segunda-feira, 25 de março de 2024

Livro de Vozes e Sombras

 




Temas de reflexão

  • ·     Os retornados “réus e culpados de toda a história de Portugal”
  • ·     Os independentistas e a FLA
  • ·     Manuel Cristóvão, o sindicalista
  • ·     Os guerrilheiros e a capitulação do exército português
  • ·     Ângela, a ceguinha que via tudo
  • ·     A Lisboa do PREC
  • ·     Vozes e sombras
  • ·     A “preta verde”
  • ·     Custódio Pinto, o colonialista
  • ·     A ilha contra-revolucionária
  • ·     Mariano Franco
  • ·     A linguagem e o estilo

Vozes e Sombras


por Alexandra Azevedo

 

Livro de Vozes e Sombras é, de facto, e tal como o título indica,  um romance cheio de vozes e cheio de sombras. 

João de Melo escolhe o período imediatamente a seguir à revolução do 25 de Abril, para fazer ouvir as vozes daqueles de quem raramente se fala, daqueles que ficaram na sombra da história: os que viveram o outro lado da revolução, os colonos, em Angola e os independentistas nos Açores, “ num tempo português de duas margens: um em África, outro nos Açores” . O romance é, assim,  “Obra dessas independências – uma à revelia dos brancos nas colónias, outra reclamada pela FLA. “ (p. 365).

            Custódio Pinto é a personagem que encarna o protótipo do colono português em África. Homem de sucesso nos negócios, com um “fanatismo de loucura pelas negras” (106), violento com a mulher e os criados negros que ameaçava com insultos e chicotadas, Custódio tinha a vida que ambicionara _ “Tinha armas, criados negros e cães de guarda. Era dono de uma pedreira, de matas e terras onde pastavam vacas, cabras e ovelhas. Tinha mulher, duas filhas, sentia o sangue aquecido pelo sol da Colónia e amava as cores abençoadas de África.” (121). Tendo assistido ao eclodir da guerrilha no início da década de sessenta, durante os anos em que fora madeireiro no Norte, jurara “vezes sem conta que os seus olhos não voltariam a ver brancos morrer sob o suplício das catanas. Por nada deste mundo permitiria que os brancos regressassem à vergonha, à perseguição e ao martírio –  como quando viu (…) desfilarem cabeças espetadas em estacas, troféus de vitória exibidos pelos terroristas da UPA” Por isso, quando começam a chegar as notícias de uma revolução em Lisboa, Custódio Pinto acolhe  vizinhos e conhecidos na Casa Grande e prepara-se para resistir. Mas aquilo para que nada o preparara foi a inimaginável  inacção da tropa que tinha ordens para entregar armas e equipamentos aos até então inimigos e para não disparar nem um tiro. Obrigado, assim, pelas circunstâncias a regressar à Metrópole, a humilhação sofrida à chegada, ainda no aeroporto, e  o ver-se confinado a um quarto de pensão, acabam por enlouquecê-lo de vez. Ângela, a filha cega, recorda “Não há como esquecer um pai esquizofrénico a ser preso e amarrado por uma camisa de forças, a falar, a falar ininterruptamente, sem ninguém perceber o que dizia.” (208) “Onde estavam o sonho e a revolução de que tanto me haviam falado?” (205)

 

A outra voz que emerge das sombras da história é Mariano Franco, um herói independentista, “outrora o operacional mais temido da Frente de Libertação dos Açores, (…) um militante de proa da causa independentista, mais tarde contestatário da organização e, por fim, seu dissidente.” (17). Cláudia Lourenço, jornalista de um diário de Lisboa, tem por missão entrevistar este homem “a quem atribuíam tudo e mais alguma coisa: posse e uso de materiais explosivos, armas de guerra, tiros de pistola e rajadas de metralhadora contra pessoas e alvos oficiais, actos de violência sobre gente perseguida durante o inferno perfeito da Revolução dos Cravos nos Açores – até à madrugada em que foi preso, levado para a Terceira e daí para Lisboa.” (18) O “terrorista” que ela esperava encontrar surge-lhe afinal como um homem elegante e surpreendentemente tímido “Não se parece nada com o que lhe disseram dele: é alto, aprumado, um bonito homem com mãos de milhafre e sobrancelhas encrespadas sobre uns olhos parados –amarelos e frios. (…) E nem lhe passara pela cabeça que um homem com uma história assim fosse afinal um tímido e que tão mal disfarçasse a sua timidez.”(31)

Pelos olhos de Mariano Franco, vemos a Lisboa revolucionária de 1975. Infiltrado numa manifestação revolucionária onde se apresentou o mais mal vestido que podia “barba vespertina, o cabelo eriçado, à ouriço cacheiro, dentro de uma boina basca, qual operário ou sindicalista em trabalho reivindicativo” (69), Mariano Franco consolida com esta experiência “o seu próprio caminho nas ilhas, a sua independência em fuga da nova ditadura comunista que se (…) anunciava de punho erguido, sedenta de força e de inimigos por aniquilar” (74). Perseguir e expulsar os revolucionários das ilhas apresenta-se como o caminho natural para o conseguir.

 

A ousadia de escrever uma narrativa que é a anti-epopeia da Revolução dos Cravos é resolvida no final do romance pelo casamento entre Ângela, o anjo cego da história, e Manuel, o sindicalista revolucionário, expulso dos Açores, tornando-se, assim,  este enlace a metáfora do Portugal contemporâneo. Com mágoas, mas apaziguado - “Às vezes não encontro palavras para falar da minha mágoa histórica”. (372)

 Alexandra Azevedo

Junho 2024

Melo. J. (2020) Livro de Vozes e Sombras, D. Quixote, Aifragide



   Lisboa do P.R.E.C.


Por Manuela Pereira

                                                             Livro de Vozes e Sombras, João de Melo_2020

 

Período Revolucionário Em Curso  _  Processo político  “rumo ao Socialismo” em torno dos  “ideais de Abril” na procura de uma  “justiça social”, em Portugal.

 

Infiltraram-se nas manifestações, incógnitos, roídos pelo desespero de verem perdidos os seus privilégios e desaparecidas as suas propriedades.

Mas os que nunca tiveram nada eram muitos mais. E a alegria fez-lhes explodir os corações ao verem os cravos vermelhos nos canos das espingardas. Todos saíram à rua enchendo Lisboa com sorrisos e abraços.

Atreveram-se a pedir  “a paz, o pão, habitação…saúde e educação”.  Liberdade, Sérgio Godinho

Sonharam com a liberdade, uma liberdade a sério, que permitisse escolher e decidir.

E o desejo era tão forte, que escreveram nas faixas brancas que empunhavam desfilando na “torrente” da avenida  “tudo o que faz falta”.  O que faz falta, Zeca Afonso

Quebraram-se as amarras e soltaram-se as emoções. Desapareceram os medos no meio da multidão.

