·Os retornados “réus e culpados de
toda a história de Portugal”
·Os independentistas e a FLA
·Manuel Cristóvão, o sindicalista
·Os guerrilheiros e a capitulação do
exército português
·Ângela, a ceguinha que via tudo
·A Lisboa do PREC
·Vozes e sombras
·A “preta verde”
·Custódio Pinto, o colonialista
·A ilha contra-revolucionária
·Mariano Franco
·A linguagem e o estilo
Vozes e Sombras
por Alexandra Azevedo
Livro de Vozes e Sombras é, de facto, e tal como o título
indica, um romance cheio de vozes e
cheio de sombras.
João de Melo escolhe o período
imediatamente a seguir à revolução do 25 de Abril, para fazer ouvir as vozes daqueles
de quem raramente se fala, daqueles que ficaram na sombra da história: os que
viveram o outro lado da revolução, os colonos, em Angola e os independentistas
nos Açores, “ num tempo português de duas margens: um em África, outro nos
Açores” . O romance é, assim, “Obra
dessas independências – uma à revelia dos brancos nas colónias, outra reclamada
pela FLA. “ (p. 365).
Custódio
Pinto é a personagem que encarna o protótipo do colono português em África. Homem
de sucesso nos negócios, com um “fanatismo de loucura pelas negras” (106),
violento com a mulher e os criados negros que ameaçava com insultos e
chicotadas, Custódio tinha a vida que ambicionara _ “Tinha armas, criados
negros e cães de guarda. Era dono de uma pedreira, de matas e terras onde
pastavam vacas, cabras e ovelhas. Tinha mulher, duas filhas, sentia o sangue
aquecido pelo sol da Colónia e amava as cores abençoadas de África.” (121).
Tendo assistido ao eclodir da guerrilha no início da década de sessenta,
durante os anos em que fora madeireiro no Norte, jurara “vezes sem conta que os
seus olhos não voltariam a ver brancos morrer sob o suplício das catanas. Por
nada deste mundo permitiria que os brancos regressassem à vergonha, à
perseguição e ao martírio – como quando
viu (…) desfilarem cabeças espetadas em estacas, troféus de vitória exibidos
pelos terroristas da UPA” Por isso, quando começam a chegar as notícias de uma
revolução em Lisboa, Custódio Pinto acolhe
vizinhos e conhecidos na Casa Grande e prepara-se para resistir. Mas
aquilo para que nada o preparara foi a inimaginável inacção da tropa que tinha ordens para
entregar armas e equipamentos aos até então inimigos e para não disparar nem um
tiro. Obrigado, assim, pelas circunstâncias a regressar à Metrópole, a
humilhação sofrida à chegada, ainda no aeroporto, e o ver-se confinado a um quarto de pensão,
acabam por enlouquecê-lo de vez. Ângela, a filha cega, recorda “Não há como
esquecer um pai esquizofrénico a ser preso e amarrado por uma camisa de forças,
a falar, a falar ininterruptamente, sem ninguém perceber o que dizia.” (208)
“Onde estavam o sonho e a revolução de que tanto me haviam falado?” (205)
A outra voz que emerge das sombras da história é Mariano
Franco, um herói independentista, “outrora o operacional mais temido da Frente
de Libertação dos Açores, (…) um militante de proa da causa independentista,
mais tarde contestatário da organização e, por fim, seu dissidente.” (17).
Cláudia Lourenço, jornalista de um diário de Lisboa, tem por missão entrevistar
este homem “a quem atribuíam tudo e mais alguma coisa: posse e uso de materiais
explosivos, armas de guerra, tiros de pistola e rajadas de metralhadora contra
pessoas e alvos oficiais, actos de violência sobre gente perseguida durante o
inferno perfeito da Revolução dos Cravos nos Açores – até à madrugada em que
foi preso, levado para a Terceira e daí para Lisboa.” (18) O “terrorista” que
ela esperava encontrar surge-lhe afinal como um homem elegante e
surpreendentemente tímido “Não se parece nada com o que lhe disseram dele: é
alto, aprumado, um bonito homem com mãos de milhafre e sobrancelhas encrespadas
sobre uns olhos parados –amarelos e frios. (…) E nem lhe passara pela cabeça
que um homem com uma história assim fosse afinal um tímido e que tão mal
disfarçasse a sua timidez.”(31)
Pelos olhos de Mariano Franco, vemos a Lisboa revolucionária
de 1975. Infiltrado numa manifestação revolucionária onde se apresentou o mais
mal vestido que podia “barba vespertina, o cabelo eriçado, à ouriço cacheiro,
dentro de uma boina basca, qual operário ou sindicalista em trabalho reivindicativo”
(69), Mariano Franco consolida com esta experiência “o seu próprio caminho nas
ilhas, a sua independência em fuga da nova ditadura comunista que se (…)
anunciava de punho erguido, sedenta de força e de inimigos por aniquilar” (74).
Perseguir e expulsar os revolucionários das ilhas apresenta-se como o caminho
natural para o conseguir.
A ousadia de escrever uma narrativa que é a anti-epopeia da
Revolução dos Cravos é resolvida no final do romance pelo casamento entre
Ângela, o anjo cego da história, e Manuel, o sindicalista revolucionário,
expulso dos Açores, tornando-se, assim, este enlace a metáfora do Portugal contemporâneo.
Com mágoas, mas apaziguado - “Às vezes não encontro palavras para falar da
minha mágoa histórica”. (372)
Alexandra Azevedo
Junho 2024
Melo. J. (2020) Livro de Vozes e Sombras, D. Quixote, Aifragide
A Lisboa do P.R.E.C.
Por Manuela Pereira
Livro de Vozes e Sombras,
João de Melo_2020
Período
Revolucionário Em Curso _ Processo político “rumo ao Socialismo” em torno dos “ideais de Abril” na procura de uma “justiça social”, em Portugal.
Infiltraram-se
nas manifestações, incógnitos, roídos pelo desespero de verem perdidos os seus
privilégios e desaparecidas as suas propriedades.
Mas
os que nunca tiveram nada eram muitos mais. E a alegria fez-lhes explodir os
corações ao verem os cravos vermelhos nos canos das espingardas. Todos saíram à
rua enchendo Lisboa com sorrisos e abraços.
Atreveram-se
a pedir “a paz, o pão, habitação…saúde e
educação”. Liberdade,
Sérgio Godinho
Sonharam
com a liberdade, uma liberdade a sério, que permitisse escolher e decidir.
E
o desejo era tão forte, que escreveram nas faixas brancas que empunhavam
desfilando na “torrente” da avenida
“tudo o que faz falta”. O
que faz falta, Zeca Afonso
Quebraram-se
as amarras e soltaram-se as emoções. Desapareceram os medos no meio da
multidão.
