segunda-feira, 25 de março de 2024

Livro de Vozes e Sombras

 




Temas de reflexão

  • ·     Os retornados “réus e culpados de toda a história de Portugal”
  • ·     Os independentistas e a FLA
  • ·     Manuel Cristóvão, o sindicalista
  • ·     Os guerrilheiros e a capitulação do exército português
  • ·     Ângela, a ceguinha que via tudo
  • ·     A Lisboa do PREC
  • ·     Vozes e sombras
  • ·     A “preta verde”
  • ·     Custódio Pinto, o colonialista
  • ·     A ilha contra-revolucionária
  • ·     Mariano Franco
  • ·     A linguagem e o estilo

Vozes e Sombras


por Alexandra Azevedo

 

Livro de Vozes e Sombras é, de facto, e tal como o título indica,  um romance cheio de vozes e cheio de sombras. 

João de Melo escolhe o período imediatamente a seguir à revolução do 25 de Abril, para fazer ouvir as vozes daqueles de quem raramente se fala, daqueles que ficaram na sombra da história: os que viveram o outro lado da revolução, os colonos, em Angola e os independentistas nos Açores, “ num tempo português de duas margens: um em África, outro nos Açores” . O romance é, assim,  “Obra dessas independências – uma à revelia dos brancos nas colónias, outra reclamada pela FLA. “ (p. 365).

            Custódio Pinto é a personagem que encarna o protótipo do colono português em África. Homem de sucesso nos negócios, com um “fanatismo de loucura pelas negras” (106), violento com a mulher e os criados negros que ameaçava com insultos e chicotadas, Custódio tinha a vida que ambicionara _ “Tinha armas, criados negros e cães de guarda. Era dono de uma pedreira, de matas e terras onde pastavam vacas, cabras e ovelhas. Tinha mulher, duas filhas, sentia o sangue aquecido pelo sol da Colónia e amava as cores abençoadas de África.” (121). Tendo assistido ao eclodir da guerrilha no início da década de sessenta, durante os anos em que fora madeireiro no Norte, jurara “vezes sem conta que os seus olhos não voltariam a ver brancos morrer sob o suplício das catanas. Por nada deste mundo permitiria que os brancos regressassem à vergonha, à perseguição e ao martírio –  como quando viu (…) desfilarem cabeças espetadas em estacas, troféus de vitória exibidos pelos terroristas da UPA” Por isso, quando começam a chegar as notícias de uma revolução em Lisboa, Custódio Pinto acolhe  vizinhos e conhecidos na Casa Grande e prepara-se para resistir. Mas aquilo para que nada o preparara foi a inimaginável  inacção da tropa que tinha ordens para entregar armas e equipamentos aos até então inimigos e para não disparar nem um tiro. Obrigado, assim, pelas circunstâncias a regressar à Metrópole, a humilhação sofrida à chegada, ainda no aeroporto, e  o ver-se confinado a um quarto de pensão, acabam por enlouquecê-lo de vez. Ângela, a filha cega, recorda “Não há como esquecer um pai esquizofrénico a ser preso e amarrado por uma camisa de forças, a falar, a falar ininterruptamente, sem ninguém perceber o que dizia.” (208) “Onde estavam o sonho e a revolução de que tanto me haviam falado?” (205)

 

A outra voz que emerge das sombras da história é Mariano Franco, um herói independentista, “outrora o operacional mais temido da Frente de Libertação dos Açores, (…) um militante de proa da causa independentista, mais tarde contestatário da organização e, por fim, seu dissidente.” (17). Cláudia Lourenço, jornalista de um diário de Lisboa, tem por missão entrevistar este homem “a quem atribuíam tudo e mais alguma coisa: posse e uso de materiais explosivos, armas de guerra, tiros de pistola e rajadas de metralhadora contra pessoas e alvos oficiais, actos de violência sobre gente perseguida durante o inferno perfeito da Revolução dos Cravos nos Açores – até à madrugada em que foi preso, levado para a Terceira e daí para Lisboa.” (18) O “terrorista” que ela esperava encontrar surge-lhe afinal como um homem elegante e surpreendentemente tímido “Não se parece nada com o que lhe disseram dele: é alto, aprumado, um bonito homem com mãos de milhafre e sobrancelhas encrespadas sobre uns olhos parados –amarelos e frios. (…) E nem lhe passara pela cabeça que um homem com uma história assim fosse afinal um tímido e que tão mal disfarçasse a sua timidez.”(31)

