O Amor em Na tua face de Vergílio Ferreira
por Margarida Mouta
por Margarida Mouta
[…] todo o homem só ama a mulher que não existe. E bom é isso. Porque se ela existisse, o amor deixava de existir. Mesmo que ele a ame como supõe. Porque todo o amor só existe nos intervalos de a pessoa amada existir. Fora desses intervalos não existe.”
Vergílio Ferreira, Pensar, p. 53-54
Como narrativa (romance, paixão) – diz-nos Roland Barthes[1] – o amor é uma história que se cumpre no sentido sagrado. Um programa que deve ser percorrido. Em Na tua face, a história esgota-se num núcleo diegético mínimo que se resume em brevíssimas palavras: Daniel conhece Bárbara que exerce nele um extraordinário fascínio, mas casa com Ângela que não ama (ou que ama de outra forma) e continua, pela sua vida fora, convivendo através da memória com o amor impossível que sente por Bárbara, em lembranças que vêm por si, sem que ele as chame.
Quanto ao programa que deve ser percorrido, não será outro senão o da oscilação entre a eterna problematização da condição humana tão cara a Vergílio Ferreira e a tensão entre a evocação e a reflexão filosófica que perpassa em cada página deste livro.
Não é fácil falar de amor – do amor – num romance como Na tua face que se move num complexo jogo de conexões e espelhos em que todas as coisas parecem ter o seu duplo, em que tudo parece oscilar entre o que se vê e o que se imagina ver, entre o que se vive e o que se evoca. Não é fácil determinar o lugar que o amor aí ocupa se não o considerarmos também ele como sentimento duplo, passível de ser questionado e olhado nas suas duas faces: o real e o irreal, o visível e o invisível, o possível e o impossível. Tudo nesse amor evocado por Daniel é duplo: Ângela e Bárbara são duas faces da mesma moeda que o acompanharão sempre. Ângela será a presença constante na conjugalidade partilhada da casa, dos filhos, das férias, mas também das leituras, das conversas, dos momentos de dor e silêncio… Bárbara será o objecto da evocação obsessiva; manter-se-á presente na memória de um breve instante, no eco de um chamamento, como manifestação de plenitude, de perfeição, de eternidade, a face que se vê, mas só no impossível:
“Então olhei-a em deslumbramento e terror no intocável do seu ser. Queria ver-lhe os olhos verdadeiros e a boca e a face, mas não estavam lá. Porque eram só uma aparição difusa incontornável como a luz do ar que não se via e era só iluminação. (…) Via-lhe a face mas só no impossível como lha vejo agora” (pp.24-24)
O breve instante em que Bárbara se imobiliza ao ouvir o seu nome pronunciado por Daniel gravar-se-á para sempre na memória deste último. À distância de alguns anos, o enunciador/Daniel, na sua duplicidade ontológica, interroga-se sobre esse momento furtivo com que inicia o romance. A quem atribuir a escolha? Ao destino? A um alguém que sobrepõe a transcendentalidade à realidade?
“Quem foi onde eu não estava?” Alguém pois escolhe por nós o que escolhemos para a eternidade? Alguém. Um pacto feito fora da acidentalidade exterior.” p.9
Mas a impossibilidade incontornável de viver o amor por Bárbara irá coexistir, desde o primeiro momento, com a figura de Ângela de quem Bárbara é o corolário, “a auréola”. Na descrição de um dos seus primeiros passeios ao longo do rio, em Coimbra, cidade onde tudo começou, Ângela caminha ao lado de Daniel. “Sóbria e impessoal, indiferente à canícula, a face clara e fresca”. Mas paira no caminho, o fantasma de Bárbara:
“ Bárbara, eu sabia-o, ia caminhando connosco”. (p.12) “Então chegámos ao parque e havia lá um banco à nossa espera à sombra. E eu disse Bárbara, Babi. E fui triste. E beijei Ângela longamente na boca por detrás da sua imagem presença.” (p.15)
A própria circunstância de Ângela e Bárbara serem amigas íntimas, de viverem na mesma casa, longe de ser um acaso, constitui mais um sinal de transmutação/substituição:
“Bárbara impregnava-a fortemente da sua presença para mim.” (p.11)
“Quando ontem aconteceu aquilo [o beijo no parque] havia muita Bárbara em si. Um acto de desespero, não sei. Não era imaginação, ela veio connosco, não sei se reparou, eu disse-lhe que se fosse embora mas depois chamei-a outra vez e ela veio vindo e envolveu-a toda a si.(p.28)
A aproximação a Ângela faz-se, pois, por interposição da presença de Bárbara. O que não retira, no romance, uma grande força à sua figura, que cedo se recorta como personagem de uma vitalidade surpreendente, bem individualizada. Firme e estatutária, é Ângela que anula Bárbara, negando-lhe a existência:
“Bárbara não voltará mais. Nunca mais. Ela nunca existiu. Eu existo. E ficou a olhar-me muito séria a existir.” (p. 28).