E
o poder estava na rua e o P.R.E.C. estava em marcha.
Mas
não foi preciso muito tempo até que a escuridão e o mal voltassem a mostrar-se.
A inveja, o rancor e o ódio não demoraram a aparecer e provocaram excessos nos
mais extremistas.
A
igualdade e a fraternidade deram lugar a actos violentos, assaltos a sedes de
partidos políticos e atentados bombistas. Os cravos vermelhos foram
espezinhados e o perigo de uma guerra civil ameaçava o país.
Voltou
o medo. Uns temiam a intervenção dos EUA e um novo Pinochet, enquanto os outros
temiam o “perigo vermelho” que podia alastrar de Espanha.
É
o Verão Quente 75.
Em
Setembro, o equilíbrio de forças altera-se e acalmam-se os ânimos.
Abril
de novo, um ano passado, o Povo vai às urnas e elege o I Governo
Constitucional.
A
democracia é frágil. A luta continua!
Manuela Pereira Clube
Leitura_19/ 06/ 202
“Munakala e Custódio Pinto ou o fim de um ciclo ”
por Margarida Mouta
“Este livro quer provocar o clamor, trazer de volta a
palavra, a dor e a revolta. E a justiça, também. Refiro-me a um processo
português global.”
João de Melo, Entrevista a Paulo Serra
https://palavrassublinhadas.com/livro-vozes-sombras-entrevista-joao-melo/
À excepção do nome que identifica o continente em que a
narrativa se desenrola (África), todos os outros lugares referidos na obra
surgem baptizados com nomes inventados, o que acentua a visão e o caráter
ficcional da realidade de que se fala. Surgem-nos topónimos como Munakala[1],
Nova Roma[2],
Colónia[3]…
nomes que julgamos reconhecer, não tanto pela onomástica, mas sim pela
atmosfera quase mágica que aqui é criada, pelo rigor e sensualidade das
descrições em passagens admiravelmente bem escritas e imagens luminosas e
sombrias.
Munakala: o lugar onde o odor do tempo, “contínuo e de
passagem”, se aprende no aroma das casuarinas em flor, como diria o compadre
José Augusto, mas também na terra vermelha e no odor dos corpos perpetuamente
ensopados em suor. Um lugar onde os vértices dos morros e as copas das grandes
árvores são sobrevoados pelo luto e as trevas. Onde os dias desconhecem os
crepúsculos e onde as noites são anunciadas pela fresta repentinamente aberta
pelo tempo que “caminhando com patas de centopeia, saliva na noite correndo
a cortina e instalando as trevas de uma noite maldita”. (p.143)
Munakala: o lugar onde se situa a Casa Grande, o reino onde
pontua o fazendeiro Custódio Pinto, que a construiu com os dinheiros
ganhos como madeireiro nas matas do Norte e que a governa sob o olhar servil e
temeroso da criadagem negra. Custódio Pinto, o fazendeiro que é também dono de
uma pedreira, da roça de café, de cabeças de gado, de matas e terras onde
pastavam vacas, cabras e ovelhas. Custódio Pinto, o africanista que levara a
Munakala o saber e o progresso da agricultura, e que dispunha de armas, criados
negros e cães de caça. O “soba” que usava a seu bel-prazer as mulatas a quem
fazia filhos bastardos que nunca reconhecia. Custódio Pinto, o papá de duas
meninas a quem um mesmo padrinho dera nomes angelicais e o dono e senhor de uma
esposa legítima, branca, submissa, atenta e obrigada que possuía igualmente um
nome roubado aos céus: Maria dos Anjos. Custódio Pinto, o pai de Ângela Maria,
concebida numa noite de bebedeira, ceguinha de nascença, a quem caberá a missão
de “descobrir a luz nas sombras e a humanidade nas noites escuras” (p.
114), a menina que, com a sua rara
sensibilidade e os seus olhos cegos de visionária, verá o mundo com mais
clarividência do que todos os outros. Custódio Pinto, o pai extremoso desta
filha, capaz de correr céu e terra e atravessar todos os perigos do mundo para
a salvar a ela, que será a sua anti sombra. Custódio Pinto, para quem os negros
seriam sempre os pretos, nunca criaturas que prestassem, nem gente capaz de
nada, sem o mando, a mão pesada e a inteligência dos brancos. (p. 107)Custódio
Pinto, o homem que explode de cólera assassina e que estala de raiva perante o
“desrespeito” dos oficiais negros, que sucumbe perante o horror apocalítico das
vacas moribundas, sob o efeito devastador dos golpes de catana dos negros. Custódio Pinto, o espoliado, expulso do lugar
que julgara seu por direito luso, despojado das suas riquezas. Custódio Pinto,
o Manuel de Sousa Coutinho das Áfricas que lança fogo aos seus bens,
incendiando a Casa Grande. Custódio Pinto, o homem enxovalhado, que destila nas
ruas da capital de um império em estertor, o despeito choroso da derrota e do
ressentimento. Custódio Pinto, o retornado, o racista, o reacionário, o
colonialista, o explorador dos negros, que ostenta, no olhar alucinado, a
esquizofrenia que o mina. O homem a quem já nada resta, nem mesmo a lucidez de
carregar os seus males. Custódio Pinto o homem-bisonte cheio de espuma aos
cantos da boca que se despedirá de nós afivelado a uma maca, com o mesmo
alheamento e torpor de vesânia que o assaltava nas noites de pesadelo e insónia
ou quando vagueava e enlouquecia, entre céu e chão, num espírito sem corpo
de guarda à Casa Grande.
Sem estabelecer quaisquer laços no novo espaço em que se
encontra, Custódio Pinto mergulhará definitivamente na loucura, acabando por
viver, nesse período conturbado e traumático da História e da sua história, o
fim dos tempos, anunciado já em Manakala: “a dor, o êxodo, o regresso, o
espaço em branco entre a memória e a perda, num adeus ao que nunca, nunca mais
ninguém esqueceria” (p.158). Mas
também num adeus ao que nunca mais ninguém resgataria. Porque o ciclo colonial chegara,
definitivamente, ao seu fim, anunciando tempos em que não havia lugar para o
que nunca deveria ter havido nem para os Custódios Pinto de Munakala.
Margarida Mouta
[1]Calambata? (
Calambata - também grafada como Nkalambata, vila e comunaangolana que se localiza na província
de Zaire, pertencente ao município de Mabanza Congo).
“Nova Roma não
existe, mas pode intuir-se sob outros nomes: como a “Nova Lisboa” de Angola,
por exemplo. Por outro lado, talvez que Munakala seja o eco perdido de
Calambata, o aldeamento em que se situava o quartel da minha guerra colonial.
