- · Os retornados “réus e culpados de
toda a história de Portugal”
- · Os independentistas e a FLA
- · Manuel Cristóvão, o sindicalista
- · Os guerrilheiros e a capitulação do
exército português
- · Ângela, a ceguinha que via tudo
- · A Lisboa do PREC
- · Vozes e sombras
- · A “preta verde”
- · Custódio Pinto, o colonialista
- · A ilha contra-revolucionária
- · Mariano Franco
- · A linguagem e o estilo
Vozes e Sombras
por Alexandra Azevedo
Livro de Vozes e Sombras é, de facto, e tal como o título
indica, um romance cheio de vozes e
cheio de sombras.
João de Melo escolhe o período
imediatamente a seguir à revolução do 25 de Abril, para fazer ouvir as vozes daqueles
de quem raramente se fala, daqueles que ficaram na sombra da história: os que
viveram o outro lado da revolução, os colonos, em Angola e os independentistas
nos Açores, “ num tempo português de duas margens: um em África, outro nos
Açores” . O romance é, assim, “Obra
dessas independências – uma à revelia dos brancos nas colónias, outra reclamada
pela FLA. “ (p. 365).
Custódio
Pinto é a personagem que encarna o protótipo do colono português em África. Homem
de sucesso nos negócios, com um “fanatismo de loucura pelas negras” (106),
violento com a mulher e os criados negros que ameaçava com insultos e
chicotadas, Custódio tinha a vida que ambicionara _ “Tinha armas, criados
negros e cães de guarda. Era dono de uma pedreira, de matas e terras onde
pastavam vacas, cabras e ovelhas. Tinha mulher, duas filhas, sentia o sangue
aquecido pelo sol da Colónia e amava as cores abençoadas de África.” (121).
Tendo assistido ao eclodir da guerrilha no início da década de sessenta,
durante os anos em que fora madeireiro no Norte, jurara “vezes sem conta que os
seus olhos não voltariam a ver brancos morrer sob o suplício das catanas. Por
nada deste mundo permitiria que os brancos regressassem à vergonha, à
perseguição e ao martírio – como quando
viu (…) desfilarem cabeças espetadas em estacas, troféus de vitória exibidos
pelos terroristas da UPA” Por isso, quando começam a chegar as notícias de uma
revolução em Lisboa, Custódio Pinto acolhe
vizinhos e conhecidos na Casa Grande e prepara-se para resistir. Mas
aquilo para que nada o preparara foi a inimaginável inacção da tropa que tinha ordens para
entregar armas e equipamentos aos até então inimigos e para não disparar nem um
tiro. Obrigado, assim, pelas circunstâncias a regressar à Metrópole, a
humilhação sofrida à chegada, ainda no aeroporto, e o ver-se confinado a um quarto de pensão,
acabam por enlouquecê-lo de vez. Ângela, a filha cega, recorda “Não há como
esquecer um pai esquizofrénico a ser preso e amarrado por uma camisa de forças,
a falar, a falar ininterruptamente, sem ninguém perceber o que dizia.” (208)
“Onde estavam o sonho e a revolução de que tanto me haviam falado?” (205)
A outra voz que emerge das sombras da história é Mariano
Franco, um herói independentista, “outrora o operacional mais temido da Frente
de Libertação dos Açores, (…) um militante de proa da causa independentista,
mais tarde contestatário da organização e, por fim, seu dissidente.” (17).
Cláudia Lourenço, jornalista de um diário de Lisboa, tem por missão entrevistar
este homem “a quem atribuíam tudo e mais alguma coisa: posse e uso de materiais
explosivos, armas de guerra, tiros de pistola e rajadas de metralhadora contra
pessoas e alvos oficiais, actos de violência sobre gente perseguida durante o
inferno perfeito da Revolução dos Cravos nos Açores – até à madrugada em que
foi preso, levado para a Terceira e daí para Lisboa.” (18) O “terrorista” que
ela esperava encontrar surge-lhe afinal como um homem elegante e
surpreendentemente tímido “Não se parece nada com o que lhe disseram dele: é
alto, aprumado, um bonito homem com mãos de milhafre e sobrancelhas encrespadas
sobre uns olhos parados –amarelos e frios. (…) E nem lhe passara pela cabeça
que um homem com uma história assim fosse afinal um tímido e que tão mal
disfarçasse a sua timidez.”(31)
Pelos olhos de Mariano Franco, vemos a Lisboa revolucionária
de 1975. Infiltrado numa manifestação revolucionária onde se apresentou o mais
mal vestido que podia “barba vespertina, o cabelo eriçado, à ouriço cacheiro,
dentro de uma boina basca, qual operário ou sindicalista em trabalho reivindicativo”
(69), Mariano Franco consolida com esta experiência “o seu próprio caminho nas
ilhas, a sua independência em fuga da nova ditadura comunista que se (…)
anunciava de punho erguido, sedenta de força e de inimigos por aniquilar” (74).
