sábado, 11 de março de 2023

Os Doentes do Doutor Garcia


 

Os Doentes do Doutor Garcia

Almudena Grandes

 

Temas de reflexão:

  • ·     Doutor Garcia vs Rafael Cuesta Sánchez
  • ·     “Manuel Arroyo Benites tivera sempre muito azar e muita sorte”
  • ·     “Que fizeste, Adrian? Não sei, pai.”
  • ·     “A minha história é a história de três impostores”
  • ·     Meg, a “gringa louca”
  • ·     “…neste país de um raio já se sabe que nunca há meio termo”
  • ·     Amparo, “uma virtuosa senhora católica”
  • ·     “Arriscámos a vida para nada. Julgámos que se tinham dado conta de que éramos os bons”
  • ·     Experta, a fidelidade aos princípios
  • ·     O relógio de xadrez

O Relógio de xadrez

por 
Alexandra Azevedo


7 de março de 2023

O jogo de xadrez está presente desde as primeiras páginas do romance. Don Fermin  e don Guillermo, vizinhos do mesmo prédio, jogavam uma partida de xadrez todos os domingos à tarde. Os netos, Amparito e Guillermo respectivamente, geralmente estavam presentes ou iam brincar às escondidas para dentro de um armário, numa inocente lubricidade, à espera do alarido que a sua falta iria originar. Mas o local do jogo era alternado, “uma semana na nossa casa” , conta Guillermo, “outra na dele, alternando os campos como as equipas de futebol”


Os jogos eram cronometrados por um relógio de xadrez, isto é, um relógio com dois mostradores de tempo, conectados entre si de tal modo que apenas um deles funciona de cada vez.

 O relógio de xadrez aparece recorrentemente ao longo do romance. Não por acaso, é um dos objectos que  Experta escolhe para meter no baú de partida de Guillermo pois, na verdade, o relógio de xadrez é a metáfora da vida das personagens e da própria Espanha.

 

De facto, o relógio pára para o Doutor Garcia quando este interrompe a sua vida de médico, lutando no hospital para salvar a vida dos opositores aos falangistas e se transforma em Rafael Cuesta Sanchez, um inofensivo empregado de uma transportadora que a coberto dessa uma falsa identidade acaba por se  infiltrar numa rede de evasão de criminosos de guerra alemães para a Argentina. Essa falsa identidade, por sua vez, tinha-lhe sido arranjada por Manolo,   Manuel Arroyo Benitez. Também Manolo  pára o relógio da sua vida ao  transformar-se em espião para ajudar na caça aos fascistas foragidos naquele país.

O jogo de xadrez continua com pobres peões como Adrian ou com rainhas poderosas como Clara Stauffer. Mas num jogo de xadrez há sempre um vencedor e o vencedor desta primeira parte da partida não é, como nos filmes americanos, o herói que pertence aos bons _ “Julgámos que se tinham dado conta de que éramos os bons” diz Manolo no final da narrativa. No entanto, o relógio de xadrez tem dois mostradores e o até então vencedor viu o seu tempo terminar em Novembro de 1975, com o xeque-mate ao rei feito pela  própria morte ao ditador Franco.

E o relógio de xadrez que, simbolicamente, passou para as mãos do filho do   Doutor Garcia, marca  agora o tempo de uma nova partida, uma partida que a Espanha democrática venceu, no jogo da história.


                 Amparo, "uma virtuosa senhora católica"

por 

Margarida Mouta

 7 de março de 2023


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“Cada família tem um armário fechado. Cheio até acima de pecados mortais”

        «Os meus protagonistas são pessoas correntes, normais, heróis e heroínas que não o parecem»

Almudena Grandes

Amparo. A primeira figura feminina que surge no livro, a mulher com quem, por razões estratégicas e ideológicas, o narrador/protagonista, Guillermo García, busca um encontro. Como católica que é, Amparo descerá a escadaria da igreja nesse domingo de Ramos de 1947, pronta para integrar a procissão, por entre as palmas e uma multidão de fiéis. A sua caracterização física diz-nos que ela se afasta do estereótipo da “virtuosa senhora católica”. Bonita (mais de longe que de perto), o seu corpo imponente cingido num conjunto saia-casaco demasiado justo e os seus cabelos demasiado louros para os cânones destacam-se no cinzento-negro das senhoras recatadas, deixando no ar uma “infração suspeita, de mulher de cabaré camuflada”. (p.16) Por esta altura ronda os 32 anos. Tem um rosto vulgar de camponesa, largo e carnudo com bochechas fofas e rosadas que se transforma numa máscara de cera, tensa e subitamente delicada e frágil quando se sente agarrada pelo cotovelo e ouve a voz do homem que lhe diz “Bom dia”.