Assim sendo, não me escondo daquilo que escrevo; mas só em parte o revelo em
termos pessoais. Nunca pretendi ser um autorautobiográfico.
Sou apenas uma peça e um enigma do jogo. Acrescento: no livro nunca se menciona
o nome de “Angola”; é sempre a Colónia. O propósito era identificar o colonialismo
português”. (Excerto de uma entrevista concedida a Paulo Serra,
investigador da UA; https://postal.pt/a-edicao-papel/escritor-joao-de-melo)
Ângela, a ceguinha que via tudo.
Por Delfina Rodrigues
“Dizes: é preciso distinguir o Bem do Mal. Admites, por isso, que é possível confundi-los.” Alberto Pimenta
Entremos pela mão de Ângela, cega-ceguinha, como superlativamente se auto-designa, dispensando o eufemismo invisual (cf. p.372), no aeroporto de Lisboa, no capítulo 12,” Chegada a Lisboa”, da 3ª sequência do livro, “Uma cortina sobre África”. Cruzo, assim, dois dos temas propostos, ao eleger Ângela como personagem /narradora em viagem de retorno, num cenário de dor e sofrimento inomináveis -um grito colectivo no aeroporto de Lisboa.
E aqui me detenho para evocar, como aconteceu em diversos trechos da obra, palavras de Fernão Lopes, o cronista, quando na crónica de D. João I nos convida a ver e a sentir, como se estivéssemos presentes, o sofrimento de uma cidade cercada: “Ora esguardae, como se fôsseis presentes, uma tal cidade assim desconfortada e sem nenhuma certa fiúza de seu livramento, como viveriam em desvairados cuidados, quem sofria ondas de tais aflições? Ó geração que depois veio, povo bem-aventurado, que não soube parte de tantos males, nem foi quinhoeiro de tais padecimentos.”
A escolha da narradora deste segmento não pode ser arbitrária. Ângela, participante dos acontecimentos descritos e da tragédia colectiva, é clarividente, dotada de sentidos sobreapurados e de uma humanidade potenciada, provavelmente, pela sua cegueira física. Por outro lado, na voz de seu marido, o sindicalista Manuel Custódio, uma narradora de excepção:
“-A dela (história) traz consigo a primazia do processo histórico. Uma história afro-portuguesa. A de um sistema cego, mas que não a cegou a ela. Além disso, trata-se de uma narradora como nunca ouvi outra. Fala como se tivesse um livro escrito dentro dos olhos. Entre a fantasia e a clarividência do que viveu. Ângela é uma personagem de ficção, não apenas esta pessoa que aqui está à sua frente.” Afirma ele à jornalista Cláudia Lourenço. (p.365)
Também a evocação de Fernão Lopes é justificável: é a vividez da descrição que o convoca, a mesma arte de fazer ver, de fazer sentir, a arte de criar compaixão, o carácter cinético de um quadro humano caracterizado pela dor, pelo desespero e pela raiva, legado vivo para gerações futuras. Porque as feridas e os traumas históricos repetem-se e o seu registo histórico-literário há-de evitar que se encarcerem na gaveta do esquecimento. Necessários, pois, para preservar a nossa memória colectiva.
Sigamos Ângela que, no seu relato, concede, num primeiro momento, um “droit de regard” aos que, chegados ao aeroporto de Lisboa vindos de Colónia (lugar ficcional identificável com Angola), se sentem abandonados à sua sorte, “traumatizados “pelas súbitas perdas, nota discordante num país que celebrava, em “sinfonia revolucionária”, uma viragem histórica, estranhos em casa, exilados sem causa. Eram os “retornados”, na sua “humanidade ressentida”, a viver uma tragédia chamada descolonização. Ei-los, em “horas sem fim em filas de controlo”; “ondas de vozes, suspiros e choros de gente que se comprimia e atropelava”;” gente que grasnava a sua revolta”; que instava uma qualquer autoridade, “seus ladrões”, para que lhe devolvessem o que tinha perdido e lhe fora roubado, material e emocionalmente falando. Nem falta a exaltação do regime deposto que a dor exacerba, o ódio torrencial aos comunistas e à nova ordem, em irónico contraste com as “vozinhas lisboetas”, “doces e bem-falantes “, das senhoras caridosas e sociais, da Cruz Vermelha, que os acolhiam. E sentiam-se tão ofendidos por essas vozes, como pelo ódio truculento dos novos revolucionários sem passado, uns “velhacos humanitários” que os linchavam com palavras, os acusavam de “esclavagistas e enganadores de pretos, uma casta de gente que não pertencia à mais pura raça lusitana”. Tornados, sem saber porquê, os bodes expiatórios do pecado da colonização, da escravatura dos Africanos, …das lutas entre tribos rivais e sobretudo da guerra das colónias” (p.195) Ângela não esquecerá, afirma, e com ela nós também não, “a indignidade, o fanatismo, a tragédia dos últimos vencidos do império”. Sentiram-se, colectivamente, “proscritos do país e da vida na terra”,” vítimas do pior dos racismos, provindo dos da nossa espécie…”
Mas Ângela, recordemos a voz de Manuel Custódio, “traz consigo a primazia do processo histórico”, uma história afro-portuguesa, e com ela a voz de uns não abafa a voz de outros. Não esqueçamos também que ela é herdeira de uma história individual que cedo repudiou, ”filha de brancos, vizinha de brancos, afilhada de um branco chamado Augusto Ramalho, taberneiro, molengão, dono da mulata com quem dormia havia anos…”, que cedo venceu opacidades instaladas, porque via com os olhos da alma.
Assim, confluem, neste capítulo, a voz e a dor suprema dos novos exilados sem pátria, recebidos “com amor e com desprezo”, vilipendiados por “velhacos humanitários” sem currículo, com a racional consciência da marcha inexorável da História e a inevitabilidade desta renúncia, procurada nos longínquos tempos da posse de territórios alheios, isto é, nos primeiríssimos tempos da colonização: “África fora um erro sem perdão desde o início, a começar nas descobertas marítimas ,na colonização da terra ocupada, no tráfico dos seus escravos e no racismo social.” (p.193) Afinal, é a voz de Ângela Mendes Pinto que nos fala, em cujo nome ecoam relatos pouco epopeicos.