E o poder estava na rua e o P.R.E.C. estava em marcha.



Mas não foi preciso muito tempo até que a escuridão e o mal voltassem a mostrar-se. A inveja, o rancor e o ódio não demoraram a aparecer e provocaram excessos nos mais extremistas. 

A igualdade e a fraternidade deram lugar a actos violentos, assaltos a sedes de partidos políticos e atentados bombistas. Os cravos vermelhos foram espezinhados e o perigo de uma guerra civil ameaçava o país.

Voltou o medo. Uns temiam a intervenção dos EUA e um novo Pinochet, enquanto os outros temiam o “perigo vermelho” que podia alastrar de Espanha.

É o Verão Quente 75.

Em Setembro, o equilíbrio de forças altera-se e acalmam-se os ânimos.

Abril de novo, um ano passado, o Povo vai às urnas e elege o I Governo Constitucional.

A democracia é frágil. A luta continua!

 

Manuela Pereira                                                                                                  Clube Leitura_19/ 06/ 202




  Munakala e Custódio Pinto ou o fim de um ciclo

por Margarida Mouta

Este livro quer provocar o clamor, trazer de volta a palavra, a dor e a revolta. E a justiça, também. Refiro-me a um processo português global.”

João de Melo, Entrevista a Paulo Serra  https://palavrassublinhadas.com/livro-vozes-sombras-entrevista-joao-melo/

À excepção do nome que identifica o continente em que a narrativa se desenrola (África), todos os outros lugares referidos na obra surgem baptizados com nomes inventados, o que acentua a visão e o caráter ficcional da realidade de que se fala. Surgem-nos topónimos como Munakala[1], Nova Roma[2], Colónia[3]… nomes que julgamos reconhecer, não tanto pela onomástica, mas sim pela atmosfera quase mágica que aqui é criada, pelo rigor e sensualidade das descrições em passagens admiravelmente bem escritas e imagens luminosas e sombrias.  

Munakala: o lugar onde o odor do tempo, “contínuo e de passagem”, se aprende no aroma das casuarinas em flor, como diria o compadre José Augusto, mas também na terra vermelha e no odor dos corpos perpetuamente ensopados em suor. Um lugar onde os vértices dos morros e as copas das grandes árvores são sobrevoados pelo luto e as trevas. Onde os dias desconhecem os crepúsculos e onde as noites são anunciadas pela fresta repentinamente aberta pelo tempo que “caminhando com patas de centopeia, saliva na noite correndo a cortina e instalando as trevas de uma noite maldita”. (p.143)



Munakala: o lugar onde se situa a Casa Grande, o reino onde pontua o fazendeiro Custódio Pinto, que a construiu com os dinheiros ganhos como madeireiro nas matas do Norte e que a governa sob o olhar servil e temeroso da criadagem negra. Custódio Pinto, o fazendeiro que é também dono de uma pedreira, da roça de café, de cabeças de gado, de matas e terras onde pastavam vacas, cabras e ovelhas. Custódio Pinto, o africanista que levara a Munakala o saber e o progresso da agricultura, e que dispunha de armas, criados negros e cães de caça. O “soba” que usava a seu bel-prazer as mulatas a quem fazia filhos bastardos que nunca reconhecia. Custódio Pinto, o papá de duas meninas a quem um mesmo padrinho dera nomes angelicais e o dono e senhor de uma esposa legítima, branca, submissa, atenta e obrigada que possuía igualmente um nome roubado aos céus: Maria dos Anjos. Custódio Pinto, o pai de Ângela Maria, concebida numa noite de bebedeira, ceguinha de nascença, a quem caberá a missão de “descobrir a luz nas sombras e a humanidade nas noites escuras” (p. 114),  a menina que, com a sua rara sensibilidade e os seus olhos cegos de visionária, verá o mundo com mais clarividência do que todos os outros. Custódio Pinto, o pai extremoso desta filha, capaz de correr céu e terra e atravessar todos os perigos do mundo para a salvar a ela, que será a sua anti sombra. Custódio Pinto, para quem os negros seriam sempre os pretos, nunca criaturas que prestassem, nem gente capaz de nada, sem o mando, a mão pesada e a inteligência dos brancos. (p. 107) Custódio Pinto, o homem que explode de cólera assassina e que estala de raiva perante o “desrespeito” dos oficiais negros, que sucumbe perante o horror apocalítico das vacas moribundas, sob o efeito devastador dos golpes de catana dos negros.  Custódio Pinto, o espoliado, expulso do lugar que julgara seu por direito luso, despojado das suas riquezas. Custódio Pinto, o Manuel de Sousa Coutinho das Áfricas que lança fogo aos seus bens, incendiando a Casa Grande. Custódio Pinto, o homem enxovalhado, que destila nas ruas da capital de um império em estertor, o despeito choroso da derrota e do ressentimento. Custódio Pinto, o retornado, o racista, o reacionário, o colonialista, o explorador dos negros, que ostenta, no olhar alucinado, a esquizofrenia que o mina. O homem a quem já nada resta, nem mesmo a lucidez de carregar os seus males. Custódio Pinto o homem-bisonte cheio de espuma aos cantos da boca que se despedirá de nós afivelado a uma maca, com o mesmo alheamento e torpor de vesânia que o assaltava nas noites de pesadelo e insónia ou quando vagueava e enlouquecia, entre céu e chão, num espírito sem corpo de guarda à Casa Grande.

Sem estabelecer quaisquer laços no novo espaço em que se encontra, Custódio Pinto mergulhará definitivamente na loucura, acabando por viver, nesse período conturbado e traumático da História e da sua história, o fim dos tempos, anunciado já em Manakala: “a dor, o êxodo, o regresso, o espaço em branco entre a memória e a perda, num adeus ao que nunca, nunca mais ninguém esqueceria” (p.158).   Mas também num adeus ao que nunca mais ninguém resgataria.  Porque o ciclo colonial chegara, definitivamente, ao seu fim, anunciando tempos em que não havia lugar para o que nunca deveria ter havido nem para os Custódios Pinto de Munakala. 

Margarida Mouta

 



[1] Calambata? ( Calambata - também grafada como Nkalambata, vila e comuna angolana que se localiza na província de Zaire, pertencente ao município de Mabanza Congo).

[2] Luanda?

[3] Angola?

Nova Roma não existe, mas pode intuir-se sob outros nomes: como a “Nova Lisboa” de Angola, por exemplo. Por outro lado, talvez que Munakala seja o eco perdido de Calambata, o aldeamento em que se situava o quartel da minha guerra colonial. Assim sendo, não me escondo daquilo que escrevo; mas só em parte o revelo em termos pessoais. Nunca pretendi ser um autor autobiográfico. Sou apenas uma peça e um enigma do jogo. Acrescento: no livro nunca se menciona o nome de “Angola”; é sempre a Colónia. O propósito era identificar o colonialismo português”. (Excerto de uma entrevista concedida a Paulo Serra, investigador da UA; https://postal.pt/a-edicao-papel/escritor-joao-de-melo)



Ângela, a ceguinha que via tudo. 