Ficamos com curiosidade de saber as razões de tanta tensão. A curiosidade intensifica-se quando lemos o diálogo suscitado pela associação da figura feminina ao menino de oito anos que a acompanha: “Já não se chama Guillermo”. “Eu também não”. (p.19)

Ainda nada sabemos sobre os dois. Por agora, sabemos apenas que esta “virtuosa senhora católica” que se destaca na multidão conhece a verdadeira identidade do eu que narra e que na primeira página do livro surge como don Rafael.  Ficamos também a saber que ela voltará ao nosso encontro nas páginas que se seguirão. Ouvimos a voz do narrador: “Avancei alguns passos, confirmando que Amparo continuava a olhar para mim, (…). E então apareceu o sol. Teria sido uma bela imagem de despedida que ainda não me podia permitir.” (p.19)


 

      Nas páginas que se seguirão descobriremos diversas facetas de Amparo que farão dela tudo menos uma senhora virtuosa. O embuste, a falsidade, o gosto pela manipulação, andarão de par com o prazer dos sentidos, um comportamento hedonista pouco consentâneo com os castos deveres da virtuosa senhora católica preconizada pelo catecismo franquista.   

 

Amparo, Amparito, a vizinha com quem Guillermo Garcia de Medina partilhou a infância e as tardes de domingo, a menina cuja companhia compensava os desastres culinários de Experta, a criada de Don Firmin, o amigo do seu avô que, apesar das divergências políticas, religiosas e morais que os separavam, cultivava com este uma afinidade recôndita que se concretizava nas partidas de xadrez que religiosamente disputavam todos os domingos. Datam dessa época, os jogos inventados por Amparo, principalmente um muito especial que os conduzia invariavelmente ao esconderijo secreto no armário de don Firmin. Aí, no interior desse móvel, a emoção juntava-se ao silêncio, numa descoberta capaz de suspender o tempo. O cheiro da cera e da infusão de camomila que emanava dos cabelos da vizinha perfumavam “uma escuridão compacta, que se tornava ambígua, luminosa” e as suas respirações, em uníssono, eram manifesto de uma cumplicidade estranha e grave. Naquele móvel do escritório de don Firmim, com a Amparo, pela Amparo – é o narrador que no-lo diz – descobriu ele a natureza da intimidade. “Depois de repente, tudo se acabou”. (p.32) Tudo, tudo não, porque há ainda esse domingo de outono de 1927, em que Amparo exibe a precocidade dos seus 12 anos acabados de fazer, ao manter um jogo de sedução com um Guillermo adolescente, pouco ou nada familiarizado com o jogo erótico com que ela o surpreende.  Ao rever a cena em que ela se reclina na cadeira para lhe mostrar o triângulo branco das cuecas, embaraçado e atormentado, experimenta a vergonha do “tanso, do burro, do ignorante que tinha acabado de fazer um papelão”. Voltarão a encontrar-se em 1933, quando ele a expulsa de casa e lhe manifesta, com firmeza e determinação a sua aversão às obras de caridade com que a direita pretendia comprar votos. Dois anos depois, em 35, dá-se a rutura. Guillermo e Amparo cruzam-se nas escadas e é saudado com um “Arriba España” por uma Amparo que enverga o uniforme das falangistas. Camisa azul com o jugo e as flechas bordadas a vermelho[1] e, malgré lui, uma saia cinzenta “que lhe ficava a matar”. Pareceu-lhe tão bonita que em qualquer outro dia lhe teria lançado um piropo. Em qualquer outro, não naquele.

– Vai-te foder, Amparito. “(p. 39).

Quase um ano depois, na madrugada de novembro de 1936, encontramo-los juntos de novo no episódio em que Experta recorre à ajuda de Guillermo para resolver o problema do cadáver de don Firmin que há dois dias jazia no leito. Guillermo trata da remoção do morto e acompanha amparo no comovente e solitário enterro que se seguiu. Assistimos depois a um período em que Amparo se instala, primeiro clandestinamente, depois com a anuência de Guillermo, no apartamento da família Garcia. Morta de medo, cola-se ao vizinho, o único em quem confia, apesar de ser “vermelho”.  Aos olhos de Guillermo ela surgirá como um enigma. “Por essa altura, eu já não sabia quem era a mulher à minha frente, se era uma ou várias ao mesmo tempo, nem quais eram falsas, quais autênticas”. Ao longo de um constante jogo de provocações em que o poder feminino se exercia de modo insinuante e fulminante, materializado em pequenas encenações de menina malcomportada a merecer castigo, aquilo que Guillermo considera ser injusto, absurdo irritante e de mau agoiro, vem a afigurar-se no final desse ano, uma descoberta: “se viera ao mundo para alguma coisa era para ir para a cama com Amparo Priego Martinez”.  Antes disso, conhecera mulheres mais experientes, mais bonitas, de pernas mais longas, com cinturas mais estreitas, seios mais voluptuosos, rostos mais bonitos, olhos maiores e lábios mais cheios, mas reconhece que o que lhe acontecia com Amparo nunca lhe acontecera com nenhuma.

Neste tempo conturbado da catástrofe civil e do trabalho penoso com os feridos e estropiados que lhe chegam às mãos, a relação entre os dois será o estranho fruto do acaso e da guerra; a atividade sexual um refúgio para a situação que se vive nas ruas e no hospital. Guillermo estava ciente de que não era amor o que sentia por Amparo, sentia-se, aliás, frustrado, preso numa espécie de ficção amorosa, mas as noites de sexo com ela preenchiam o vazio deixado pelo horror que vivia durante o dia.