Pelos olhos de Mariano Franco, vemos a Lisboa revolucionária de 1975. Infiltrado numa manifestação revolucionária onde se apresentou o mais mal vestido que podia “barba vespertina, o cabelo eriçado, à ouriço cacheiro, dentro de uma boina basca, qual operário ou sindicalista em trabalho reivindicativo” (69), Mariano Franco consolida com esta experiência “o seu próprio caminho nas ilhas, a sua independência em fuga da nova ditadura comunista que se (…) anunciava de punho erguido, sedenta de força e de inimigos por aniquilar” (74). Perseguir e expulsar os revolucionários das ilhas apresenta-se como o caminho natural para o conseguir.

 

A ousadia de escrever uma narrativa que é a anti-epopeia da Revolução dos Cravos é resolvida no final do romance pelo casamento entre Ângela, o anjo cego da história, e Manuel, o sindicalista revolucionário, expulso dos Açores, tornando-se, assim,  este enlace a metáfora do Portugal contemporâneo. Com mágoas, mas apaziguado - “Às vezes não encontro palavras para falar da minha mágoa histórica”. (372)

 Alexandra Azevedo

Junho 2024

Melo. J. (2020) Livro de Vozes e Sombras, D. Quixote, Aifragide



   Lisboa do P.R.E.C.


Por Manuela Pereira

                                                             Livro de Vozes e Sombras, João de Melo_2020

 

Período Revolucionário Em Curso  _  Processo político  “rumo ao Socialismo” em torno dos  “ideais de Abril” na procura de uma  “justiça social”, em Portugal.

 

Infiltraram-se nas manifestações, incógnitos, roídos pelo desespero de verem perdidos os seus privilégios e desaparecidas as suas propriedades.

Mas os que nunca tiveram nada eram muitos mais. E a alegria fez-lhes explodir os corações ao verem os cravos vermelhos nos canos das espingardas. Todos saíram à rua enchendo Lisboa com sorrisos e abraços.

Atreveram-se a pedir  “a paz, o pão, habitação…saúde e educação”.  Liberdade, Sérgio Godinho

Sonharam com a liberdade, uma liberdade a sério, que permitisse escolher e decidir.

E o desejo era tão forte, que escreveram nas faixas brancas que empunhavam desfilando na “torrente” da avenida  “tudo o que faz falta”.  O que faz falta, Zeca Afonso

Quebraram-se as amarras e soltaram-se as emoções. Desapareceram os medos no meio da multidão.

E o poder estava na rua e o P.R.E.C. estava em marcha.



Mas não foi preciso muito tempo até que a escuridão e o mal voltassem a mostrar-se. A inveja, o rancor e o ódio não demoraram a aparecer e provocaram excessos nos mais extremistas. 

A igualdade e a fraternidade deram lugar a actos violentos, assaltos a sedes de partidos políticos e atentados bombistas. Os cravos vermelhos foram espezinhados e o perigo de uma guerra civil ameaçava o país.

Voltou o medo. Uns temiam a intervenção dos EUA e um novo Pinochet, enquanto os outros temiam o “perigo vermelho” que podia alastrar de Espanha.

É o Verão Quente 75.

Em Setembro, o equilíbrio de forças altera-se e acalmam-se os ânimos.

Abril de novo, um ano passado, o Povo vai às urnas e elege o I Governo Constitucional.

A democracia é frágil. A luta continua!

 

Manuela Pereira                                                                                                  Clube Leitura_19/ 06/ 202




  Munakala e Custódio Pinto ou o fim de um ciclo

por Margarida Mouta

Este livro quer provocar o clamor, trazer de volta a palavra, a dor e a revolta. E a justiça, também. Refiro-me a um processo português global.”

João de Melo, Entrevista a Paulo Serra  https://palavrassublinhadas.com/livro-vozes-sombras-entrevista-joao-melo/

À excepção do nome que identifica o continente em que a narrativa se desenrola (África), todos os outros lugares referidos na obra surgem baptizados com nomes inventados, o que acentua a visão e o caráter ficcional da realidade de que se fala. Surgem-nos topónimos como Munakala[1], Nova Roma[2], Colónia[3]… nomes que julgamos reconhecer, não tanto pela onomástica, mas sim pela atmosfera quase mágica que aqui é criada, pelo rigor e sensualidade das descrições em passagens admiravelmente bem escritas e imagens luminosas e sombrias.  