 Por Delfina Rodrigues 

 “Dizes: é preciso distinguir o Bem do Mal. Admites, por isso, que é possível confundi-los.” Alberto Pimenta

 Entremos pela mão de Ângela, cega-ceguinha, como superlativamente se auto-designa, dispensando o eufemismo invisual (cf. p.372), no aeroporto de Lisboa, no capítulo 12,” Chegada a Lisboa”, da 3ª sequência do livro, “Uma cortina sobre África”. Cruzo, assim, dois dos temas propostos, ao eleger Ângela como personagem /narradora em viagem de retorno, num cenário de dor e sofrimento inomináveis -um grito colectivo no aeroporto de Lisboa. E aqui me detenho para evocar, como aconteceu em diversos trechos da obra, palavras de Fernão Lopes, o cronista, quando na crónica de D. João I nos convida a ver e a sentir, como se estivéssemos presentes, o sofrimento de uma cidade cercada: “Ora esguardae, como se fôsseis presentes, uma tal cidade assim desconfortada e sem nenhuma certa fiúza de seu livramento, como viveriam em desvairados cuidados, quem sofria ondas de tais aflições? Ó geração que depois veio, povo bem-aventurado, que não soube parte de tantos males, nem foi quinhoeiro de tais padecimentos.”  
A escolha da narradora deste segmento não pode ser arbitrária. Ângela, participante dos acontecimentos descritos e da tragédia colectiva, é clarividente, dotada de sentidos sobreapurados e de uma humanidade potenciada, provavelmente, pela sua cegueira física. Por outro lado, na voz de seu marido, o sindicalista Manuel Custódio, uma narradora de excepção: “-A dela (história) traz consigo a primazia do processo histórico. Uma história afro-portuguesa. A de um sistema cego, mas que não a cegou a ela. Além disso, trata-se de uma narradora como nunca ouvi outra. Fala como se tivesse um livro escrito dentro dos olhos. Entre a fantasia e a clarividência do que viveu. Ângela é uma personagem de ficção, não apenas esta pessoa que aqui está à sua frente.” Afirma ele à jornalista Cláudia Lourenço. (p.365) Também a evocação de Fernão Lopes é justificável: é a vividez da descrição que o convoca, a mesma arte de fazer ver, de fazer sentir, a arte de criar compaixão, o carácter cinético de um quadro humano caracterizado pela dor, pelo desespero e pela raiva, legado vivo para gerações futuras. Porque as feridas e os traumas históricos repetem-se e o seu registo histórico-literário há-de evitar que se encarcerem na gaveta do esquecimento. Necessários, pois, para preservar a nossa memória colectiva. Sigamos Ângela que, no seu relato, concede, num primeiro momento, um “droit de regard” aos que, chegados ao aeroporto de Lisboa vindos de Colónia (lugar ficcional identificável com Angola), se sentem abandonados à sua sorte, “traumatizados “pelas súbitas perdas, nota discordante num país que celebrava, em “sinfonia revolucionária”, uma viragem histórica, estranhos em casa, exilados sem causa. Eram os “retornados”, na sua “humanidade ressentida”, a viver uma tragédia chamada descolonização. Ei-los, em “horas sem fim em filas de controlo”; “ondas de vozes, suspiros e choros de gente que se comprimia e atropelava”;” gente que grasnava a sua revolta”; que instava uma qualquer autoridade, “seus ladrões”, para que lhe devolvessem o que tinha perdido e lhe fora roubado, material e emocionalmente falando. Nem falta a exaltação do regime deposto que a dor exacerba, o ódio torrencial aos comunistas e à nova ordem, em irónico contraste com as “vozinhas lisboetas”, “doces e bem-falantes “, das senhoras caridosas e sociais, da Cruz Vermelha, que os acolhiam. E sentiam-se tão ofendidos por essas vozes, como pelo ódio truculento dos novos revolucionários sem passado, uns “velhacos humanitários” que os linchavam com palavras, os acusavam de “esclavagistas e enganadores de pretos, uma casta de gente que não pertencia à mais pura raça lusitana”. Tornados, sem saber porquê, os bodes expiatórios do pecado da colonização, da escravatura dos Africanos, …das lutas entre tribos rivais e sobretudo da guerra das colónias” (p.195) Ângela não esquecerá, afirma, e com ela nós também não, “a indignidade, o fanatismo, a tragédia dos últimos vencidos do império”. Sentiram-se, colectivamente, “proscritos do país e da vida na terra”,” vítimas do pior dos racismos, provindo dos da nossa espécie…” Mas Ângela, recordemos a voz de Manuel Custódio, “traz consigo a primazia do processo histórico”, uma história afro-portuguesa, e com ela a voz de uns não abafa a voz de outros. Não esqueçamos também que ela é herdeira de uma história individual que cedo repudiou, ”filha de brancos, vizinha de brancos, afilhada de um branco chamado Augusto Ramalho, taberneiro, molengão, dono da mulata com quem dormia havia anos…”, que cedo venceu opacidades instaladas, porque via com os olhos da alma. 



Assim, confluem, neste capítulo, a voz e a dor suprema dos novos exilados sem pátria, recebidos “com amor e com desprezo”, vilipendiados por “velhacos humanitários” sem currículo, com a racional consciência da marcha inexorável da História e a inevitabilidade desta renúncia, procurada nos longínquos tempos da posse de territórios alheios, isto é, nos primeiríssimos tempos da colonização: “África fora um erro sem perdão desde o início, a começar nas descobertas marítimas ,na colonização da terra ocupada, no tráfico dos seus escravos e no racismo social.” (p.193) Afinal, é a voz de Ângela Mendes Pinto que nos fala, em cujo nome ecoam relatos pouco epopeicos. Registo que a forma serve magistralmente a substância, se atentarmos na riqueza da linguagem e dos recursos expressivos utilizados, designadamente a metáfora (“gente que grasnava a sua revolta…”; “Aves assanhadas de garras de fora…..ninhos”; “um ódio que escorria suor, o cacimbo das manhãs e das noites de África.”); a enumeração e o efeito de intensidade que empresta à descrição, pelo acumular de pormenores (“…perdido a nossa casa em África, e nessa casa uma cama, as mesas da cozinha, e da sala de jantar, as roupas, os cães, as criadas de dentro e os criados de fora, as portas fechadas no dia do abandono final.”; ”…giravam malas, sacos, caixas, embrulhos, cestos, redes, objectos que podiam ser suspeitos, os atados dos sobreviventes do império português“; “Sabia que se podia morrer por afogamento, num poço do quintal, pendurada de uma árvore, da trave da cozinha, de choques eléctricos, por intoxicação de gás ou ingestão de sedativos…”; ”As prisões, os raptos, os fuzilamentos sumários, o enxovalho gratuito dos brancos…”) ; o discurso indirecto livre (“e que lhe devolvessem, seus ladrões,…”); as antíteses ou a dialéctica dos contrários(“ o nada como reverso do tudo;” um país que nos recebia com amor e com desprezo”; “ …mãos misericordiosas…vozes rasas de ódio…” (p.194); “…ira sufocada…na vergonha e no orgulho de cada homem.” (p.197).) Afinal, ao justificar a atribuição do Prémio da 26ªedição do Grande Prémio de Literatura dst, o júri refere o “apurado sentido de composição e qualidade da escrita” (Público, Ipsilon,18 de Maio de 2021) 


quarta-feira, 6 de março de 2024

Junto ao Mar

                                                          