Não tardou muito que Amparo engravidasse. Casam a 6 de maio de 1938, numa cerimónia breve captada pela objetiva de um soldado que nas suas horas de licença tenta ganhar umas pesetas. Quando o filho nasce, recebe o nome de Guillermo como seu pai. Guillermo sente afeição pelo filho, mas as suas relações com Amparo deterioram-se. Em 39, com o fim da guerra civil e a vitória do franquismo, pouco antes do saque da casa perpetrado pelos fascistas, já Amparo se havia apoderado dos bens que lhe interessavam e fugira com o filho.

Quando mais tarde, Guillermo se infiltra na rede Stauffer com o objetivo de ajudar a localizar os nazis alemães para que sejam julgados pelas instâncias da Sociedade das Nações, Guillermo volta ao convívio e à intimidade com Amparo, desta vez jogando um jogo em que definitivamente está em vantagem. “A novidade residia no facto de me convir a mim e de continuarmos a ir para a cama até ela deixar de me ser útil. Não era um pensamento bonito, mas combinava bem com o sangue que manchava as paredes, com a atmosfera sinistra que respirávamos ao mesmo ritmo e com a frieza repentina das minhas reflexões.” (p.475)

Voltará a encontrá-la anos mais tarde, já depois do seu casamento com Rita Velasquez, quando Amparo o procura para tratar o pequeno Guillermo que sofre de febre reumática. Este é agora um adolescente de 14 anos que dá pelo nome de José António. A escolha da nova denominação fora uma clara homenagem a José Antonio Primo de Rivera, fundador do partido fascista espanhol, falecido no início da guerra e figura chave do regime, venerada por Amparo. Guillermo alegra-se por reconhecer a inteligência do filho e por ver que este se interessa por Galdós e pelo xadrez e tenta prolongar as visitas, mas Amparo providencia o afastamento. Ironia das ironias, vê-la-emos permanecer fiel aos seus ideais falangistas, sem suspeitar que o destino lhe pregaria a partida de ver o filho do outro lado da barricada, seguindo as pisadas do pai biológico. Dois anos antes de estas visitas ao filho doente terem começado, já nos apercebêramos do “adeus até nunca” que iria marcar os caminhos de Amparo e Guillermo. No dia do seu casamento, este vislumbra a presença da ex-amante na igreja. Ciente de que o único intuito que a levara a assistir à cerimónia rera o de “se exibir, se oferecer a si própria uma representação pública do seu antigo poder”, troca com ela umas breves palavras que serão as últimas. Nesse momento, ficamos a saber que ambos têm consciência de que o jogo acabara de vez. Para Guillermo, aquele último encontro seria o corolário da ausência de perturbação e indiferença que aquela mulher de cabelo amarelo e sobrancelhas escuras lhe suscita.

Findo este pequeno périplo sobre os encontros e desencontros do Doutor García com a sua amante Amparito, como classificar esta personagem?

  

Uma virtuosa senhora católica, como se lê no título?

Uma sedutora, leviana, falsa, calculista, manipuladora, dominadora?

Alguém incapaz de amar, respondendo apenas ao chamamento do desejo?

Uma criatura que não sabe perder, não admite os erros nem agradece o bem que lhe fazem? Uma despudorada que não olha a meios para atingir os fins? Alguém que, vivendo num cenário de catástrofe, se alheia do sofrimento dos outros, refugiando-se numa retórica maniqueísta de Nós e os Vermelhos?   

Ou simplesmente um subproduto da ideologia fascista pequeno-burguesa e ultraconservadora que, com as suas contradições, pode bem morar ali ao lado e manifestar-se na prática quotidiana como uma mulher de carne e osso chamada Amparo?

Deixo-vos com estas interrogações.

Margarida Mouta

7-03-2023

 

 

 

 



[1] Falangism, A Falange, Espanha png transparente grátis



Manuel  Arroyo  Benitez  tivera sempre  muito azar e muita sorte


por 

Manuela Pereira

7 de Março de 2023


“Eu sou eu e a minha circunstância” Ortega y Gasset        e         “A sorte favorece os audazes” diz o povo                                                                                       

                                                                        Os Doentes do Doutor Garcia, Almudena Grandes_2017  

 

A sorte e o azar atingem-nos a todos. Por vezes encontramos sorte quando temos azar e azar em momentos de sorte. Há quem tenha pouca sorte e pouco azar.

Manolo teve muito azar e muita sorte logo ao nascer.

Nasceu em 1910, numa aldeia perdida ao sul das Astúrias, e a sua família era pobre. Era o sexto de oito filhos e pertencia ao grupo dos pouco queridos. Azar.  Mas teve a sorte de nascer com boa cabeça para aprender o que lhe ensinavam, de ser “curioso e vivaço” 97 e de não o perturbar a solidão. Vivia como lhe apetecia.

Quando aos sete anos a mãe o deixou em casa do padre, para o servir, a alternativa de trabalhar na mina como o seu irmão Hermene, pareceu-lhe um azar bem pior. Don Marcos sonhava enviá-lo para o Seminário e Manolo trabalhou muito para conseguir uma boa educação. Tinha o desejo de escapar da miséria, a ambição de  ter uma vida melhor e a determinação para enfrentar don Marcos com um “olhar de granito” 99. Queria ir para o Colégio dos Pobres, em Villablino, não para o Seminário. “A verdade é que Deus não me chama, padre.” 99 “…e se não fala comigo deve ser porque Ele não quer, não acha?”.     Don Marcos viu-se sem força para vergar aquele olhar. “Faça-se a tua vontade, pensou don Marcos, então.”. 101

Em qualquer circunstância, com a força, a coragem e a lealdade com que enfrentou toda a sua vida, Manolo teria sido sempre um homem com muita sorte e muito azar.