Munakala: o lugar onde o odor do tempo, “contínuo e de passagem”, se aprende no aroma das casuarinas em flor, como diria o compadre José Augusto, mas também na terra vermelha e no odor dos corpos perpetuamente ensopados em suor. Um lugar onde os vértices dos morros e as copas das grandes árvores são sobrevoados pelo luto e as trevas. Onde os dias desconhecem os crepúsculos e onde as noites são anunciadas pela fresta repentinamente aberta pelo tempo que “caminhando com patas de centopeia, saliva na noite correndo a cortina e instalando as trevas de uma noite maldita”. (p.143)



Munakala: o lugar onde se situa a Casa Grande, o reino onde pontua o fazendeiro Custódio Pinto, que a construiu com os dinheiros ganhos como madeireiro nas matas do Norte e que a governa sob o olhar servil e temeroso da criadagem negra. Custódio Pinto, o fazendeiro que é também dono de uma pedreira, da roça de café, de cabeças de gado, de matas e terras onde pastavam vacas, cabras e ovelhas. Custódio Pinto, o africanista que levara a Munakala o saber e o progresso da agricultura, e que dispunha de armas, criados negros e cães de caça. O “soba” que usava a seu bel-prazer as mulatas a quem fazia filhos bastardos que nunca reconhecia. Custódio Pinto, o papá de duas meninas a quem um mesmo padrinho dera nomes angelicais e o dono e senhor de uma esposa legítima, branca, submissa, atenta e obrigada que possuía igualmente um nome roubado aos céus: Maria dos Anjos. Custódio Pinto, o pai de Ângela Maria, concebida numa noite de bebedeira, ceguinha de nascença, a quem caberá a missão de “descobrir a luz nas sombras e a humanidade nas noites escuras” (p. 114),  a menina que, com a sua rara sensibilidade e os seus olhos cegos de visionária, verá o mundo com mais clarividência do que todos os outros. Custódio Pinto, o pai extremoso desta filha, capaz de correr céu e terra e atravessar todos os perigos do mundo para a salvar a ela, que será a sua anti sombra. Custódio Pinto, para quem os negros seriam sempre os pretos, nunca criaturas que prestassem, nem gente capaz de nada, sem o mando, a mão pesada e a inteligência dos brancos. (p. 107) Custódio Pinto, o homem que explode de cólera assassina e que estala de raiva perante o “desrespeito” dos oficiais negros, que sucumbe perante o horror apocalítico das vacas moribundas, sob o efeito devastador dos golpes de catana dos negros.  Custódio Pinto, o espoliado, expulso do lugar que julgara seu por direito luso, despojado das suas riquezas. Custódio Pinto, o Manuel de Sousa Coutinho das Áfricas que lança fogo aos seus bens, incendiando a Casa Grande. Custódio Pinto, o homem enxovalhado, que destila nas ruas da capital de um império em estertor, o despeito choroso da derrota e do ressentimento. Custódio Pinto, o retornado, o racista, o reacionário, o colonialista, o explorador dos negros, que ostenta, no olhar alucinado, a esquizofrenia que o mina. O homem a quem já nada resta, nem mesmo a lucidez de carregar os seus males. Custódio Pinto o homem-bisonte cheio de espuma aos cantos da boca que se despedirá de nós afivelado a uma maca, com o mesmo alheamento e torpor de vesânia que o assaltava nas noites de pesadelo e insónia ou quando vagueava e enlouquecia, entre céu e chão, num espírito sem corpo de guarda à Casa Grande.

Sem estabelecer quaisquer laços no novo espaço em que se encontra, Custódio Pinto mergulhará definitivamente na loucura, acabando por viver, nesse período conturbado e traumático da História e da sua história, o fim dos tempos, anunciado já em Manakala: “a dor, o êxodo, o regresso, o espaço em branco entre a memória e a perda, num adeus ao que nunca, nunca mais ninguém esqueceria” (p.158).   Mas também num adeus ao que nunca mais ninguém resgataria.  Porque o ciclo colonial chegara, definitivamente, ao seu fim, anunciando tempos em que não havia lugar para o que nunca deveria ter havido nem para os Custódios Pinto de Munakala. 