Abdulrazak Gurnah








Temas de Reflexão

· a mesa de ébano

· os britânicos vistos pelos olhos dos colonizados

· a história da África pós-colonial

· Rachel

· a recusa de um telefone

· refugiados _ a identidade no exílio

·  as heranças na religião islâmica 

· Hussein, o enganador

· Omar e Latif _  uma história, dois narradores

· Kevin Edelman, o guarda da fronteira

· o mar


O Mar

Alexandra Azevedo

20 de Março de 2024

“Vivo numa pequena cidade junto ao mar como vivi toda a vida”

 É assim que o narrador se apresenta logo na segunda página do romance e parece ser destas palavras que surge o próprio  título  deste, “Junto ao Mar”. Foi, de facto, junto ao mar que Shaaban Mahmud viveu toda a sua vida  ainda que não junto daquele mar de águas gélidas e escuras  de Inglaterra,  antes junto a “um oceano  de águas cálidas, cor de esmeralda” muito longe dali no espaço, na paradisíaca ilha de Zanzibar, colónia inglesa, e muito longe também no tempo, o tempo em que não era Shaaban Mahmud, o nome falso que usou para pedir asilo em Inglaterra, mas  simplesmente Saleh Omar e vivia uma vida confortável como comerciante de móveis antigos, uma vida  suficientemente confortável para ser invejado e, portanto, pbjecto de maledicência o que é sempre um bom indicador de prosperidade em todas as latitudes.

No entanto, a sorte muda. E foi isso que aconteceu a Saleh Omar depois de “os Britânicos terem debandado despeitados, abandonando-nos ao caos e à violência que marcou o fim do seu império” (177) como ele próprio refere. O clima de violência e arbitrariedade que se seguiu à partida dos ingleses fá-lo cair nas malhas da justiça e vê-se feito prisioneiro, na sede do Partido. “Aparentemente, o meu crime era ter estado na posse de documentos oficiais que, por sorte, tinham pouco interesse económico, e com os quais eu tencionava cometer uma qualquer fraude” (265)












 

Omar passa onze anos numa ilha prisão onde, naturalmente , continua junto ao mar.  “A minha estadia na ilha foi mais ou menos pacífica” Aos serões “ o rádio do comandante emitia discursos de uma figura de destaque ou outra que arengava e fanfarronava, que reescrevia a história e cuspia moralidades de trazer por casa que justificavam a opressão e a tortura.”(272). As velhas estratégias das ditaduras, portanto, também elas  presentes em todas as latitudes quando os ventos da história trazem tempestades ditatoriais.

O romance é, assim, uma analepse  em que o narrador, Omar de 65 anos reflecte sobre as peripécias da sua vida e da vida do seu país e, faz essa narrativa cruzar-se com a de outro narrador ,Latif Mahmoud, alguns anos mais novo e a ele ligado por questões de negócios de família, empréstimos e  penhoras, fazendo descer sobre os mesmos factos olhares diferentes e pontos de vista opostos, acusações e rancores do  passado o que torna a história surpreendente, tanto mais que  no presente da narrativa são ambos velhos, ambos intelectuais, ambos solitários, usam ambos  nomes falsos e são ambos refugiados políticos no solo da antiga potência colonizadora.

É, por fim,  num tom de ironia melancólica que o romance termina com Omar a procurar no minúsculo apartamento de Latif ,em Londres,  lençóis lavados e uma manta quente para ali poder passar a noite, desejando, no seu íntimo, que Latif se lembre de ir à loja da esquina buscar o takeaway. 




Junto ao Mar de Abdulrazak Gurnah


Margarida Mouta

 Clube de Leitura da EASR, 20 de Fevereiro de 2024

 

“Deixei Zanzibar aos 18 anos, por isso as minhas memórias de infância permaneceram vivas durante muito tempo. Elas foram claramente uma fonte de inspiração. A minha primeira percepção do planeta está ligada à minha ilha porque, crescendo à beira-mar, o mundo vinha até mim.”

Abdulrazak Gurnah, Entrevista a Livres Hebdo, Outubro de 2023

 

“É um lugar severo, o reino da memória, um armazém esventrado e sombrio de tábuas podres e escadas enferrujadas onde ocasionalmente passamos tempo a revolver artigos abandonados.”

Abdulrazak Gurnah, Junto ao Mar, Ed. cavalo de ferro, p. 107

São muitas as razões que nos levam a gostar de um livro. Com Junto ao mar, as razões foram-se somando, à medida que fui avançando na leitura e desvendando, nos tons sóbrios da escrita viva e modulada de Abdulrazak Gurnah, a evocação das memórias de dois homens unidos por um contencioso familiar com origem na sua ilha natal (Zanzibar) e pela sua situação de expatriados no Reino Unido.  Mas não só.

Logo de início, fiquei surpreendida pela contenção do primeiro narrador, um homem de 65 anos que, “a cada dia árido”, simultaneamente anseia e teme a escuridão.  Pouco a pouco perceberemos as suas razões. A sua existência no Reino Unido começa no aeroporto de Gatwick. Saleh Omar (o seu verdadeiro nome) é portador de falsos documentos e viaja sob o nome de Rajab Shaaban. Detido à chegada, para evitar comprometer-se, Saleh usa um subterfúgio: finge ignorar a língua do país de acolhimento e invoca o estatuto de refugiado, requerente de asilo. Depois de uma breve passagem por um campo de detenção e por um alojamento provisório num Bed and Breakfast, é-lhe atribuído um pequeno apartamento numa cidadezinha junto ao mar. A persistência em não falar inglês confunde os serviços sociais que procuram encontrar a solução na busca de um intérprete. É então que passamos a conhecer o segundo narrador da história. Este intérprete surge na figura de Latif Mahmoud, um professor de Literatura que vive em Londres, também ele proveniente de Zanzibar e que, mostrando-se intrigado com a figura de um homem que parece ter usurpado o nome do seu pai, aceita servir de tradutor. Os dois homens encontram-se e confrontam-se. Ambos mergulham nas lembranças e nos segredos de um contencioso familiar que os opõe e que ensombra as suas vidas.