No Colégio de Villablino, mais uma vez com muito esforço, conseguiu “a melhor nota de entre todos os que haviam concorrido ao exame” final. 101 Na candidatura à bolsa de estudo para fazer o secundário, conheceu os jovens Pablo Azcárate e Juan Negrín, a quem apertou a mão, e que seriam mais tarde, “os dois homens que mais haviam influenciado o seu destino.”.343 Em Setembro de 1922, abandonou Robles de Laciana. Partiu para Léon e, depois de completar o  secundário, foi para Madrid, estudar Direito. 102 Quando voltou a Robles para o enterro do pai, estava “um senhor”. 104 A mãe não acreditava no que via. Também nunca acreditaria que Manolo tivesse algum mérito na mudança. Nem pensou que se tivesse mandado os filhos preferidos, “ Juan e Toribio para o Colégio…estes pudessem ter fracassado.” 104


“A pobreza tornava duras e mesquinhas mães como a sua.”. Foi a última vez que viu a mãe. Deixou-a dizendo: “Tudo o que tenho, tudo o que sou, a si o devo.”...”Tudo. Por não me amar.”105

Mais tarde estudou Direito Internacional, francês, alemão e inglês. Azcárate “orientara-lhe a carreira à distância” e oferecera-lhe um lugar na Sociedade das Nações.103 Em Dezembro de 1932, em Genebra, conheceu Meg.107 “uma gringa louca”109 e entre os dois surgiu “uma paixão ardente”109 que se transformaria numa grande amizade e numa importante colaboração profissional. Amizade que “viveria até que o último dos dois morresse.” 114Teve muita sorte!

Manuel Arroyo Benites teve o azar de viver em tempos difíceis: a Guerra Civil espanhola e a ditadura de Franco, a II Guerra Mundial e a evasão de criminosos nazis para a Argentina através de Espanha, a ditadura argentina “culpada pelo desaparecimento forçado de milhares de pessoas”704 e a Guerra Fria. Teve a sorte de estar ‘do lado dos bons’ e de ter bons amigos.

No início da guerra, 1936, aceitou trabalhar com Azcárate, embaixador da República no Reino Unido,  para  “conseguir provas das “violações constantes e descaradas…patentes nas ajudas de Berlim e Roma ao bando golpista” 114 Quando em Dezembro 36, o embaixador o propôs para uma missão especial ___que seria “um trabalho delicado… e perigoso”115,“Teremos que te deixar cair se fores descoberto”___Manolo sentiu-se com sorte por voltar a Espanha e “desfrutou da luz e do sabor quase esquecido das laranjas.”116

Iria colaborar com Negrín, que já não sabia em quem confiar. Manolo tentaria descobrir a verdade.120    “Com a ascensão de Negrin, de Ministro das Finanças à presidência do Governo”, 90 a sua vida mudou.     “A 28 de Junho de 1937, Manuel Arroyo Benites registou-se num hotel de Madrid com uma documentação impecável”...” Era a primeira de muitas entidades que usaria na vida”117___Rafael Cuesta Sánchez.

Teve azar. Sofreu uma emboscada e pensou que iam matá-lo.125  Também teve sorte. Recuperou a consciência no hospital, mesmo a tempo de ouvir escolher a sua maca, para que Guilllermo Garcia Medina tentasse trazê-lo à vida. Chamas-te Felipe Ballesteros Sánches, lembra-te!”, disse-lhe o Dr.Garcia depois de o salvar.  Ficaram amigos. Um ano depois de deixar a casa de Guillermo, onde recuperara do tiro que o atingira, voltou a encontrá-lo. Viera de Valência, num carro do Governo,170 Para avisá-lo que a guerra estava a acabar e que a tinham perdido.171 Entregou-lhe o bilhete de identidade que tinha sido seu, quando era Rafael Cuesta Sánchez, e algum dinheiro num envelope. “Se quiseres continuar vivo.”, disse. Ele tinha sorte. Vivia em Valência, trabalhava no gabinete do presidente do governo e seria fácil exilar-se.117

Em Novembro de 1939, Manuel Arroyo Benites voltara a viver em Genebra. Azcárate tinha-lhe oferecido um posto oficioso junto do governo republicano no exílio.341 Meg Williams já não vivia lá e Manolo sentia saudades.340 Mas era uma sorte encontrar-se a salvo da guerra, num país neutro e não se queixava por ganhar pouco e por ter que engolir muitos sapos.