Registo que a forma serve magistralmente a substância, se atentarmos na riqueza da linguagem e dos recursos expressivos utilizados, designadamente a metáfora (“gente que grasnava a sua revolta…”; “Aves assanhadas de garras de fora…..ninhos”; “um ódio que escorria suor, o cacimbo das manhãs e das noites de África.”); a enumeração e o efeito de intensidade que empresta à descrição, pelo acumular de pormenores (“…perdido a nossa casa em África, e nessa casa uma cama, as mesas da cozinha, e da sala de jantar, as roupas, os cães, as criadas de dentro e os criados de fora, as portas fechadas no dia do abandono final.”; ”…giravam malas, sacos, caixas, embrulhos, cestos, redes, objectos que podiam ser suspeitos, os atados dos sobreviventes do império português“; “Sabia que se podia morrer por afogamento, num poço do quintal, pendurada de uma árvore, da trave da cozinha, de choques eléctricos, por intoxicação de gás ou ingestão de sedativos…”; ”As prisões, os raptos, os fuzilamentos sumários, o enxovalho gratuito dos brancos…”) ; o discurso indirecto livre (“e que lhe devolvessem, seus ladrões,…”); as antíteses ou a dialéctica dos contrários(“ o nada como reverso do tudo;” um país que nos recebia com amor e com desprezo”; “ …mãos misericordiosas…vozes rasas de ódio…” (p.194); “…ira sufocada…na vergonha e no orgulho de cada homem.” (p.197).)
Afinal, ao justificar a atribuição do Prémio da 26ªedição do Grande Prémio de Literatura dst, o júri refere o “apurado sentido de composição e qualidade da escrita” (Público, Ipsilon,18 de Maio de 2021)
“Vivo numa pequena cidade junto ao
mar como vivi toda a vida”
É assim que o narrador se apresenta logo na
segunda página do romance e parece ser destas palavras que surge o próprio título deste,
“Junto ao Mar”. Foi, de facto, junto ao mar que Shaaban Mahmud viveu toda a sua
vida ainda que não junto daquele mar de águas
gélidas e escuras de Inglaterra, antes junto a “um oceano de águas cálidas, cor de esmeralda” muito
longe dali no espaço, na paradisíaca ilha de Zanzibar, colónia inglesa, e muito
longe também no tempo, o tempo em que não era Shaaban Mahmud, o nome falso que
usou para pedir asilo em Inglaterra, mas
simplesmente Saleh Omar e vivia uma vida confortável como comerciante de
móveis antigos, uma vida suficientemente
confortável para ser invejado e, portanto, pbjecto de maledicência o que é
sempre um bom indicador de prosperidade em todas as latitudes.
No entanto, a sorte muda. E foi isso
que aconteceu a Saleh Omar depois de “os Britânicos terem debandado
despeitados, abandonando-nos ao caos e à violência que marcou o fim do seu império”
(177) como ele próprio refere. O clima de violência e arbitrariedade que se
seguiu à partida dos ingleses fá-lo cair nas malhas da justiça e vê-se feito
prisioneiro, na sede do Partido. “Aparentemente, o meu crime era ter estado na
posse de documentos oficiais que, por sorte, tinham pouco interesse económico,
e com os quais eu tencionava cometer uma qualquer fraude” (265)
Omar passa onze anos numa ilha prisão
onde, naturalmente , continua junto ao mar. “A minha estadia na ilha foi mais ou menos
pacífica” Aos serões “ o rádio do comandante emitia discursos de uma figura de
destaque ou outra que arengava e fanfarronava, que reescrevia a história e
cuspia moralidades de trazer por casa que justificavam a opressão e a
tortura.”(272). As velhas estratégias das ditaduras, portanto, também elas presentes em todas as latitudes quando os
ventos da história trazem tempestades ditatoriais.
O romance é, assim, uma analepse em que o narrador, Omar de 65 anos reflecte
sobre as peripécias da sua vida e da vida do seu país e, faz essa narrativa
cruzar-se com a de outro narrador ,Latif Mahmoud, alguns anos mais novo e a ele
ligado por questões de negócios de família, empréstimos e penhoras, fazendo descer sobre os mesmos
factos olhares diferentes e pontos de vista opostos, acusações e rancores
do passado o que torna a história
surpreendente, tanto mais que no
presente da narrativa são ambos velhos, ambos intelectuais, ambos solitários,
usam ambos nomes falsos e são ambos
refugiados políticos no solo da antiga potência colonizadora.
É, por fim, num tom de ironia melancólica que o romance
termina com Omar a procurar no minúsculo apartamento de Latif ,em Londres, lençóis lavados e uma manta quente para ali
poder passar a noite, desejando, no seu íntimo, que Latif se lembre de ir à
loja da esquina buscar o takeaway.
Junto ao Mar de Abdulrazak Gurnah
Margarida Mouta
Clube de Leitura da EASR, 20 de
Fevereiro de 2024
“Deixei Zanzibar aos 18 anos,
por isso as minhas memórias de infância permaneceram vivas durante muito tempo.
Elas foram claramente uma fonte de inspiração. A minha primeira percepção do
planeta está ligada à minha ilha porque, crescendo à beira-mar, o mundo vinha
até mim.”
Abdulrazak Gurnah, Entrevista
a Livres Hebdo, Outubro de 2023
“É um lugar severo, o reino da
memória, um armazém esventrado e sombrio de tábuas podres e escadas
enferrujadas onde ocasionalmente passamos tempo a revolver artigos abandonados.”
Abdulrazak Gurnah, Junto ao
Mar, Ed. cavalo de ferro, p. 107
São muitas as razões
que nos levam a gostar de um livro. Com Junto ao mar, as razões foram-se somando,
à medida que fui avançando na leitura e desvendando, nos tons sóbrios da
escrita viva e modulada de Abdulrazak Gurnah, a evocação das memórias de dois homens unidos por um
contencioso familiar com origem na sua ilha natal (Zanzibar) e pela sua
situação de expatriados no Reino Unido. Mas
não só.
Logo de
início, fiquei surpreendida pela contenção do primeiro narrador, um homem de 65
anos que, “a cada dia árido”, simultaneamente anseia e teme a escuridão. Pouco a pouco perceberemos as suas razões. A
sua existência no Reino Unido começa no aeroporto de Gatwick. Saleh Omar (o seu
verdadeiro nome) é portador de falsos documentos e viaja sob o nome de Rajab
Shaaban. Detido à chegada, para evitar comprometer-se, Saleh usa um subterfúgio:
finge ignorar a língua do país de acolhimento e invoca o estatuto de refugiado,
requerente de asilo. Depois de uma breve passagem por um campo de detenção e
por um alojamento provisório num Bed and Breakfast, é-lhe atribuído um
pequeno apartamento numa cidadezinha junto ao mar. A persistência em não falar
inglês confunde os serviços sociais que procuram encontrar a solução na busca
de um intérprete. É então que passamos a conhecer o segundo narrador da
história. Este intérprete surge na figura de Latif Mahmoud, um professor de
Literatura que vive em Londres, também ele proveniente de Zanzibar e que, mostrando-se
intrigado com a figura de um homem que parece ter usurpado o nome do seu pai,
aceita servir de tradutor. Os dois homens encontram-se e confrontam-se. Ambos
mergulham nas lembranças e nos segredos de um contencioso familiar que os opõe
e que ensombra as suas vidas.