Poderia ser este o tema essencial do romance: o conflito de interesses tão tipicamente africano e que se traduz na espoliação de bens entre famílias, acarretando terríveis consequências. O romance poderia ser tão só a narrativa a duas vozes da trama que põe a nu os complicados laços que enredaram as famílias de Saleh Omar e de Laif Mahmoud, as relações de filiação que determinaram as heranças e geraram ódios e rancores que envenenaram as relações e se transmitiram à geração seguinte. Mas Abdulrazak Gurnah vai bem mais longe, quando nos propõe uma leitura em que o individual é posto em perspetiva com o coletivo, em que a história é vista à luz dos efeitos da colonização inglesa, mas também dos efeitos dos regimes totalitários ocorridos no período pós-independência, com fatores determinantes como a corrupção, a espoliação de bens, as deportações ou as prisões arbitrárias de que Saleh foi vítima.




É neste contexto que a vulnerabilidade da existência humana é posta em evidência por Abdulrazak Gurnah. As conversas entre Saleh e Latif mostram-nos que, dependendo do ponto de vista, uma situação pode ser interpretada de forma muito diferente, e que falar, escutar e confrontar-se com o outro é ainda a melhor maneira de abrir a nossa mente à perceção e à compreensão do que nos opõe.

E Gurnah fá-lo com a nostalgia de quem sabe por experiência própria o que é viver fora do seu país, com a sabedoria de quem conhece as tradições muçulmanas familiares e o peso que elas têm na identidade pessoal, com o sentimento de quem evoca um mundo e uma civilização que perduram dentro de si, com os neurónios de quem aspira os aromas e as fragrâncias que emanam da realidade que descreve. Tudo isto com a subtileza de quem domina magistralmente as palavras e a arte de contar histórias.

As personagens, ora surgem num plano que convoca o passado, ora nos aparecem enquadradas na atualidade de uma Europa receptáculo de imigrantes. Desenganem-se, porém, os que pensavam encontrar aqui matéria para debate. A imigração é, no romance, um tema muito secundário.  Estes dois migrantes não fazem parte do grupo dos deserdados que atravessam o Canal da Mancha para chegarem ao Reino Unido. São homens de cultura, de certo modo, “privilegiados” da sorte que não faz deles vítimas de violência nem repressão.

Detido com documentos falsos no aeroporto de Londres, Saleh simboliza o destino daqueles que simultaneamente caem nas malhas da injustiça e da desumanização e sofrem nos corredores de sistemas políticos ditatoriais. Aqueles para quem o exílio parece ser a única saída. E como se nos apresenta esse exílio? Diria que, no romance, o exílio no Ocidente parece ser a alternativa serena, em tudo preferível à permanência numa África onde impera a violência física e moral que nada fica a dever à violência sofrida sob o jugo colonial.

Para Latif, professor universitário, a bipolaridade da sua condição (europeu/africano) não constitui prova de alienação; recusa aceitar-se como um “arremedo de si mesmo”, como “um pau-mandado”, “um assimilado” (p.92), parecendo estar confortável com a sua vida. Para Saleh, recém-chegado, o lugar de exílio surge “amaciado”, quase sereno, geograficamente aparentado com o do país de origem (“junto ao mar”), numa casa cuja língua e ruídos [lhe] são estranhos, mas onde se sente seguro.  Mas será mesmo assim?

Na página em que conhecemos Latif, ficamos a saber que alguém, na rua, um homem que vinha na direção contrária e com quem esbarrou, lhe chamou grinning blackamoor. A sua reação, ao ouvi-lo, é sorrir e parece preocupar-se mais com a etimologia da expressão linguística do que com o tom sussurrado do que interpretamos como um insulto. Anima-se, mesmo, ao descobrir no Oxford English Dictionnary registos impressos da palavra “moor” desde 1501 , em textos de Sidney, Skakespeare ou Pepys (p. 91).

Quanto a Saleh, homem culto e bilingue, dá-nos uma visão trocista e, malgré tout, divertida dos olhares que os britânicos que o rodeiam lhe lançam e das atitudes daqueles que inicialmente estão encarregados de o receber. O funcionário dos serviços fronteiriços – o bawab da Europa –, que parece estar investido da sua missão de guardião e protector da nação face aos invasores bárbaros, não passa, afinal, de um funcionário desonesto que lhe confisca o seu bem mais precioso; Célia, a mulher que gere o decadente “Bed and Breakfast e se revela negligente e ignorante surge aos nossos olhos como uma deplorável caricatura; a própria Rachel, bem-intencionada e prestativa, durante a maior parte do livro encarna a figura da assistente social que, apesar de dedicada e compassiva não deixa de ver Saleh com o seu olhar ocidental.

Por fim, deixo aqui uma brevíssima referência àquilo que considero ser de uma extrema finura no modo de contar de Abdulrazak Gurnah. À parte as passagens das traficâncias financeiras que me pareceram por vezes um pouco obscuras, tudo no romance aponta para a elegância e a contenção. Gostei muito de todas as referências feitas aos textos literários quer fossem os clássicos que conhecemos, quer fossem os contos orientais. Adorei a piscadela de olho a Bartleby, quase uma family joke, apenas captada por Latif e cujo entendimento ficou só entre os dois e provavelmente entre nós, leitores (distintos membros deste CL). Gostei do humor discreto e intelectual que pontua o romance, da poesia de certas passagens, da reflexão sobre o caráter efémero e volátil da existência, da última frase, que considero genial[1].

E gostei particularmente da humanidade que saiu das páginas do livro e veio até mim, como o mundo vinha até Gurnah, lá junto ao seu mar.

 




[1] Num momento em que Latif talvez esteja a iniciar uma nova etapa da sua vida junto de Rachel, Saleh, perante eventuais decepções do imediato (a hipótese de os lençóis limpos e o jantar takeaway não aparecerem), aceita com sabedoria e humor o que a vida lhe reserva. 



A recusa do telefone   


por 

Maria Amélia L.V. Correia  

Logo no início do romance, Saleh Omar encontra-se num apartamento em Inglaterra aguardando que lhe legalizem a situação de refugiado, para poder permanecer neste país. Tem 65 anos, saiu de Zanzibar onde sofreu prisões e torturas, perdeu família e bens, e está ciente que não mais voltará à terra natal. Adquiriu uma nova identidade, Rajab Shaaban, foi aconselhado a não dizer nada, a fazer de conta que não falava inglês. A fim de contactarem com ele, e agilizarem o seu processo de asilo, foi aconselhado a adquirir um telefone, mas sempre recusou terminantemente.

Omar é um homem solitário, já não é novo, e encontra-se numa situação bastante complicada, num meio hostil, mentindo sobre a sua identidade e fingindo não falar inglês. Adquirir um telefone podia ser um meio de perder a tranquilidade   e de se denunciar. Mesmo quando estabelece uma boa relação com Raquel, que é encarregada de tratar do seu pedido de asilo, perante a insistência dela, afirma nunca ter tido um telefone e recusa-se a arranjar “semelhante fardo”.