A II Guerra já tinha terminado, há mais de um ano que a Europa vivia em paz, quando Azcárate lhe enviou um bilhete de avão para viajar até Londes. Nos jardins da casa de Taplow encontrou-se com ele e com Negrín. Os dois amigos propuseram-lhe um novo desafio,346 uma missão muito perigosa.                Manolo sentiu-se com sorte e ”muito satisfeito por aceitar um risco maior” 348 e sair de Genebra, “uma cidade aborrecida…que enlouquece qualquer um.”364  Voltou a Espanha por Gibraltar 346 como cidadão norte-americano nascido em Nova Jérsia:347 Como infiltrado, Pedro Louzán Valero tentaria frustrar a política aliada de captação de antigos nazis 349 e, também, “desmascarar Franco e a sua colaboração na rota de fuga de nazis para a Argentina, através de Espanha”.361 Precisava “conseguir tornar público que o regime de Franco apoiava criminosos de guerra, culpados do genocídio judeu”362, para pressionar a opinião pública internacional. Iria fazer-se “passar por um criminoso de guerra nazi de nacionalidade espanhola”365 e infiltrar-se na rede Stauffer. A CIA tinha aprovado a missão, embora desconhecendo que trabalhava para Azcárate e Negrín.

Em Madrid, procurou de novo Guillermo, agora Rafa. Há sete anos que não se viam. Meg também estava em Madrid e parecia que o tempo não tinha passado desde “a última noite em que haviam estado juntos, em Genebra”366 Iriam trabalhar com a colaboração de Guillermo. Mas “o azar que lhe equilibrava a sorte desde que nasceu” e a “ambição de fazer as coisas melhor do que deveria”380 fez que fosse atingido por uma bala disparada por um anti-fascista, numa rebelião de estudantes.381Paco Contreras, único contacto que Pablo Azcárate lhe tinha dado antes de o mandar para Madrid, levou-o ao homem “que o salvara uma vez e que não hesitaria em resgata-lo de novo”380 Quis a sorte que encontrasse o Dr. Garcia a tempo.

Em 1947, depois de uma violenta transformação física, depois de Guillermo lhe ter partido o septo do nariz e de ter aprendido a coxear, conformou-se a estudar a carreira do Tigre de Trevino.427 Quando foi recebido por Ingrid Weiss429 foi apresentado como Adrián Gallardo Ortega, antigo pugilista que pertencera à Divisão Azul. Pressentiu que “a chave da sua impostura consistiria em comportar-se como o irmão que mais amava e de quem sempre tinha fugido.”430 E resultou.

A 28 de Novembro, partia para a Argentina mas, por azar, não iria sozinho. Clara Stauffer iria viajar com ele.482 Em breve estaria infiltrado numa sociedade poderosa e organizada,523 em Buenos Aires, enquanto comunicava com Azcárate em segredo.652 Após ter escapado aos desejos de Clarita, “já tinha reunido informação de sobra para processar aquela mulher uma dúzia de vezes”535 Aceitara uma missão e cumprira-a admiravelmente. Tinha passado um ano desde que saíra de Madrid, quando chegou ao fim. “Estava cansado de mudar de identidade, de se embebedar com assassinos, de não ter casa, nem família, nem futuro.”535 Sempre pensara que voltaria para a Europa quando a missão terminasse, mas um dia em que se ia encontrar com Fred Goodwin, o seu contacto em Buenos Aires, era Meg que o esperava.62 1”A vida tinha-o convertido num especialista em derrotas diplomáticas. Percebeu que os americanos não os iriam apoiar. Era “ o fim da esperança”.622

“Manolo tinha renunciado à sua própria identidade, a uma existência cómoda, com salário fixo num país democrático”481 Negrín dissera-lhe uma vez:: “Chamei-te porque confio em ti, Manolo, e isso faz de ti, para tua desgraça, um homem excepcional.”117 Não tens nada por que nos agradecer. Tudo o que conseguiste foi por mérito próprio.”119  Um dia depois de bater no fundo, levantou-se, comprou flores e acabou por pedir Simona em casamento. Simona, que tinha conhecido no Café de los Angelitos, era “uma mulher que precisava tanto de amor como ele próprio.”621 Quis acreditar que a sorte lhe sorriria a partir daí 611 “Atreveu-se a pensar que [o azar] farto de desgraças se renderia.”632

“Em 24 de Março de 1976, um grupo de generais argentinos dá um golpe de estado em Buenos Aires.”702 Entre a primavera de 76 e o outono de 82 a ditadura argentina tinha espalhado o terror.705 e as perseguições eram ferozes. Simone e Manolo tinham três filhos, e em Espanha tinha acabado de morrer Franco. Com muito esforço conseguiu falar com o cônsul espanhol em Buenos Aires713 e arranjar passaportes para toda a família. No final de Dezembro chegava a Madrid toda a família Pacheco Gáitan.

Com mais de sessenta anos e os cabelos grisalhos, Manolo e Guillermo voltavam a encontrar-se. Nenhum dos dois usava o verdadeiro nome, nem os filhos usavam o apelido dos pais.Tinham arriscado a vida para nada, partilhado um longo fracasso e nisso ambos tinham tido azar.718 Mas tinham muita sorte em continuar vivos…os mortos não se podem embebedar.724 com os amigos

 

 

 

 

 

                                                                                               

Arriscámos a vida para nada. Julgámos que se tinham dado conta de que éramos os bons

                                  por Maria João Leite de Castro

Esta frase retrata bem a desilusão sentida por Manuel Arroyo Benitez por ter dedicado grande parte da sua vida a trabalhar arduamente, com sacrifícios pessoais imensos, na defesa de uma causa e perseguindo um objetivo que, apesar de alcançado, se revelou inútil.

