa se orgulhava, não foi capaz de tomar a decisão que no seu
íntimo, mais uma vez tal como o pai, sabia ser a correcta.
Assim, os objectos postos
ao serviço da redenção da sua culpa sem perdão, são de um tempo pouco
inocente do ponto de vista das vítimas, e de que a sociedade turca nada tem
para se orgulhar.
2 de Novembro de 2012
Alexandra Azevedo
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