Para além de evitar possíveis impactos negativos desta tecnologia, que nunca utilizou, talvez haja razões mais profundas.





Omar tem uma identidade cultural bastante vincada, preserva os valores tradicionais e resiste à assimilação cultural. Através dos seus relatos e da maneira como se comporta em Inglaterra podemos verificá-lo. Sabemos que sofreu na pele as influências nefastas do colonialismo, e o telefone pode ser visto como uma ferramenta de controle e exploração dos colonizadores, como um elemento disruptivo em relação á comunidade donde é originário e que  tanto preza.

Sabemos que na sua cultura há uma longa tradição da comunicação face a face. As histórias relatadas, as visitas pessoais, as correspondências escritas são preferidas.  As narrativas de Omar Saleh e Latif Mahmud transporta-nos para o ambiente das “Mil e Uma Noites,” cujas histórias fazem parte do caldo cultural em que vivem e são referidas pelos dois narradores.  O calor humano e a conexão emocional, encontrada nas interações pessoais, não se coadunam com uma forma de impessoalidade alienante da comunicação telefónica.  Lembremos que Omar foi comerciante e os negócios se faziam com longas conversas. Era extremamente deselegante, e até ofensivo nestas paragens o toma lá dá cá do comércio ocidental mercantilista. Toda a história da amizade com Hussein surge de longas horas passadas em charlas no estabelecimento comercial que possuía. Muitas delas à volta da mesa de ébano que tanto mal-entendido irá gerar. O tempo nestas culturas não tem o significado que tem para nós, sempre preocupados com a tão apregoada “perda de tempo”.     

Concluirei que esta recusa tem um profundo significado simbólico, como gesto de contraventos e marés, preservar as tradições swahili num mundo globalizado e desumano.

      



Breve história de  Zanzibar 


por 

Ana Teixeira


Apesar de ter feito uma leitura muito fracionada do livro Junto ao Mar, a busca de identidade e de exílio convida-nos a descobrir a história da África pós-colonial e as razões do sentimento profundo de exiliado tanto em Saleh Omar como em Latif Mahumud.

 

Breve história da organização política de Zanzibar

Por volta do primeiro milênio, a região foi colonizada por povos de língua bantu que migraram do oeste e do norte de África. Mas Zanzibar também foi visitada por comerciantes árabes e outros povos tornando-se um entreposto comercial, com comerciantes árabes e persas a estabelecerem-se  em Zanzibar e na ilha próxima Pemba . Por volta de 1200 com a mistura distinta de árabes, persas e africanos havia-se desenvolvido a cultura suaíli que se espalhou por toda a costa leste africana.

Por essa altura, Zanzibar importava cerâmica do golfo Pérsico e rapidamente se tornaria uma base para mercadores árabes. O primeiro europeu a visitar a ilha foi Vasco da Gama, em 1499, acabando os portugueses por estabelecer aí um entreposto comercial e uma missão católica, dominando o território durante dois séculos.

Em 1698, o sultanato de Omã tomou Zanzibar, que se tornou o entreposto comercial do oceano Índico Ocidental, vendendo escravos e marfim no mundo árabe, na Índia e através do Oceano Atlântico.  

Em meados da década de 1880, expedições alemãs e Britânicas  começaram a explorar a região exercendo forte influência em toda a região leste africana, tendo o Reino Unido exercido forte influencia na Tanzânia , de tal modo que  em 1873, o então cônsul britânico entre  persuadiu o sultão a pôr fim ao tráfico de escravos

A forte influência britânica permitiu que em 1858, o sultão Majid Bin Said declara-se, com o seu apoio, a independência de Zanzibar. Após a independência, o Reino Unido desenvolveu relações cordiais com a ilha e favoreceu a inserção da influência britânica na região.

Em 1890, um tratado assinado entre a Grã-Bretanha e a Alemanha estabeleceu que Zanzibar estava na esfera de influência do Império Britânico e Tanganica e a colônia da África Oriental Alemã foi criada em Tanganica e outras regiões limítrofes.

A forte influência inglesa em Zanzibar tanto a nível sócio económico, como cultural contribui fortemente para acabar com o tráfico de escravos na região, tendo a Grã-Bretanha feito de Zanzibar um protetorado.

A Guerra Anglo–Zanzibari foi um conflito militar travado entre Reino Unido e o Sultanato de Zanzibar em 27 de agosto de 1896, que durou aproximadamente quarenta minutos, e é a guerra mais curta na história.Sua causa imediata foi a morte do sultão pró-britânico em de 1896 e a subsequente sucessão do sultão Khalid bin Barghash, menos favorável ao protetorado britânico e decidido a lutar contra a influência britânica em Zanzibar. Os britânicos moveram cinco navios de guerra para o porto, mas o conflito foi resolvido diplomaticamente  As autoridades britânicas nomearam o Sultão da sua preferência Hamud bin Muhammed, mais favorável a eles, como governante.

Esta guerra marcou o fim de Zanzibar como um estado soberano e o início de um período de forte influência britânica.

Na leitura de Junto ao Mar percebe-se que se por um lado os habitantes de Zanzibar vêm os britânicos como responsáveis pela imposição da sua cultura e autoridade, por outro lado vêm-nos como detentores do conhecimento e poder admirando a sua tecnologia e organização e algum “ progresso” então adquirido.

 Zanzibar ganhou, de forma pacífica, a independência da Grã-Bretanha em 1963 e  tornou-se uma monarquia constitucional com eleições organizadas com pelos britânicos. Note-se que Zanzibar, era um estado etnicamente diverso, com uma minoria árabe retendo o poder político herdado da época em que Zanzibar era um território ultramarino de Omã.

Frustrados pela pouca representação no parlamento, o Partido Afro-Shirazi (PAS), de maioria africana, aliou-se ao Partido Umma, de inclinação esquerdista e em 12 de janeiro de 1964, John Okello, membro do PAS, liderou uma revolução que depôs o sultão e seu governo . Período turbulento com lutas entre fações e represálias contra os civis árabes e austro-asiáticos na ilha foram intensas, resultando em uma contagem de mortos disputada, com estimativas variando de muitas centenas a 20.000 O novo governo, com simpatias comunistas, preocupou o Ocidente. Embora planos de intervenção britânicos tenham sido preparados, a retomada comunista nunca se materializou, pois o líder moderado do PAS ( partido Afro –Shirazi), Abeid Karume, tomou o poder e tornou-se o novo presidente e chefe de estadoKarume ao negociar uma fusão de Zanzibar com Tanganica( que em 1919 decorrente da primeira grande guerra foi entregue ao Reino Unido)  e formar o Governo da Tanzânia foi  visto como uma tentativa de prevenir e evitar  uma indesejada influência comunista.