Poderia ter sido proferida também por Guillermo que viveu, embora em circunstâncias diferentes, o mesmo tipo de frustração, apesar de todos os seus esforços.

Quando li esta frase pela primeira vez, lembrei-me imediatamente de Kant e do que ele pensaria sobre ela. Na verdade, apesar de ser absolutamente solidária com a revolta e desilusão que ambos sentiram e com a impotência de Manolo perante a recusa dos americanos em usar o material que recolheu e que lhes permitiria desmantelar  a rede criada por Clara Stauffer e responsabilizar criminalmente todos os intervenientes, incluindo Franco, apesar de tudo isso, Kant diria que a ação realizada foi válida por si mesmo, independentemente das consequências que provocou e /ou do reconhecimento que teve.

Para Kant, a ação moral válida é aquela em que cumprimos o dever pelo dever, isto é, o cumprimento do dever é um fim em si mesmo. Neste sentido, se Manuel Arroyo Benitez fez aquilo que fez porque considerou que tinha de o fazer, que era o que a sua consciência moral lhe impunha fazer de forma categórica, então o facto “de os outros não o reconhecerem como bons” é irrelevante; assim como o facto de não ter tido as consequências desejáveis, por muito revoltante e frustrante que isso possa ser.

Essa grandeza moral, o próprio Manolo a reconhece em si próprio quando , ao recusar o trabalho na CIA que Fred Goodwin lhe oferece  (…)voltou a sentir-se forte, apesar de se dar conta de que a energia que o impelia era uma torrente escura, muito diferente daquela que sentira no início da reunião” (pág.628).

Também Guillerme vive o mesmo tipo de sentimento quando refere (…) estávamos ambos cientes daquele longo fracasso partilhado, mas por instantes voltámos a ser fortes, voltámos a ser jovens e poderosos, tão intactos como a nossa fé, a esperança que nos unira para sempre antes de nos abandonar na valeta onde choramingam os pobres imbecis, as crianças inábeis, os adultos sem sorte. (pág. 718/719).

Naturalmente que estas considerações não anulam a desilusão e a revolta, não devolvem a vida suspensa que ambos tiveram mas, pelo menos, ajudarão a mitigar o sofrimento e conferem aos seus autores uma grandeza que acredito que eles próprios reconhecem em si.

Infelizmente, esta narrativa não traduz um, caso isolado mas ilustra bem as razões ocultas que muitas vezes norteiam as decisões políticas dos governantes dos diferentes países. Não se trata de distinguir o bem do mal, de reprimir o mal e favorecer o bem, mas de agir em função de interesses económicos, ideológicos e  religiosos travestidos de uma justiça mundial que raramente é perseguida.

Daí o desânimo de Manuel Arroyo Beniteza, quando diz:

(…) se isto não serviu para ajudar os espanhóis, os outros que se lixem. Sei que esta reflexão não me deixa muito bem, mas… Nesta altura, estou-me a cagar para a justiça universal, que queres que te diga. (pag.722)



                             Que fizeste, Adrián? Não sei, pai.

                                                        Ou

            Sinopse de uma vida desperdiçada em vão, tecida de teias e erros encadeados uns nos outros.

por Delfina Rodrigues

 

            Ocorre o 1.º contacto com Adrián Gallardo Ortega na página 161[1] do livro, quando ainda se dispõem no tabuleiro as diferentes peças de um longo e intrincado jogo de xadrez que constitui a trama do romance. Corria o ano de 1938 e ele era então o soldado Adrián na Guerra Civil Espanhola, instrumento da rivalidade entre o Exército e a Falange, que a sua proverbial e reiteradamente insinuada falta de inteligência não deixava perceber. Combatia como pugilista pelo Exército contra Alfonso Navarro, falangista que não conhecia de lado nenhum e “sentia-se morrer de medo”, puerilmente agarrado a um escapulário que a mãe lhe dera. Ganha o combate graças a golpe baixo para que foi instruído, sem reclamar, em Bilbau, e esse é um marco decisivo no mapeamento da sua existência obscura, cujas etapas mais relevantes evocaremos:

           

  • Alista-se em 36 como miliciano no Exército que combate por Franco, o “único exército possível para ele, o que se revoltara contra o governo de Madrid, ao grito de Deus, Pátria e Rei e ao abrigo das bandeiras dos seus antepassados” (p.163). Ele nasce com uma mitologia familiar inscrita no seu ADN – a bravura dos Garrote, cujo sangue lhe corre nas veias e que lhe é inculcada diariamente pelo avô. Todavia, apesar desse passado (falacioso) que lhe era transmitido,” não tinha estofo de guerreiro”, não era levado a sério e no exército de Franco nada significou, até ser erigido, pelas mãos de António Ochoa, a campeão da sua brigada, como pugilista, sob o nome artístico de Tigre de Treviño, claramente incompatível com a sua natureza, tantas vezes lembrada ao longo das várias páginas do romance.