Perseguir e expulsar os revolucionários das ilhas apresenta-se como o caminho
natural para o conseguir.
A ousadia de escrever uma narrativa que é a anti-epopeia da
Revolução dos Cravos é resolvida no final do romance pelo casamento entre
Ângela, o anjo cego da história, e Manuel, o sindicalista revolucionário,
expulso dos Açores, tornando-se, assim, este enlace a metáfora do Portugal contemporâneo.
Com mágoas, mas apaziguado - “Às vezes não encontro palavras para falar da
minha mágoa histórica”. (372)
Alexandra Azevedo
Junho 2024
Melo. J. (2020) Livro de Vozes e Sombras, D. Quixote, Aifragide
A Lisboa do P.R.E.C.
Por Manuela Pereira
Livro de Vozes e Sombras,
João de Melo_2020
Período
Revolucionário Em Curso _ Processo político “rumo ao Socialismo” em torno dos “ideais de Abril” na procura de uma “justiça social”, em Portugal.
Infiltraram-se
nas manifestações, incógnitos, roídos pelo desespero de verem perdidos os seus
privilégios e desaparecidas as suas propriedades.
Mas
os que nunca tiveram nada eram muitos mais. E a alegria fez-lhes explodir os
corações ao verem os cravos vermelhos nos canos das espingardas. Todos saíram à
rua enchendo Lisboa com sorrisos e abraços.
Atreveram-se
a pedir “a paz, o pão, habitação…saúde e
educação”. Liberdade,
Sérgio Godinho
Sonharam
com a liberdade, uma liberdade a sério, que permitisse escolher e decidir.
E
o desejo era tão forte, que escreveram nas faixas brancas que empunhavam
desfilando na “torrente” da avenida
“tudo o que faz falta”. O
que faz falta, Zeca Afonso
Quebraram-se
as amarras e soltaram-se as emoções. Desapareceram os medos no meio da
multidão.
E
o poder estava na rua e o P.R.E.C. estava em marcha.
Mas
não foi preciso muito tempo até que a escuridão e o mal voltassem a mostrar-se.
A inveja, o rancor e o ódio não demoraram a aparecer e provocaram excessos nos
mais extremistas.
A
igualdade e a fraternidade deram lugar a actos violentos, assaltos a sedes de
partidos políticos e atentados bombistas. Os cravos vermelhos foram
espezinhados e o perigo de uma guerra civil ameaçava o país.
Voltou
o medo. Uns temiam a intervenção dos EUA e um novo Pinochet, enquanto os outros
temiam o “perigo vermelho” que podia alastrar de Espanha.
É
o Verão Quente 75.
Em
Setembro, o equilíbrio de forças altera-se e acalmam-se os ânimos.
Abril
de novo, um ano passado, o Povo vai às urnas e elege o I Governo
Constitucional.
A
democracia é frágil. A luta continua!
Manuela Pereira Clube Leitura_19/ 06/ 202
“Munakala e Custódio Pinto ou o fim de um ciclo ”
por Margarida Mouta
“Este livro quer provocar o clamor, trazer de volta a
palavra, a dor e a revolta. E a justiça, também. Refiro-me a um processo
português global.”
