quinta-feira, 5 de julho de 2012

A Elegância do Ouriço

27 de junho de 2012: todos suspensos do jogo Portugal/ Espanha, todos com um único pensamento: ganhar à Espanha (que  tem sempre um saborzinho especial). Todos? Não! Isolada na sua torre de marfim com vista para um jacarandá que já lá não está...Conceição escreve!Solitária, escreve!Indiferente, escreve!E nenhum dos temas propostos para reflexão escapa à sua capacidade inventiva:
 
  • Não há amizade possível entre as classes. "
  • "Para que serve a Arte?"
  • "Para que serve a gramática?"
  • As pessoas vulgares: são o que parecem?
  • O significado cultural da decoração de interiores.
  • Os ocidentais e o oriente: idealizamos os orientais?
  • Uma camélia pode alterar o destino?




 Eis o resultado da sua reclusão, insólita reclusão:

Uma camélia pode alterar o destino

por Conceição Rocha
  

Porto, 27 de Junho de 2012


Introdução

Queridos amigos e amigas do clube de leitura: a escassas horas de se decidir o futuro de Portugal e ciente de que a minha e vossa honra residem na biqueira de onze pares de botas, umas quantas cabeças e um apito que consta ser maldoso, não posso deixar de vos narrar um episódio que o meu coração guardará eternamente na aurícula que reservo à emoção, à ternura e mesmo à inteligência.
Como sabeis, o futebol é para mim o Desporto, a Arte, o Quadrilátero da paixão.  Tenho de confessar-vos que datas e acontecimentos se me esvaem sem pudor, mesmo os que deveria reter por amor, amizade ou utilidade; porém, perguntai-me o nome do ponta de lança da equipa lusa no mundial de 60, ou de qualquer outro e não tardareis a ter a resposta em segundos, acompanhada dos chutos que foram ao poste, dos cartões amarelos, do tamanho da taça em decímetros e polegadas. Corolário desta paixão serena mas avassaladora, a necessidade de estar presente nos grandes momentos, nacionais ou do clube que amo como se ama o próprio Amor.
Esta pequena introdução far-vos-á compreender e, porventura, aceitar de boa mente, a história que vos vou contar. A sua veracidade pode ser atestada pelos cinco amigos que comigo partilham a devoção dos estádios e que a presenciaram a meu lado em todo o seu decorrer.Ei-la:

      Eis como uma camélia pode alterar o destino:



Estávamos às portas do campeonato europeu de 80, na Itália. O fervor pelo desporto-rei e a escassez de recursos com que me governo fez-me, como de costume, planear com alguma antecedência viagem, instalação e lugares no estádio. Como português expedito, logo me lembrei de recorrer ao meu sobrinho, rapaz esperto, com amizades por todo o lado, feitas entre as discotecas e as viajatas para as quais parece nunca lhe faltarem meios. Logo este se lembrou de um amigo a estudar em Roma, a quem iria encomendar a escolha de pensão modesta mas limpa e até, se possível, o encontro à chegada, no aeroporto. O amigo aceitou a incumbência, sendo-lhe dito pelo meu sobrinho que me identificaria por uma camélia na lapela do casaco. Tudo na perfeição, vamos ao que interessa.

Capítulo I: os ocidentais e o oriente: idealizamos os orientais?


Entrado na pensão e passados os preliminares, dirigi-me ao quarto, pousei o saco e apressei-me a sair, pensando que poderia andar por ali algum português com  vontade de desabafar. Mas não: pelo átrio passarinhava um oriental, que vim a saber depois ser coreano. Como se ria para mim, percebi que era um tipo amistoso, embora  não me agradasse partilhar telha justamente com um representante do adversário que iríamos defrontar no dia seguinte. À cautela, perguntei ao rececionista o que fazia ele e a resposta deixou-me espantado. O sujeito era o decorador de interiores encarregado de decorar o altar votivo ao Kim-il-Sung, a quem os jogadores tinham que agradecer a sorte de estarem vivos, pelo menos até ao fim do jogo. Vénia daqui, vénia dali, corretos são eles, percebi que o homem não queria descolar. À falta de melhor, arrastei-o comigo até ao museu onde o amigo do meu sobrinho estudava uns quadros que lá havia e me esperava para almoçar. O coreano a comer esparguete com garfo foi um espetáculo mas, quando acabou a pratada, lá fomos visitar o museu para gastar o tempo. O doutor tinha conversa para os quadros todos, aquelas mulheres com as carnes rosadas com anjinhos à volta já estavam a mexer comigo e ele frio como um gelo a dizer que era a deusa da caça, quem a caçava era eu, se se me punha a jeito com aqueles peitos. Adiante. O coreano seguia-nos sempre, sempre a acenar com a cabeça como se entendesse o doutor mais as complicações que ele ia contando. Especial atenção deu a uma estátua grega sem cabeça e com os membros destruídos de tal modo que se equilibrava através de um suporte de ferro. Caíram-lhe lágrimas. Logo entendi que se lembrou que o desgraçado não podia pontapear nem cabecear. Consolei-o, disse-lhe que a Grécia entrou em declínio e não foi por acaso, os italianos venceram-nos mas foi fatalidade ocorrida há centenas de anos. A partir daí, a Itália liderou vários campeonatos, muitos com a ajuda do luso génio na grande área. Mais lhe expliquei por gestos que quem sabe chama arte a esses gregos escacados, fabricados aos milhares para decorarem museus em todo o mundo. A propósito: para onde teria ido o dinheiro que ganharam com tanto artigo que produziram, embora de qualidade duvidosa, pois quase tudo se escacou? A verdade é que os pedaços continuam a ser arte, o que me levou a refletir: para que serve a arte? Para um português e um china se entenderem na frente de um mastronço sem cabeça nem pernas, na véspera de a alma lusa mostrar o que vale com os pedaços que faltam ao grego de pedra. 
Cansados mas satisfeitos, fomos jantar e regressamos à pensão que o acaso nos fez partilhar. Agora só eu e o oriental, taciturno, ensimesmado, como quem cogita sobre toda aquela matéria artística espalhada pelo museu. Para o desanuviar, fui mostrar-lhe o equipamento português completo com que me fardo e vi o seu. Achei-o tristonho, sem o rubro do sangue na guelra e o verde dos relvados infinitos que povoam a mente dos ganhadores. Entretanto despedimo-nos, arranjei-me e adormeci com a música das trombetas da vitória anunciada. Não sem um último sorriso cínico ao pensar na tristeza do meu pobre companheiro no dia seguinte.