Poderia ser
este o tema essencial do romance: o conflito de interesses tão tipicamente
africano e que se traduz na espoliação de bens entre famílias, acarretando
terríveis consequências. O romance poderia ser tão só a narrativa a duas vozes
da trama que põe a nu os complicados laços que enredaram as famílias de Saleh
Omar e de Laif Mahmoud, as relações de filiação que determinaram as heranças e
geraram ódios e rancores que envenenaram as relações e se transmitiram à
geração seguinte. Mas Abdulrazak Gurnah vai bem mais longe, quando nos propõe uma
leitura em que o individual é posto em perspetiva com o coletivo, em que a
história é vista à luz dos efeitos da colonização inglesa, mas também dos
efeitos dos regimes totalitários ocorridos no período pós-independência, com
fatores determinantes como a corrupção, a espoliação de bens, as deportações ou
as prisões arbitrárias de que Saleh foi vítima.
É neste
contexto que a vulnerabilidade da existência humana é posta em evidência por Abdulrazak Gurnah. As conversas entre Saleh e Latif
mostram-nos que, dependendo do ponto de vista, uma situação pode ser
interpretada de forma muito diferente, e que falar, escutar e confrontar-se com
o outro é ainda a melhor maneira de abrir a nossa mente à perceção e à
compreensão do que nos opõe.
E Gurnah fá-lo com a nostalgia de
quem sabe por experiência própria o que é viver fora do seu país, com a
sabedoria de quem conhece as tradições muçulmanas familiares e o peso que elas
têm na identidade pessoal, com o sentimento de quem evoca um mundo e uma civilização
que perduram dentro de si, com os neurónios de quem aspira os aromas e as
fragrâncias que emanam da realidade que descreve. Tudo isto com a subtileza de
quem domina magistralmente as palavras e a arte de contar histórias.
As
personagens, ora surgem num plano que convoca o passado, ora nos aparecem enquadradas na atualidade de uma Europa receptáculo de
imigrantes. Desenganem-se, porém, os que pensavam encontrar aqui matéria para
debate. A imigração é, no romance, um tema muito secundário. Estes dois migrantes não fazem parte do grupo
dos deserdados que atravessam o Canal da Mancha para chegarem ao Reino Unido.
São homens de cultura, de certo modo, “privilegiados” da sorte que não faz
deles vítimas de violência nem repressão.
Detido com
documentos falsos no aeroporto de Londres, Saleh simboliza o destino daqueles
que simultaneamente caem nas malhas da injustiça e da desumanização e sofrem
nos corredores de sistemas políticos ditatoriais. Aqueles para quem o exílio
parece ser a única saída. E como se nos apresenta esse exílio? Diria que, no
romance, o exílio no Ocidente parece ser a alternativa serena, em tudo
preferível à permanência numa África onde impera a violência física e moral que
nada fica a dever à violência sofrida sob o jugo colonial.
Para Latif, professor
universitário, a bipolaridade da sua condição (europeu/africano) não constitui
prova de alienação; recusa aceitar-se como um “arremedo de si mesmo”, como “um
pau-mandado”, “um assimilado” (p.92), parecendo estar confortável com a sua
vida. Para Saleh, recém-chegado, o lugar de exílio surge “amaciado”, quase
sereno, geograficamente aparentado com o do país de origem (“junto ao mar”),
numa casa cuja língua e ruídos [lhe] são estranhos, mas onde se sente
seguro. Mas será mesmo assim?
Na página em
que conhecemos Latif, ficamos a saber que alguém, na rua, um homem que vinha na
direção contrária e com quem esbarrou, lhe chamou grinning blackamoor. A
sua reação, ao ouvi-lo, é sorrir eparece preocupar-se mais com a
etimologia da expressão linguística do que com o tom sussurrado do que interpretamos
como um insulto. Anima-se, mesmo, ao descobrir no Oxford English Dictionnary
registos impressos da palavra “moor” desde 1501 , em textos de Sidney,
Skakespeare ou Pepys (p. 91).
Quanto a Saleh,
homem culto e bilingue, dá-nos uma visão trocista e, malgré tout, divertida
dos olhares que os britânicos que o rodeiam lhe lançam e das atitudes daqueles
que inicialmente estão encarregados de o receber. O funcionário dos serviços
fronteiriços – o bawab da Europa –, que parece estar investido da sua
missão de guardião e protector da nação face aos invasores bárbaros, não passa,
afinal, de um funcionário desonesto que lhe confisca o seu bem mais precioso; Célia,
a mulher que gere o decadente “Bed and Breakfast e se revela negligente e
ignorante surge aos nossos olhos como uma deplorável caricatura; a própria
Rachel, bem-intencionada e prestativa, durante a maior parte do livro encarna a
figura da assistente social que, apesar de dedicada e compassiva não deixa de
ver Saleh com o seu olhar ocidental.
Por fim, deixo
aqui uma brevíssima referência àquilo que considero ser de uma extrema finura no
modo de contar de Abdulrazak Gurnah. À parte as passagens das traficâncias
financeiras que me pareceram por vezes um pouco obscuras, tudo no romance
aponta para a elegância e a contenção. Gostei muito de todas as referências
feitas aos textos literários quer fossem os clássicos que conhecemos, quer
fossem os contos orientais. Adorei a piscadela de olho a Bartleby, quase uma family
joke, apenas captada por Latif e cujo entendimento ficou só entre os dois e
provavelmente entre nós, leitores (distintos membros deste CL). Gostei do humor
discreto e intelectual que pontua o romance, da poesia de certas passagens, da
reflexão sobre o caráter efémero e volátil da existência, da última frase, que
considero genial[1].
E gostei
particularmente da humanidade que saiu das páginas do livro e veio até mim,
como o mundo vinha até Gurnah, lá junto ao seu mar.
[1] Num
momento em que Latif talvez esteja a iniciar uma nova etapa da sua vida junto
de Rachel, Saleh, perante eventuais decepções do imediato (a hipótese de os
lençóis limpos e o jantar takeaway não aparecerem), aceita com sabedoria e
humor o que a vida lhe reserva.