 Zanzibar manteve um Conselho Revolucionário e uma Casa de Representantes, que foi até 1992

 


A Junção a Tanganica, formando a Tanzânia.

O partido TANU de Tanganica funde-se com o PAS formando o partido único Chamava-s Pendudzi partido único). Após a união,Julius Nherere, presidente do partido do então Tanu,  assumiu o cargo de presidente e Abaid Karuma como vice presidente da Tanzânia.

Apesar de fazer parte da Tanzânia, Zanzibar elege o seu próprio presidente, que funciona como chefe do governo da porção insular e uma assembleia denominada "Conselho Revolucionário".

Julius Nyerere, em 1977 transformou o  partido único Chamava-s Pendudzi  no partido  Chama cha Mapinduzi (CCM “Partido da Independência”), do qual continuou a ser presidente Nyerere permaneceu no poder até 1985 e conduziu o país segundo uma política denominada “Socialismo Africano”, uma forma de socialismo africano baseado na agricultura cooperativa.

Em 1985, Nyerere aposentou-se da presidência e, em 1992, a constituição foi alterada para permitir a democracia multipartidária.

Contudo, O Chama Cha Mapinduzi (CCM; "Partido da Revolução" em inglês) é o partido dominante no poder na Tanzânia e o segundo partido que governa há mais tempo em África, apenas depois do Partido Whig Verdadeiro da Libéria.

 

Zanzibar manteve um Conselho Revolucionário e uma Casa de Representantes, que foi até 1992

O partido foi sempre visto como poder autoritário. Desde a criação de um sistema multipartidário, o CCM venceu as últimas seis eleições gerais em 1995, 2000, 2005, 2010, 2015 e 2020. O seu candidato presidencial em 2005, venceu com folga, recebendo mais de 80% dos votos populares e o candidato em 2020 obteve mais de 84% dos votos. Nas eleições de 2010, o CCM ganhou 186 dos 239 círculos eleitorais, continuando a deter uma maioria absoluta na Assembleia Nacional

Desde a sua formação até 1992, foi o único partido legalmente permitido no país. A cada cinco anos, seu presidente nacional era automaticamente eleito para um mandato de cinco anos como presidente. Em  julho de 1992, quando foram aprovadas emendas à Constituição e uma série de leis permitindo e regulamentando a formação e o funcionamento de mais de um partido político foram promulgadas pela Assembleia Nacional. Contudoo CCM tem um papel de liderança na sociedade, apesar de ter democracia multipartidária na Tanzânia desde 1995, o CCM manteve-se no poder desde então. A análise empírica mostrou que o sentimento de nostalgia de um partido que trouxe a independência e que manteve relativa paz é uma das principais causas da base de apoio do CCM; a idade não teve determinante significativo na fidelidade à CMC. O partido tem forte apoio dos agricultores de subsistência. 

O CCM foi admitido na Internacional Socialista como membro pleno no congresso de primavera do em fevereiro de 2013.

Todavia a Tanzânia enfrentou o desafio de equilibrar sua liderança na Comunidade da África Oriental (CAO) com parcerias de segurança na Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC).

Como resultado desse dilema, a Tanzânia optou por uma dupla filiação nessas organizações de integração regional

 

 

Conclusão da situação pós-colonialismo em Zanzibar

 

Um dos principais impactos da revolução em Zanzibar foi o fato de ter derrubado a classe dominante árabe/asiática, que se tinha mantido   no poder por mais de 200 anos.

 Apesar da fusão com Tanganica, Zanzibar manteve um Conselho Revolucionário e uma Casa de Representantes, que foi até 1992, dirigida em um sistema de partido único e possuía poder sobre questões internas.  Após a Revolução de Zanzibar em 1964, Abeid Karume tornou-se o primeiro presidente de Zanzibar, como líder do PAS.

Actualmente o povo de Zanzibar continua com o poder de eleger seu próprio presidente, embora esteja dentro da estrutura da Tanzânia . Assim, o presidente de Zanzibar é o chefe do Governo Revolucionário de Zanzibar, que é um governo semiautónomo dentro da Tanzânia.

Atualmente, o presidente é Hussein Mwinyi. Ele também é o presidente do Conselho Revolucionário, cujos membros são nomeados pelo presidente, alguns dos quais devem ser selecionados da Assembleia dos Representantes. O presidente é eleito por maioria e seu mandato dura cinco anos, com a possibilidade de reeleição apenas uma vez 

 Presidente de Zanzibar, sendo o primeiro detentor deste posto. Inicialmente, este governo usou o sucesso da revolução para implementar reformas pela ilha. Muitas destas incluíram a destituição dos árabes de posições de poder, os serviços públicos de Zanzibar, tornaram-se instituições quase que completamente africanas e a terra foi retirada aos árabes e dada a africanos.

No entanto, o governo revolucionário, também instituiu reformas sociais como serviços de saúde gratuitos e a abertura do sistema educacional para estudantes africanos, que antes da revolução ocupavam apenas 12% do ensino secundário.

O governo procurou ajuda da União Soviética, da República Democrática da Alemanha e da China para o financiamento de vários projetos e para aconselhamento militar. O fracasso de vários projetos conduzidos pela RDA — como o New Zanzibar Project, um plano de renovação urbana datado de 1968 que visava a construção de novos apartamentos para os zanzibaris — levou Zanzibar a buscar ajuda dos chineses.

 O governo pós-revolucionário foi acusado de controles draconianos às liberdades pessoais e de viagem e exerceu nepotismo na nomeação de postos políticos e na indústria e o novo governo da Tanzânia não tinha poderes para intervir.

 A insatisfação com o governo chegou ao seu auge com o assassinato de Karume no dia 7 de abril de 1972, que foi seguido pelo confronto entre facções pro e antigoverno.  Um sistema multipartidário foi “estabelecido” em 1992, mas Zanzibar continua flagelada por alegações de corrupção e fraude eleitoral.

 

Actualmente:

·        Alta taxa de analfabetismo, principalmente entre as mulheres e baixa qualidade na formação inicial dos professores.

·        Escolaridade obrigatória apenas para o ensino primário do 1.º ao 7.º ano

·        Falta de infraestruturas adequadas nas escolas e recursos educacionais

·        30% de crianças abandonam a escolaridade antes do 7.º ano, devido à pobreza e questões culturais que no caso das raparigas priorizam o casamento precoce.

·        Altas taxas de desemprego

·        Economia fortemente dependente da agricultura e turismo

·        Acesso limitado a água potável e à eletricidade

·        Enorme dificuldade de acesso a cuidados de saúde principalmente nas zonas rurais

·        Falta de profissionais de saúde qualificados

·        Altas taxas de HIV, malária e desnutrição

·        O Reino Unido continua a ter enorme influência na governação de Zanzibar, apesar do partido dominante Chama Cha Mapinduzi (CCM) se apresentar de centro esquerda de tendência social democrática .