“O amor aprende-se, disse-me ainda, e tem isso assim uma grande importância? Ou inventa-se, que é o mesmo.” (p.28)
Ângela é o corpo, Bárbara a aparição. Alheia às elucubrações de Daniel, tudo nela é vivido no plano da existência, numa atitude pragmática que o narrador ironicamente define como lisura didáctica sem um intervalo para um erro gramatical. Arquétipo da beleza fria, loura, branca, “estátua de leite frio” é inteligente, obstinada “destino de perfeição a cumprir”. Curiosamente, num romance em que todas as personagens principais têm uma dupla onomástica (diminutivos afectuosos e ternos que se substituem aos nomes próprios: Daniel/Dani, Bárbara/Babi, Luzia/Luz, Lucrécio/Luc), Ângela é a única que se manterá no invólucro do seu próprio nome. Ângela – parte integrante da realidade percepcionada pelos olhos do narrador/Daniel. Mas também parte de uma realidade submersa na superfície visível das coisas. E como se a olhasse pela primeira vez, inesperadamente, Daniel começa a amar Ângela:
[…] e inesperadamente comecei a amar Ângela. Como se ama a essência de alguém em tudo o que a respirou. Amigos parentes. A casa em que viveu. Os objectos do seu uso e que foram também contaminados – mas não eram só isso. Era Ângela em pessoa, olho-a pela primeira vez. Era a encarnação de um certo milagre que a transfigurava no que ela era, mas em transfiguração, qualquer coisa assim, bela e incompreensível.
O sentimento adensa-se no dia em que, olhando para uma série de radiografias de Ângela, Daniel subitamente se dá conta da realidade dual. Do “ser oculto de si” que se escondia por detrás do seu corpo:
“Ela era dupla na frescura do seu corpo, no branco-rosa da face, nos olhos marinhos, e no que era tudo isso em armação por dentro. Pela primeira vez eu vivia no interior e dizia tens de amá-la também aí. Não se ama um fruto só na casca, tens de comê-lo por debaixo.” (p.78)
E na espessura dos dias, esse amor vai-se tecendo, não na vida que partilhou com Ângela, mas na arte de “navegar no equilíbrio do seu percurso”, no intricado dos pequenos e grandes acontecimentos, (a educação dos filhos, a escrita da tese, a tela por acabar, a organização das tarefas domésticas, a morte de Luc, as ausências e o desprendimento de Luz, a cegueira e os sinais da velhice).
“E há tanto ainda que estar só contigo. Ângela. Dá-me repouso dizer o teu nome como uma cadeira de balouço.” (p. 191)
Contudo, há em todo o discurso uma duplicidade que envolve o Eu que se esconde por detrás do Narrador/Enunciador. O Daniel das últimas páginas não é já aquele que busca o repouso no nome de Ângela, mas o que vê no reencontro com Bárbara, através da sua face enrugada e marcada pelo passar do tempo, a sua antiga face:
“E imprevistamente era aí que eu repousava, na tua face, na imagem final do meu desassossego.” (p.222)
O ciclo evocativo quebra-se com o afastamento de Bárbara, sob a neblina espessa em que a sua figura se esfuma, no mesmo virar de costas com que desaparecera no mar aquando da evocação do primeiro encontro. Tal como no soneto de Camões, a circularidade parece ser a resposta enigmática para definir o amor.
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