A
recusa do telefone
por
Maria Amélia L.V. Correia
Logo no início
do romance, Saleh Omar encontra-se num apartamento em Inglaterra aguardando que
lhe legalizem a situação de refugiado, para poder permanecer neste país. Tem 65
anos, saiu de Zanzibar onde sofreu prisões e torturas, perdeu família e bens, e
está ciente que não mais voltará à terra natal. Adquiriu uma nova identidade,
Rajab Shaaban, foi aconselhado a não dizer nada, a fazer de conta que não
falava inglês. A fim de contactarem com ele, e agilizarem o seu processo de
asilo, foi aconselhado a adquirir um telefone, mas sempre recusou
terminantemente.
Omar é um
homem solitário, já não é novo, e encontra-se numa situação bastante
complicada, num meio hostil, mentindo sobre a sua identidade e fingindo não falar
inglês. Adquirir um telefone podia ser um meio de perder a tranquilidade e de se denunciar. Mesmo quando estabelece
uma boa relação com Raquel, que é encarregada de tratar do seu pedido de asilo,
perante a insistência dela, afirma nunca ter tido um telefone e recusa-se a
arranjar “semelhante fardo”.
Para além de evitar possíveis impactos negativos desta
tecnologia, que nunca utilizou, talvez haja razões mais profundas.
Omar tem uma identidade cultural bastante vincada, preserva
os valores tradicionais e resiste à assimilação cultural. Através dos seus
relatos e da maneira como se comporta em Inglaterra podemos verificá-lo.
Sabemos que sofreu na pele as influências nefastas do colonialismo, e o
telefone pode ser visto como uma ferramenta de controle e exploração dos
colonizadores, como um elemento disruptivo em relação á comunidade donde é
originário e que tanto preza.
Sabemos que na sua cultura há uma longa tradição da
comunicação face a face. As histórias relatadas, as visitas pessoais, as
correspondências escritas são preferidas. As narrativas de Omar Saleh e Latif Mahmud
transporta-nos para o ambiente das “Mil e Uma Noites,” cujas histórias fazem
parte do caldo cultural em que vivem e são referidas pelos dois
narradores. O calor humano e a conexão
emocional, encontrada nas interações pessoais, não se coadunam com uma forma de
impessoalidade alienante da comunicação telefónica. Lembremos que Omar foi comerciante e os
negócios se faziam com longas conversas. Era extremamente deselegante, e até ofensivo
nestas paragens o toma lá dá cá do comércio ocidental mercantilista. Toda a
história da amizade com Hussein surge de longas horas passadas em charlas no
estabelecimento comercial que possuía. Muitas delas à volta da mesa de ébano
que tanto mal-entendido irá gerar. O tempo nestas culturas não tem o
significado que tem para nós, sempre preocupados com a tão apregoada “perda de
tempo”.
Concluirei
que esta recusa tem um profundo significado simbólico, como gesto de
contraventos e marés, preservar as tradições swahili num mundo globalizado e
desumano.
Breve história de Zanzibar
por
Ana Teixeira
Apesar de ter feito uma leitura
muito fracionada do livro Junto ao Mar, a busca de identidade e de exílio
convida-nos a descobrir a história da África pós-colonial e as razões do
sentimento profundo de exiliado tanto em Saleh Omar como em Latif Mahumud.
Breve história da
organização política de Zanzibar
Por volta do primeiro milênio, a
região foi colonizada por povos de língua bantu que migraram do oeste e do
norte de África. Mas Zanzibar também foi visitada por comerciantes
árabes e outros povostornando-se
um entreposto comercial, com comerciantes árabes e persas a estabelecerem-se em Zanzibar e na ilha próxima Pemba . Por
volta de 1200 com a mistura distinta de árabes, persas e africanos havia-se
desenvolvido a cultura suaíli que se espalhou por toda a costa leste africana.
Por essa altura, Zanzibar
importava cerâmica do golfo Pérsico e rapidamente se tornaria uma base
para mercadoresárabes. O primeiro europeu a visitar a ilha foi Vasco da Gama, em 1499,
acabando os portugueses por estabelecer aí um
entreposto comercial e uma missão católica, dominando o território durante dois
séculos.
Em meados da década de 1880,
expedições alemãs e Britânicas começaram a explorar a região exercendo
forte influência em toda a região leste africana, tendo o Reino Unido exercido
forte influencia na Tanzânia , de tal modo que
em 1873, o então cônsul britânico entre persuadiu
o sultão a pôr fim ao tráfico de escravos
A forte influência britânica
permitiu que em 1858, o sultão Majid Bin Said declara-se, com o seu apoio, a
independência de Zanzibar. Após a independência, o Reino Unido desenvolveu
relações cordiais com a ilha e favoreceu a inserção da influência britânica na
região.
Em 1890, um tratado assinado entre
a Grã-Bretanha e a Alemanha estabeleceu que Zanzibar estava na esfera de
influência do Império Britânico e Tanganica e a colônia da África Oriental
Alemã foi criada em Tanganica e outras regiões limítrofes.
A forte influência inglesa em Zanzibar tanto a nível sócio económico,
como cultural contribui fortemente para acabar com o tráfico de escravos na
região, tendo a Grã-Bretanha feito de Zanzibar um protetorado.
Esta guerra marcou o fim de
Zanzibar como um estado soberano e o início de um período de forte influência
britânica.
Na leitura de Junto ao Mar
percebe-se que se por um lado os habitantes de Zanzibar vêm os britânicos como
responsáveis pela imposição da sua cultura e autoridade, por outro lado vêm-nos
como detentores do conhecimento e poder admirando a sua tecnologia e
organização e algum “ progresso” então adquirido.
Zanzibar ganhou, de forma pacífica, a independência
da Grã-Bretanha em 1963 e tornou-se
uma monarquia constitucional com eleições
organizadas com pelos britânicos. Note-se que Zanzibar, era um estado
etnicamente diverso, com uma minoria árabe retendo o poder político herdado da
época em que Zanzibar era um território ultramarino de Omã.
Frustrados pela pouca
representação no parlamento, o Partido Afro-Shirazi (PAS), de maioria africana,
aliou-se ao Partido Umma, de inclinação esquerdista e em 12 de janeiro de 1964,
John Okello, membro do PAS, liderou uma revolução que depôs o sultão e seu
governo . Período turbulento com lutas entre fações e represálias contra os
civis árabes e austro-asiáticos na ilha foram intensas, resultando em uma
contagem de mortos disputada, com estimativas variando de muitas centenas a 20.000O novo
governo, com simpatias comunistas, preocupou o Ocidente. Embora planos de
intervenção britânicos tenham sido preparados, a retomada comunista nunca se
materializou, pois o líder moderado do PAS ( partido Afro –Shirazi), Abeid
Karume, tomou o poder e tornou-se o novo presidente e chefe de estado. Karume ao negociar uma fusão de Zanzibar com Tanganica( que
em 1919 decorrente da primeira grande guerra foi entregue ao Reino Unido) e formar o Governo da Tanzânia foi visto como uma tentativa de prevenir e evitar uma indesejada influência comunista.