A história da África pós-colonial

por 

 Manuela Pereira_

Clube Leitura, 20 Fevereiro 2024


                                                                 Junto ao Mar, Abdulrazak Gurnah _2002

Zanzibar, situada no Oceano Índico ao largo “dessa faixa da costa oriental do continente” africano, “que se curvara há muito tempo para receber o musin, o vento das monções”, p.25 é uma cidade no sul da ilha de Unguja, a principal ilha do arquipélago, formado também por Pemba, a segunda maior ilha, Mafia, a sul, e por outras ilhas menores como a ilha de Changuu, que serviu de prisão ao longo dos anos e se situa entre a cidade e o continente, no Canal de Zanzibar.

Ao longo dos séculos, comerciantes e marinheiros intrépidos” aportavam às ilhas e traziam com eles a sua maneira de olhar o mundo, “deixando para trás e para o resto da vida, alguns dos seus conterrâneos”. p.25

Depois dos persas, que vieram para Zanzibar no séc.X, chegaram os primeiros ocidentais no final do séc.XV. Os portugueses. Mantiveram o rei local, que se tornou súbdito do rei de Portugal e passou a pagar-lhe tributo. Estiveram presentes no Arquipélago de Zanzibar até à invasão dos omanitas, em 1698. Zanzibar passou então a ser um sultanato independente de Omã até vir a fazer parte da colónia alemã de Tanganica, no continente, entre 1880 e 1919. No séc.XIX, Zanzibar tornou-se o maior centro de comércio asiático de escravos da África Oriental. Depois da derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, o território insular foi entregue ao Reino Unido passando a ser um protectorado britânico, até à independência em 10 de Dezembro de 1963.

Logo depois de os britânicos concederem a independência aos territórios insulares deu-se a Revolução de Zanzibar, que foi responsável pela deposição do sultão de Zanzibar, Janxide ibne Abedalá e do seu governo de maioria árabe – uma monarquia constitucional. As minorias árabes e austro-asiáticas das ilhas ocupavam lugares de destaque no comércio e sendo os maiores proprietários de terras das terras do arquipélago eram em geral mais ricos do que os africanos. O apoio geral ao sultão deposto era devido à diversidade étnica da sua própria família e os vários grupos étnicos estavam a misturar-se gradualmente e as distinções tornavam-se mais ténues.

“ Depois de tanto tempo, as pessoas que viviam nessa costa já mal sabiam quem eram, mas sabiam o bastante para se aferrarem ao que as tornava diferentes daqueles que desprezavam, quer vivessem entre eles, (…) quer povoassem o interior do continente.” Com a independência, as “aldeias disseminadas ao longo da costa africana, junto ao mar, passaram a fazer parte de vastos territórios que se estendiam por centenas de quilómetros em direcção ao coração do continente, apinhados de gente considerada inferior, e que, chegada a hora, não se coibiram de devolver o favor.” p.26

A revolução veio pôr fim a duzentos anos de domínio árabe. Depois de Janxide ter sido derrubado e exilado, o sultanato foi substituído por uma república, 12 Janeiro 1964, vindo o arquipélago a ser unificado com Tanganica, no continente, formando a República de Tanganica e Zanzibar, 23 de Abril,       – mais tarde Tan zan ia.

 






 

Um estado etnicamente e religiosamente diverso – 230 000 africanos, alguns de ascendência persa, conhecidos como shirazi, 50 000 árabes e 20 000 austro-asiáticos – perdeu-se numa série de eleições parlamentares que culminaram com a minoria árabe retendo o poder político. Os partidos mais importantes eram organizados por grupos étnicos maioritários que não aceitaram os resultados.

O Partido Afro-Shirazi – PAS, de maioria africana, aliou-se ao Partido UMMA, de inclinação esquerdista, e John Okello, natural do Uganda e membro do PAS, autonomeou-se marechal – de – campo e mobilizou revolucionários, na sua maioria africanos membros desempregados da Liga Afro-Shirazi, que saquearam a polícia do país e se apropriaram das armas.

As represálias contra os civis árabes e asiáticos – espancamentos, estupros, assassinatos e ataques a propriedades – causaram milhares de mortos. As lojas foram saqueadas e armas sem licença entregues à população. As propriedades árabes foram pilhadas e os “prisioneiros políticos” julgados em tribunais especiais. O massacre de prisioneiros árabes e o seu sepultamento em valas comuns foi documentado por uma equipa de filmagem italiana, que filmou de um helicóptero o documentário Africa Addio.

O líder moderado do PAS, Abeid Amani Karume, regressou do continente e tornou-se o novo presidente e chefe de estado do país. Sendo Karume um socialista moderado, tentou limitar a influência da esquerda radical. Mas cedeu posições de poder a membros do partido UMMA e adoptou muitas das suas políticas nas áreas da saúde, educação e previdência social. As reformas implementadas na ilha incluíram a destituição dos árabes de posições de poder, os serviços públicos tornaram-se instituições quase completamente africanas e as terras foram distribuídas passando da posse dos árabes para os africanos.



O possível surgimento de um estado comunista em África era uma preocupação para o Ocidente. O governo britânico preparou uma série de planos de intervenção, mas que não chegaram a ser postos em prática uma vez que cidadãos britânicos e americanos foram evacuados com  sucesso, em 15 de Janeiro. Nenhum europeu sofreu mal algum. A fusão de Zanzibar com Tanganica foi vista pelos meios de comunicação da época como uma tentativa de prevenir uma retomada comunista.

As simpatias comunistas do novo governo levaram ao estabelecimento de relações amistosas com a China e a União Soviética. A RDA e a Coreia do Norte foram os primeiros países a reconhecer a República de Tanganica e Zanzibar, em 23 Abril, seguidos por todo o Bloco Comunista que também reconheceu o país negociado por Karume. O governo procurou a ajuda da URSS, RDA e China para o financiamento de vários projectos e foram-lhe enviados conselheiros. Foi instituído um sistema multipartidário mas, em 1992, Zanzibar continuava flagelado por alegações de corrupção e fraude eleitoral. O governo pós-revolucionário foi acusado de controles draconianos às liberdades pessoais e de viagem, nepotismo na nomeação para postos políticos e na indústria. Karume foi assassinado em 7 de Abril 1972 e seguiu-se o confronto entre facções pró e anti governo. No 10ºAniversário da Revolução foram libertados 545 prisioneiros. A Revolução de Zanzibar é celebrada em 12 de Janeiro e o dia foi designado feriado nacional. Zanzibar é um dos países mais pobres do mundo.

“Desde a época dos faraós, a Africa tem sido cobiçada pela sua riqueza (…) As lendas sobre as riquezas do continente estenderam-se por milénios, atraindo exploradores e conquistadores de muito longe.” (Meredith, Martin_ 2017, p.11)

Esta é a história de Zanzibar, semelhante à de muitos outros países da Africa pós-colonial. (Wikipedia)


Junto ao Mar 

por

Conceição Rocha