João de Melo, Entrevista a Paulo Serra
https://palavrassublinhadas.com/livro-vozes-sombras-entrevista-joao-melo/
À excepção do nome que identifica o continente em que a
narrativa se desenrola (África), todos os outros lugares referidos na obra
surgem baptizados com nomes inventados, o que acentua a visão e o caráter
ficcional da realidade de que se fala. Surgem-nos topónimos como Munakala[1],
Nova Roma[2],
Colónia[3]…
nomes que julgamos reconhecer, não tanto pela onomástica, mas sim pela
atmosfera quase mágica que aqui é criada, pelo rigor e sensualidade das
descrições em passagens admiravelmente bem escritas e imagens luminosas e
sombrias.
Munakala: o lugar onde o odor do tempo, “contínuo e de
passagem”, se aprende no aroma das casuarinas em flor, como diria o compadre
José Augusto, mas também na terra vermelha e no odor dos corpos perpetuamente
ensopados em suor. Um lugar onde os vértices dos morros e as copas das grandes
árvores são sobrevoados pelo luto e as trevas. Onde os dias desconhecem os
crepúsculos e onde as noites são anunciadas pela fresta repentinamente aberta
pelo tempo que “caminhando com patas de centopeia, saliva na noite correndo
a cortina e instalando as trevas de uma noite maldita”. (p.143)
Munakala: o lugar onde se situa a Casa Grande, o reino onde
pontua o fazendeiro Custódio Pinto, que a construiu com os dinheiros
ganhos como madeireiro nas matas do Norte e que a governa sob o olhar servil e
temeroso da criadagem negra. Custódio Pinto, o fazendeiro que é também dono de
uma pedreira, da roça de café, de cabeças de gado, de matas e terras onde
pastavam vacas, cabras e ovelhas. Custódio Pinto, o africanista que levara a
Munakala o saber e o progresso da agricultura, e que dispunha de armas, criados
negros e cães de caça. O “soba” que usava a seu bel-prazer as mulatas a quem
fazia filhos bastardos que nunca reconhecia. Custódio Pinto, o papá de duas
meninas a quem um mesmo padrinho dera nomes angelicais e o dono e senhor de uma
esposa legítima, branca, submissa, atenta e obrigada que possuía igualmente um
nome roubado aos céus: Maria dos Anjos. Custódio Pinto, o pai de Ângela Maria,
concebida numa noite de bebedeira, ceguinha de nascença, a quem caberá a missão
de “descobrir a luz nas sombras e a humanidade nas noites escuras” (p.
114), a menina que, com a sua rara
sensibilidade e os seus olhos cegos de visionária, verá o mundo com mais
clarividência do que todos os outros. Custódio Pinto, o pai extremoso desta
filha, capaz de correr céu e terra e atravessar todos os perigos do mundo para
a salvar a ela, que será a sua anti sombra. Custódio Pinto, para quem os negros
seriam sempre os pretos, nunca criaturas que prestassem, nem gente capaz de
nada, sem o mando, a mão pesada e a inteligência dos brancos. (p. 107) Custódio
Pinto, o homem que explode de cólera assassina e que estala de raiva perante o
“desrespeito” dos oficiais negros, que sucumbe perante o horror apocalítico das
vacas moribundas, sob o efeito devastador dos golpes de catana dos negros. Custódio Pinto, o espoliado, expulso do lugar
que julgara seu por direito luso, despojado das suas riquezas. Custódio Pinto,
o Manuel de Sousa Coutinho das Áfricas que lança fogo aos seus bens,
incendiando a Casa Grande. Custódio Pinto, o homem enxovalhado, que destila nas
ruas da capital de um império em estertor, o despeito choroso da derrota e do
ressentimento. Custódio Pinto, o retornado, o racista, o reacionário, o
colonialista, o explorador dos negros, que ostenta, no olhar alucinado, a
esquizofrenia que o mina. O homem a quem já nada resta, nem mesmo a lucidez de
carregar os seus males. Custódio Pinto o homem-bisonte cheio de espuma aos
cantos da boca que se despedirá de nós afivelado a uma maca, com o mesmo
alheamento e torpor de vesânia que o assaltava nas noites de pesadelo e insónia
ou quando vagueava e enlouquecia, entre céu e chão, num espírito sem corpo
de guarda à Casa Grande.