Zanzibar
manteve um Conselho Revolucionário e uma Casa de Representantes, que foi até
1992
A Junção a Tanganica, formando a Tanzânia.
O partido TANU de Tanganica
funde-se com o PAS formando o partido único Chamava-s Pendudzi partido único).
Após a união,Julius Nherere, presidente
do partido do então Tanu, assumiu o cargo de presidente e Abaid
Karuma como vice presidente da Tanzânia.
Apesar de fazer parte da
Tanzânia, Zanzibar elege o seu próprio presidente,
que funciona como chefe do governo da porção insular e uma assembleia denominada
"Conselho Revolucionário".
Julius Nyerere, em 1977
transformou o partido único Chamava-s
Pendudzi no partido Chama cha
Mapinduzi (CCM “Partido da Independência”), do qual continuou a ser
presidente Nyerere permaneceu no poder até 1985 e conduziu o país segundo uma
política denominada “Socialismo Africano”, uma forma de socialismo
africano baseado na agricultura cooperativa.
Em 1985, Nyerere aposentou-se da
presidência e, em 1992, a constituição foi alterada para permitir a democracia
multipartidária.
Zanzibar manteve um Conselho
Revolucionário e uma Casa de Representantes, que foi até 1992
O partido foi sempre visto como
poder autoritário. Desde a criação de um sistema
multipartidário, o CCM venceu as últimas seis eleições gerais em 1995, 2000, 2005, 2010,
2015 e 2020. O seu candidato
presidencial em 2005, venceu com folga,
recebendo mais de 80% dos votos populares e o candidato em 2020 obteve
mais de 84% dos votos. Nas eleições de 2010, o CCM ganhou 186 dos 239 círculos eleitorais,
continuando a deter uma maioria absoluta na Assembleia Nacional
Desde a sua formação até 1992, foi o único partido
legalmente permitido no país. A cada cinco anos, seu presidente nacional era
automaticamente eleito para um mandato de cinco anos como presidente. Em julho de 1992, quando foram aprovadas emendas
à Constituição e uma série de leis permitindo e regulamentando a formação e o
funcionamento de mais de um partido político foram promulgadas pela Assembleia
Nacional. Contudoo CCM tem um papel de liderança na sociedade, apesar de ter
democracia multipartidária na Tanzânia desde 1995, o CCM manteve-se no poder desde
então. A análise empírica mostrou que o sentimento de nostalgia de um partido
que trouxe a independência e que manteve relativa paz é uma das principais
causas da base de apoio do CCM; a idade não teve determinante significativo na
fidelidade à CMC. O partido tem forte apoio dos agricultores de
subsistência.
O CCM foi
admitido na Internacional Socialista como membro pleno no congresso de primavera do em
fevereiro de 2013.
Todavia a Tanzânia enfrentou o desafio de equilibrar sua
liderança na Comunidade da África Oriental (CAO) com parcerias de
segurança na Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC).
Conclusão da situação
pós-colonialismo em Zanzibar
Um dos principais impactos da
revolução em Zanzibar foi o fato de ter derrubado a classe dominante árabe/asiática, que se tinha mantido no poder
por mais de 200 anos.
Actualmente o povo de Zanzibar
continua com o poder de eleger seu próprio presidente, embora esteja dentro da
estrutura da Tanzânia . Assim, o presidente
de Zanzibar é o chefe do Governo Revolucionário de Zanzibar, que é um governo semiautónomo
dentro da Tanzânia.
Presidente de Zanzibar, sendo o primeiro
detentor deste posto. Inicialmente, este governo usou o sucesso da revolução
para implementar reformas pela ilha. Muitas destas incluíram a destituição dos
árabes de posições de poder, os serviços públicos de Zanzibar, tornaram-se
instituições quase que completamente africanas e a terra foi retirada aos
árabes e dada a africanos.
No entanto, o governo
revolucionário, também instituiu reformas sociais como serviços de saúde
gratuitos e a abertura do sistema educacional para estudantes africanos, que
antes da revolução ocupavam apenas 12% do ensino secundário.
O governo procurou ajuda da União Soviética, da República Democrática da Alemanha e
da China para o financiamento de vários
projetos e para aconselhamento militar. O fracasso de vários projetos
conduzidos pela RDA — como o New
Zanzibar Project, um plano de renovação urbana datado de 1968 que visava a
construção de novos apartamentos para os zanzibaris — levou Zanzibar a buscar
ajuda dos chineses.
O governo
pós-revolucionário foi acusado de controles draconianos às liberdades pessoais
e de viagem e exerceu nepotismo na nomeação de postos políticos e na indústria e o novo governo da Tanzânia não tinha poderes para intervir.
A insatisfação com o
governo chegou ao seu auge com o assassinato de Karume no dia 7 de abril de 1972, que foi seguido pelo
confronto entre facções pro e antigoverno.
Um sistema multipartidário foi “estabelecido”
em 1992,
mas Zanzibar continua flagelada por alegações de corrupção e fraude
eleitoral.
Actualmente:
·Alta taxa de analfabetismo, principalmente entre
as mulheres e baixa qualidade na formação inicial dos professores.
·Escolaridade obrigatória apenas para o ensino primário
do 1.º ao 7.º ano
·Falta de infraestruturas adequadas nas escolas e
recursos educacionais
·30% de crianças abandonam a escolaridade antes
do 7.º ano, devido à pobreza e questões culturais que no caso das raparigas
priorizam o casamento precoce.
·Altas taxas de desemprego
·Economia fortemente dependente da agricultura e
turismo
·Acesso limitado a água potável e à eletricidade
·Enorme dificuldade de acesso a cuidados de saúde
principalmente nas zonas rurais
·Falta de profissionais de saúde qualificados
·Altas taxas de HIV, malária e desnutrição
·O Reino Unido continua a ter enorme influência
na governação de Zanzibar, apesar do partido dominante Chama Cha Mapinduzi
(CCM) se apresentar de centro esquerda de tendência social democrática .
A história da África
pós-colonial
por
Manuela Pereira_
Clube Leitura, 20 Fevereiro 2024
Junto ao Mar, Abdulrazak Gurnah _2002
Zanzibar, situada no
Oceano Índico ao largo “dessa faixa
da costa oriental do continente” africano, “que se curvara há muito tempo para
receber o musin, o vento das monções”, p.25 é uma cidade no sul da ilha de Unguja,
a principal ilha do arquipélago, formado também por Pemba, a segunda maior
ilha, Mafia, a sul, e por outras ilhas menores como a ilha de Changuu, que
serviu de prisão ao longo dos anos e se situa entre a cidade e o continente, no
Canal de Zanzibar.