 

  • Etapa de vida como pugilista, frequentemente assombrada pelo espectro de Alfonso Navarro, o derrotado de Bilbau, pautada por ovações, sensação, mesmo que falsa, de vitória e queda na maior abulia, porque atormentada pelo remorso. Desenvolve um esforço hercúleo para superar as suas insuficiências naturais, granjeando a admiração de alguns, a troça de muitos. E chegou a campeão provincial. Mesmo nos melhores momentos, era-lhe sugerido pelo treinador que não pensasse, sabendo que não chegaria muito longe se pensasse. Diz-se, até, que quem coroou o Tigre de Treviño campeão de Castela, em outubro de 40, foi o espectro vivo do seu adversário de Bilbau.

            Após a derrota na final do Campeonato de Espanha, por KO, e um ano de profunda abulia, recorre a            Ochoa em busca de nova oportunidade, na área do pugilismo.    

 

  • Integra a Divisão Azul, em 42, por sugestão de Ochoa, seu protector e cérebro da maquinação de Bilbau que, ao tomar consciência de que” só ele tinha dado corda àquele boneco passado dos carretos, que estava estragado e já não se podia consertar” (p.227), o instiga a ir para a Rússia como voluntário, matar comunistas, em seu nome, dada a sua incapacidade física, e fazendo apelo à memória do seu avô.

 

  • Chega, em julho de 42, ao quartel general de Pokrovskaya, a 25 km de Leninegrado, onde reencontra o tenente Navarro, acreditando que é o destino a cumprir-se. Aí faz um amigo, Jan Schmidt que, ao contrário de si, tem pensamento e filosofia, falava de “ideologias macho” e “ideologias fêmea” e da “tara genética dos marxistas”, parecendo sempre consciente do móbil das suas acções.

            Aqui o encontramos no natal de 42, em poética e nostálgica evocação do natal da sua infância, na       sua aldeia longínqua, da recorrente pergunta a que a consciência difusa dos seus actos não permite responder: “Que fizeste, Adrián? - como sempre começavam os ralhetes do seu pai e os pequenos castigos. E a resposta: não sei, pai. Mas quando era pequeno, sabia sempre quais os delitos que motivavam a intervenção paterna.

Agora, neste natal, tinha pela frente um combate de pugilismo em que, pensava, iria ser esmagado porque não merecia ganhá-lo. Mas, num raro momento de lucidez, apesar de não ser muito inteligente, como insistentemente sublinhado, racionalizou a sua relação com a culpa e sentiu-se absolvido pelo facto de se ter limitado a cumprir ordens de Ochoa. A libertação da culpa deu-lhe novas forças, mas o combate foi interrompido por um padre, por achá-lo incompatível com o espírito natalício. Foi atacado à traição por Navarro que, em consequência disso, foi preso. Renasce o amor ao boxe com este acerto de contas com a sua consciência, mas lembram-lhe a sua condição de voluntário em guerra. Sente isto como um duro golpe do destino.

 

  • Enfrentou a batalha de Krosny Bor para deter a ofensiva soviética e manter o cerco a Leninegrado, onde “o seu corpo lutara quase sem se dar conta, como uma máquina despojada de espírito, como uma engrenagem de um mecanismo superior e insensível”(p.239). Sentiu-se numa guerra que, sem nunca o ter interessado muito, se transformara na única coisa que tinha.

 

  • Integra depois o corpo de voluntários espanhóis, a Legião Azul, em outubro de 43, aliando-se à Wehrmacht, apenas porque nada tinha que desse valor à vida. E, todavia, não se identificava com o nazismo, odiava Estaline, mas queria continuar a “cair até beijar o chão da morte”. Navarro também se alista.

 

  • Parte para a Legião Flamenga, por sugestão do seu amigo de guerra. Esteve na Ucrânia, na Estónia, “a matar comunistas”, como dizia Jan.

 

  • Participa na matança de Klooga, responsável, sob ordens, pelo assassinato de 100 homens, a sangue frio.

            Aí, a veemência do amigo assustava-o, com as suas “verdades científicas”, alegando que o           que matavam não eram seres humanos. Já ele, sentia que não tinha nenhuma conta pendente          com os condenados de Klooga. E confessa não ter qualquer instinto assassino. Sabia que a questão “não residia na bondade ou na maldade das pessoas mas na natureza das suas        ideias”. A voz do pai repetia, insistente, a pergunta de sempre, num paroxismo de angústia e      de perplexidade que sozinho não sabia resolver. E, num volte face inaudito, ele, que não          tinha filosofia nenhuma, até aqui incapaz de se autodeterminar, mitiga a dor com uma teoria             que acabou de elaborar, autoconsoladora: transformou as figuras vivas que antes o            enterneceram,             por quem foi capaz de sentir compaixão, em inimigos ferozes, impiedosos e         odiosos, porque o transformaram num assassino. A sua inocência era a culpabilidade              dos verdugos. - “Matei alguns homens, pai, não foram assim tantos. Em Kolpino matei       mais russos, em Krasny Bor muitos mais, isto é uma guerra. A guerra é assim”.

 

  • Parte com Jan para Berlim, em cuja defesa vai participar, porque, despojado de todo o sentido da vida, só busca “beijar o chão da morte”. “Já não tinha país, aldeia, casa a que voltar, porque tornara a nascer completamente só e alagado em sangue, nos bosques de Klooga”(p.299). Não defende Berlim por amor a Hitler, à sua causa, ou à sua doutrina, mas porque sentia que a vida se lhe esgotara. Sabia que mais cedo ou mais tarde teria de pagar com a vida a dívida que contraíra nos bosques da Estónia. E, paradoxalmente, quando se entrega à morte, reencontra a vontade de viver quando conhece Agnetta, combatente alemã, por quem se apaixona.