Margarida Mouta

 



[1] Calambata? ( Calambata - também grafada como Nkalambata, vila e comuna angolana que se localiza na província de Zaire, pertencente ao município de Mabanza Congo).

[2] Luanda?

[3] Angola?

Nova Roma não existe, mas pode intuir-se sob outros nomes: como a “Nova Lisboa” de Angola, por exemplo. Por outro lado, talvez que Munakala seja o eco perdido de Calambata, o aldeamento em que se situava o quartel da minha guerra colonial. Assim sendo, não me escondo daquilo que escrevo; mas só em parte o revelo em termos pessoais. Nunca pretendi ser um autor autobiográfico. Sou apenas uma peça e um enigma do jogo. Acrescento: no livro nunca se menciona o nome de “Angola”; é sempre a Colónia. O propósito era identificar o colonialismo português”. (Excerto de uma entrevista concedida a Paulo Serra, investigador da UA; https://postal.pt/a-edicao-papel/escritor-joao-de-melo)



Ângela, a ceguinha que via tudo. 


 Por Delfina Rodrigues 

 “Dizes: é preciso distinguir o Bem do Mal. Admites, por isso, que é possível confundi-los.” Alberto Pimenta

 Entremos pela mão de Ângela, cega-ceguinha, como superlativamente se auto-designa, dispensando o eufemismo invisual (cf. p.372), no aeroporto de Lisboa, no capítulo 12,” Chegada a Lisboa”, da 3ª sequência do livro, “Uma cortina sobre África”. Cruzo, assim, dois dos temas propostos, ao eleger Ângela como personagem /narradora em viagem de retorno, num cenário de dor e sofrimento inomináveis -um grito colectivo no aeroporto de Lisboa. E aqui me detenho para evocar, como aconteceu em diversos trechos da obra, palavras de Fernão Lopes, o cronista, quando na crónica de D. João I nos convida a ver e a sentir, como se estivéssemos presentes, o sofrimento de uma cidade cercada: “Ora esguardae, como se fôsseis presentes, uma tal cidade assim desconfortada e sem nenhuma certa fiúza de seu livramento, como viveriam em desvairados cuidados, quem sofria ondas de tais aflições? Ó geração que depois veio, povo bem-aventurado, que não soube parte de tantos males, nem foi quinhoeiro de tais padecimentos.”  
A escolha da narradora deste segmento não pode ser arbitrária. Ângela, participante dos acontecimentos descritos e da tragédia colectiva, é clarividente, dotada de sentidos sobreapurados e de uma humanidade potenciada, provavelmente, pela sua cegueira física. Por outro lado, na voz de seu marido, o sindicalista Manuel Custódio, uma narradora de excepção: “-A dela (história) traz consigo a primazia do processo histórico. Uma história afro-portuguesa. A de um sistema cego, mas que não a cegou a ela. Além disso, trata-se de uma narradora como nunca ouvi outra. Fala como se tivesse um livro escrito dentro dos olhos. Entre a fantasia e a clarividência do que viveu. Ângela é uma personagem de ficção, não apenas esta pessoa que aqui está à sua frente.” Afirma ele à jornalista Cláudia Lourenço. (p.365) Também a evocação de Fernão Lopes é justificável: é a vividez da descrição que o convoca, a mesma arte de fazer ver, de fazer sentir, a arte de criar compaixão, o carácter cinético de um quadro humano caracterizado pela dor, pelo desespero e pela raiva, legado vivo para gerações futuras. Porque as feridas e os traumas históricos repetem-se e o seu registo histórico-literário há-de evitar que se encarcerem na gaveta do esquecimento. Necessários, pois, para preservar a nossa memória colectiva. Sigamos Ângela que, no seu relato, concede, num primeiro momento, um “droit de regard” aos que, chegados ao aeroporto de Lisboa vindos de Colónia (lugar ficcional identificável com Angola), se sentem abandonados à sua sorte, “traumatizados “pelas súbitas perdas, nota discordante num país que celebrava, em “sinfonia revolucionária”, uma viragem histórica, estranhos em casa, exilados sem causa. Eram os “retornados”, na sua “humanidade ressentida”, a viver uma tragédia chamada descolonização. Ei-los, em “horas sem fim em filas de controlo”; “ondas de vozes, suspiros e choros de gente que se comprimia e atropelava”;” gente que grasnava a sua revolta”; que instava uma qualquer autoridade, “seus ladrões”, para que lhe devolvessem o que tinha perdido e lhe fora roubado, material e emocionalmente falando. Nem falta a exaltação do regime deposto que a dor exacerba, o ódio torrencial aos comunistas e à nova ordem, em irónico contraste com as “vozinhas lisboetas”, “doces e bem-falantes “, das senhoras caridosas e sociais, da Cruz Vermelha, que os acolhiam. E sentiam-se tão ofendidos por essas vozes, como pelo ódio truculento dos novos revolucionários sem passado, uns “velhacos humanitários” que os linchavam com palavras, os acusavam de “esclavagistas e enganadores de pretos, uma casta de gente que não pertencia à mais pura raça lusitana”. Tornados, sem saber porquê, os bodes expiatórios do pecado da colonização, da escravatura dos Africanos, …das lutas entre tribos rivais e sobretudo da guerra das colónias” (p.195) Ângela não esquecerá, afirma, e com ela nós também não, “a indignidade, o fanatismo, a tragédia dos últimos vencidos do império”. Sentiram-se, colectivamente, “proscritos do país e da vida na terra”,” vítimas do pior dos racismos, provindo dos da nossa espécie…” Mas Ângela, recordemos a voz de Manuel Custódio, “traz consigo a primazia do processo histórico”, uma história afro-portuguesa, e com ela a voz de uns não abafa a voz de outros. Não esqueçamos também que ela é herdeira de uma história individual que cedo repudiou, ”filha de brancos, vizinha de brancos, afilhada de um branco chamado Augusto Ramalho, taberneiro, molengão, dono da mulata com quem dormia havia anos…”, que cedo venceu opacidades instaladas, porque via com os olhos da alma. 