“Ao longo dos séculos, comerciantes e
marinheiros intrépidos” aportavam às ilhas e traziam com eles a sua maneira
de olhar o mundo, “deixando para trás e para o resto da
vida, alguns dos seus conterrâneos”. p.25
Depois dos persas, que
vieram para Zanzibar no séc.X, chegaram os primeiros ocidentais no final do
séc.XV. Os portugueses. Mantiveram o rei local, que se tornou súbdito do rei de
Portugal e passou a pagar-lhe tributo. Estiveram presentes no Arquipélago de
Zanzibar até à invasão dos omanitas, em 1698. Zanzibar passou então a ser um
sultanato independente de Omã até vir a fazer parte da colónia alemã de
Tanganica, no continente, entre 1880 e 1919. No séc.XIX, Zanzibar tornou-se o
maior centro de comércio asiático de escravos da África Oriental. Depois da
derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, o território insular foi
entregue ao Reino Unido passando a ser um protectorado britânico, até à
independência em 10 de Dezembro de 1963.
Logo depois de os
britânicos concederem a independência aos territórios insulares deu-se a
Revolução de Zanzibar, que foi responsável pela deposição do sultão de
Zanzibar, Janxide ibne Abedalá e do seu governo de maioria árabe – uma
monarquia constitucional. As minorias árabes e austro-asiáticas das ilhas
ocupavam lugares de destaque no comércio e sendo os maiores proprietários de
terras das terras do arquipélago eram em geral mais ricos do que os africanos.
O apoio geral ao sultão deposto era devido à diversidade étnica da sua própria
família e os vários grupos étnicos estavam a misturar-se gradualmente e as
distinções tornavam-se mais ténues.
“ Depois de tanto tempo, as pessoas que
viviam nessa costa já mal sabiam quem eram, mas sabiam o bastante para se
aferrarem ao que as tornava diferentes daqueles que desprezavam, quer vivessem
entre eles, (…) quer povoassem o interior do continente.” Com a
independência, as “aldeias
disseminadas ao longo da costa africana, junto ao mar, passaram a fazer parte
de vastos territórios que se estendiam por centenas de quilómetros em direcção
ao coração do continente, apinhados de gente considerada inferior, e que,
chegada a hora, não se coibiram de devolver o favor.” p.26
A revolução veio pôr
fim a duzentos anos de domínio árabe. Depois de Janxide ter sido derrubado e
exilado, o sultanato foi substituído por uma república, 12 Janeiro 1964, vindo
o arquipélago a ser unificado com Tanganica, no continente, formando a
República de Tanganica e Zanzibar, 23 de Abril, – mais
tarde Tan zan ia.
Um estado etnicamente
e religiosamente diverso – 230 000 africanos, alguns de ascendência persa,
conhecidos como shirazi, 50 000 árabes e 20 000 austro-asiáticos –
perdeu-se numa série de eleições parlamentares que culminaram com a minoria
árabe retendo o poder político. Os partidos mais importantes eram organizados
por grupos étnicos maioritários que não aceitaram os resultados.
O Partido Afro-Shirazi
– PAS, de maioria africana, aliou-se ao Partido UMMA, de inclinação
esquerdista, e John Okello, natural do Uganda e membro do PAS, autonomeou-se
marechal – de – campo e mobilizou revolucionários, na sua maioria africanos
membros desempregados da Liga Afro-Shirazi, que saquearam a polícia do país e
se apropriaram das armas.
As represálias contra
os civis árabes e asiáticos – espancamentos, estupros, assassinatos e ataques a
propriedades – causaram milhares de mortos. As lojas foram saqueadas e armas
sem licença entregues à população. As propriedades árabes foram pilhadas e os
“prisioneiros políticos” julgados em tribunais especiais. O massacre de
prisioneiros árabes e o seu sepultamento em valas comuns foi documentado por
uma equipa de filmagem italiana, que filmou de um helicóptero o
documentário Africa Addio.
O líder moderado do
PAS, Abeid Amani Karume, regressou do continente e tornou-se o novo presidente
e chefe de estado do país. Sendo Karume um socialista moderado, tentou limitar
a influência da esquerda radical. Mas cedeu posições de poder a membros do
partido UMMA e adoptou muitas das suas políticas nas áreas da saúde, educação e
previdência social. As reformas implementadas na ilha incluíram a destituição
dos árabes de posições de poder, os serviços públicos tornaram-se instituições
quase completamente africanas e as terras foram distribuídas passando da posse
dos árabes para os africanos.
O possível surgimento
de um estado comunista em África era uma preocupação para o Ocidente. O governo
britânico preparou uma série de planos de intervenção, mas que não chegaram a
ser postos em prática uma vez que cidadãos britânicos e americanos foram
evacuados com sucesso, em 15 de Janeiro. Nenhum europeu sofreu mal algum.
A fusão de Zanzibar com Tanganica foi vista pelos meios de comunicação da época
como uma tentativa de prevenir uma retomada comunista.
As simpatias comunistas
do novo governo levaram ao estabelecimento de relações amistosas com a China e
a União Soviética. A RDA e a Coreia do Norte foram os primeiros países a
reconhecer a República de Tanganica e Zanzibar, em 23 Abril, seguidos por todo
o Bloco Comunista que também reconheceu o país negociado por Karume. O governo
procurou a ajuda da URSS, RDA e China para o financiamento de vários projectos
e foram-lhe enviados conselheiros. Foi instituído um sistema multipartidário
mas, em 1992, Zanzibar continuava flagelado por alegações de corrupção e fraude
eleitoral. O governo pós-revolucionário foi acusado de controles draconianos às
liberdades pessoais e de viagem, nepotismo na nomeação para postos políticos e
na indústria. Karume foi assassinado em 7 de Abril 1972 e seguiu-se o confronto
entre facções pró e anti governo. No 10ºAniversário da Revolução foram
libertados 545 prisioneiros. A Revolução de Zanzibar é celebrada em 12 de
Janeiro e o dia foi designado feriado nacional. Zanzibar é um dos países mais
pobres do mundo.
“Desde a época dos faraós, a Africa tem
sido cobiçada pela sua riqueza (…) As lendas sobre as riquezas do continente
estenderam-se por milénios, atraindo exploradores e conquistadores de muito
longe.” (Meredith, Martin_ 2017, p.11)
Esta é a história de
Zanzibar, semelhante à de muitos outros países da Africa pós-colonial.
(Wikipedia)