 

  • É preso após a queda de Berlim. Rendeu-se com a identidade de Alfonso Navarro Lopez, que assassinou no refúgio de Berlim. Porque sabe que a matança de Klooga lhe pode custar a vida, na nova ordem estabelecida com a derrota de Hitler. E porque precisava de ter uma oportunidade com Agnetta Müller.[2]

 

  • Não quer voltar a Espanha como Alfonso Navarro. Arrastado pela miséria, deambula pelas ruas de Berlim e, em casual encontro, é acolhido por Jan e Agnetta Müller, entretanto casados. Acolhimento que compensa com todo o tipo de trabalhos manuais e atenções, mantendo vivo o amor que o devolveu à vida. Torna-se amante de Agnetta, em progressivo desgaste com o casamento.           

           

  • Quando toma conhecimento de que Agnetta espera um filho seu, decide regressar a Espanha. Ele sabia que amava aquela mulher, “mas não a ponto de se submeter aos seus planos” (p.551). Tranquiliza a sua voz interior: “Não te preocupes, pai, que eu tratarei de consertar isto”.

            Sabe que tem de matar Alfonso Navarro uma segunda vez e recuperar a sua identidade.

            Com o objectivo de regularizar a sua situação, chega, através de contactos que passam por     Clara Sttauffer, a Guillerme Garcia que, perplexo com o regresso de Adrián Gallardo, o     próprio, vê perigar a vida de seu amigo e correligionário Manuel Arroyo Benitez, agora          assumido como Adrián Gallardo, que tinha sido considerado morto.

 

  • Morre na página 591, em Fevereiro de 50, porque não foi suficientemente inteligente para perceber os riscos que corria e a emboscada em que cairia ao comparecer ao encontro com Guillermo Garcia, disposto a ser compensado pelo seu silêncio.

 

            Assim, Adrián Gallardo Ortega, o verdadeiro, morre, cirurgicamente atacado por Guillermo Garcia para salvar a vida de Adrián Gallardo Ortega, o falso.

           

            Parafraseando-o, poder-se-ia dizer, em jeito de obituário: “Teve uma vida desperdiçada em vão, encadeando um erro atrás do outro” ou, ainda nas suas palavras, foi “um bom rapaz do campo, capaz de sentir a dor dos bosques que o rodeavam, inocente da matança em que participou à força, traidor do escapulário que trazia ao pescoço”[3].

            Nas palavras do seu treinador, que o conhecia muito bem, evoquemos “os olhos límpidos, inocentes de um bom rapaz de 23 anos que parecia não se ter despedido da adolescência”(p.218) e a constatação de que ”não era muito esperto, mas que era bom, um rapaz com bom coração, incapaz de magoar quem quer que fosse”; “Um menino grande”.

            E nós, menos avisadamente: Era um bom rapaz, não muito inteligente, daí o refrão que pontua diversas situações em que se envolve, nem sempre, ou quase nunca, fruto do exercício do seu livre arbítrio: a voz do pai, uma voz interior que vem da infância longínqua e o interpela: “Que fizeste, Adrián?” A que ele muitas vezes não sabia responder. Pensar nunca o levou muito longe. Mas sabia que “não se arrependeu de ter lutado na Rússia, na Ucrânia, na Estónia, porque o ódio justificava o esforço. Fora o ódio que sentia pelos comunistas, pelos assassinos de Deus, pela encarnação suprema e perfeita dos esfarrapados arrogantes que os Garrotes de todas as épocas haviam combatido que o levara a percorrer a Europa de ponta a ponta, mas em nenhuma etapa daquele caminho interminável dera o único passo por amor”. Noutras situações, designadamente em Klooga, não é capaz de identificar o móbil da acção, preso numa engrenagem de que não consegue libertar-se. Às vezes, era capaz de tecer justas apreciações sobre a sua vida a que só o amor veio dar algum sentido.

 

Deixemos a nossa perplexidade, enfim, numa interrogação final: como pode uma alma simples, um homem comum, sem confesso instinto assassino, situar-se ao lado da barbárie, perpetrar actos tão odiosos? A questão convoca o conceito da banalidade do mal, que Anna Arendt fez emergir, justamente na sequência de julgamentos de nazis.

 

            Ele foi a encarnação do “homem e as suas circunstâncias”, que ditaram o lado da história em que a sua vida se desenrolou. Mais anti-herói do que herói.

 

Porto e Clube de Leitura EASR, 7 de Março de 2023

 

[1]      Edição da Porto Editora, 2020

[2]      Afirma ele que, “no momento em que apertou o gatilho, nem sequer se lembrava do porto de Bilbau, do terror que o tinha impedido de ser campeão de Espanha em 1941, da noite de Natal de 42. Não o moveu o rancor, nem a culpa, nem o medo, só um amor tão grande que açambarcava todo o espaço dentro de si.” (p. 331)

[3]      Assim se viu ao olhar para Henrich Beyer, vendo nele o duplo de si próprio, mas que não acolheu a ordem para matar.




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