Assim, confluem, neste capítulo, a voz e a dor suprema dos novos exilados sem pátria, recebidos “com amor e com desprezo”, vilipendiados por “velhacos humanitários” sem currículo, com a racional consciência da marcha inexorável da História e a inevitabilidade desta renúncia, procurada nos longínquos tempos da posse de territórios alheios, isto é, nos primeiríssimos tempos da colonização: “África fora um erro sem perdão desde o início, a começar nas descobertas marítimas ,na colonização da terra ocupada, no tráfico dos seus escravos e no racismo social.” (p.193) Afinal, é a voz de Ângela Mendes Pinto que nos fala, em cujo nome ecoam relatos pouco epopeicos. Registo que a forma serve magistralmente a substância, se atentarmos na riqueza da linguagem e dos recursos expressivos utilizados, designadamente a metáfora (“gente que grasnava a sua revolta…”; “Aves assanhadas de garras de fora…..ninhos”; “um ódio que escorria suor, o cacimbo das manhãs e das noites de África.”); a enumeração e o efeito de intensidade que empresta à descrição, pelo acumular de pormenores (“…perdido a nossa casa em África, e nessa casa uma cama, as mesas da cozinha, e da sala de jantar, as roupas, os cães, as criadas de dentro e os criados de fora, as portas fechadas no dia do abandono final.”; ”…giravam malas, sacos, caixas, embrulhos, cestos, redes, objectos que podiam ser suspeitos, os atados dos sobreviventes do império português“; “Sabia que se podia morrer por afogamento, num poço do quintal, pendurada de uma árvore, da trave da cozinha, de choques eléctricos, por intoxicação de gás ou ingestão de sedativos…”; ”As prisões, os raptos, os fuzilamentos sumários, o enxovalho gratuito dos brancos…”) ; o discurso indirecto livre (“e que lhe devolvessem, seus ladrões,…”); as antíteses ou a dialéctica dos contrários(“ o nada como reverso do tudo;” um país que nos recebia com amor e com desprezo”; “ …mãos misericordiosas…vozes rasas de ódio…” (p.194); “…ira sufocada…na vergonha e no orgulho de cada homem.” (p.197).) Afinal, ao justificar a atribuição do Prémio da 26ªedição do Grande Prémio de Literatura dst, o júri refere o “apurado sentido de composição e qualidade da escrita” (Público, Ipsilon,18 de Maio de 2021) 


1 comentário:

  1. Organização impecável! Com fotografias e tudo.
    Pena tantos temas terem ficado sem dono.
    Boas férias!!!

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