O MISTÉRIO DA NUMERAÇÃO DOS CAPÍTULOS
rascunho de um ensaio
por António nabais
O romance A Boneca de Kokoschka faz parte do livro
A Boneca de Kokoschka. No fundo,
trata-se de um romance incrustado. Afonso Cruz leva o encaixe às últimas
consequências, chegando a criar uma capa e uma contracapa no interior do livro,
incluindo elementos paratextuais. A numeração de capítulos é um exclusivo do
romance, estando ausento do resto do livro, onde os capítulos têm títulos que,
de uma forma geral, são ecos/antecipações de frases que surgem no próprio
capítulo.
No verdadeiro romance,
existe um único capítulo cujo número, 10946, é acompanhado por um (sub)título:
“A cara de Deus é um espelho infinito”
A numeração dos capítulos,
embora seja crescente, não corresponde a números que se sucedam imediatamente
uns aos outros. O mistério reside aqui: a que se deve esta numeração? Eis
algumas hipóteses:
- os números não têm importância,
ao contrário das palavras e, portanto, basta numerar os capítulos
aleatoriamente, desde que respeitando o princípio de que um capítulo tem de
corresponder a um número superior ao anterior. De qualquer modo, seria
interessante que um matemático analisasse a numeração dos capítulos
- o autor poderá ter
pensado (ou escrito) todos os capítulos em falta, mas considerou que não valia
a pena publicar a maior parte, tendo mantido a numeração original.
- o autor decidiu que
deverá caber ao leitor escrever (ou imaginar) os capítulos em falta, o que, no
fundo, acontece em todos os livros. Mais do que uma teoria da recepção, Afonso
Cruz quer impor a prática da criação. Propõe-se que, num próximo livro, o autor
deixe páginas em branco ou, no mínimo, um espaço em branco em que o leitor
inscreverá o número do capítulo.
- o capítulo iniciado na
página 227 pode conter algumas pistas que permitam interpretar a numeração dos
capítulos, tendo em conta a referência ao baralho de cartas.
- todas as histórias são incompletas
e, portanto, nenhum livro tem todos os capítulos que deveria ter. Por outro
lado, há sempre acontecimentos que ficam por contar ou outros que poderiam
ou deveriam ter acontecido. E se João da
Ega só tivesse sabido do parentesco de Carlos e de Maria Eduarda após o
nascimento de um filho de ambos?
- no último capítulo do
romance, há um parágrafo que poderá suscitar uma reflexão interessante:
“Capítulo infinito: o último”. Poderá isto confirmar que todas as narrativas
são abertas e todos os capítulos insuficientes?
- a propósito do último
capítulo, é importante notar que o número (75025) é uma referência da Lego e
corresponde a uma nave Jedi, o que alia o lúdico a valores essenciais e coloca
Afonso Cruz do lado certo da Força. Pode, ainda, dar-se o caso de a nave ter
sido uma prenda oferecida pelo autor a um filho ou a um sobrinho, o que deverá
ser investigado pelos biógrafos.
- Afonso Cruz poderá ter
enviado à editora todos os capítulos, mas terá sido informado de que não se
conseguiria vender uma obra com tantos volumes. Também há a hipótese de que um
vírus informático tenha provocado o desaparecimento da maior parte dos
capítulos, podendo este ser o primeiro romance que nasce dos acasos da
Informática.
- a tentativa de explicar
a numeração desta obra faz parte da acção – já em curso – de um novo romance de
Afonso Cruz em que as personagens, os membros de um clube de leitura da cidade
do Porto, se juntam para debater A Boneca
de Kokoschka. O autor já terá confessado a alguns amigos que não sabe que
razões o levaram a escolher a numeração dos capítulos, mas que o diverte imenso
que haja uma personagem a tentar explicar aquilo que ele próprio não sabe.