Sem estabelecer quaisquer laços no novo espaço em que se
encontra, Custódio Pinto mergulhará definitivamente na loucura, acabando por
viver, nesse período conturbado e traumático da História e da sua história, o
fim dos tempos, anunciado já em Manakala: “a dor, o êxodo, o regresso, o
espaço em branco entre a memória e a perda, num adeus ao que nunca, nunca mais
ninguém esqueceria” (p.158). Mas
também num adeus ao que nunca mais ninguém resgataria. Porque o ciclo colonial chegara,
definitivamente, ao seu fim, anunciando tempos em que não havia lugar para o
que nunca deveria ter havido nem para os Custódios Pinto de Munakala.
Margarida Mouta
[1] Calambata? (
Calambata - também grafada como Nkalambata, vila e comuna angolana que se localiza na província
de Zaire, pertencente ao município de Mabanza Congo).
[2] Luanda?
[3]
Angola?
“Nova Roma não
existe, mas pode intuir-se sob outros nomes: como a “Nova Lisboa” de Angola,
por exemplo. Por outro lado, talvez que Munakala seja o eco perdido de
Calambata, o aldeamento em que se situava o quartel da minha guerra colonial.
Assim sendo, não me escondo daquilo que escrevo; mas só em parte o revelo em
termos pessoais. Nunca pretendi ser um autor autobiográfico.
Sou apenas uma peça e um enigma do jogo. Acrescento: no livro nunca se menciona
o nome de “Angola”; é sempre a Colónia. O propósito era identificar o colonialismo
português”. (Excerto de uma entrevista concedida a Paulo Serra,
investigador da UA; https://postal.pt/a-edicao-papel/escritor-joao-de-melo)
Ângela, a ceguinha que via tudo.
Assim, confluem, neste capítulo, a voz e a dor suprema dos novos exilados sem pátria, recebidos “com amor e com desprezo”, vilipendiados por “velhacos humanitários” sem currículo, com a racional consciência da marcha inexorável da História e a inevitabilidade desta renúncia, procurada nos longínquos tempos da posse de territórios alheios, isto é, nos primeiríssimos tempos da colonização: “África fora um erro sem perdão desde o início, a começar nas descobertas marítimas ,na colonização da terra ocupada, no tráfico dos seus escravos e no racismo social.” (p.193) Afinal, é a voz de Ângela Mendes Pinto que nos fala, em cujo nome ecoam relatos pouco epopeicos. Registo que a forma serve magistralmente a substância, se atentarmos na riqueza da linguagem e dos recursos expressivos utilizados, designadamente a metáfora (“gente que grasnava a sua revolta…”; “Aves assanhadas de garras de fora…..ninhos”; “um ódio que escorria suor, o cacimbo das manhãs e das noites de África.”); a enumeração e o efeito de intensidade que empresta à descrição, pelo acumular de pormenores (“…perdido a nossa casa em África, e nessa casa uma cama, as mesas da cozinha, e da sala de jantar, as roupas, os cães, as criadas de dentro e os criados de fora, as portas fechadas no dia do abandono final.”; ”…giravam malas, sacos, caixas, embrulhos, cestos, redes, objectos que podiam ser suspeitos, os atados dos sobreviventes do império português“; “Sabia que se podia morrer por afogamento, num poço do quintal, pendurada de uma árvore, da trave da cozinha, de choques eléctricos, por intoxicação de gás ou ingestão de sedativos…”; ”As prisões, os raptos, os fuzilamentos sumários, o enxovalho gratuito dos brancos…”) ; o discurso indirecto livre (“e que lhe devolvessem, seus ladrões,…”); as antíteses ou a dialéctica dos contrários(“ o nada como reverso do tudo;” um país que nos recebia com amor e com desprezo”; “ …mãos misericordiosas…vozes rasas de ódio…” (p.194); “…ira sufocada…na vergonha e no orgulho de cada homem.” (p.197).) Afinal, ao justificar a atribuição do Prémio da 26ªedição do Grande Prémio de Literatura dst, o júri refere o “apurado sentido de composição e qualidade da escrita” (Público, Ipsilon,18 de Maio de 2021)
Organização impecável! Com fotografias e tudo.
ResponderEliminarPena tantos temas terem ficado sem dono.
Boas férias!!!