quarta-feira, 19 de setembro de 2018
domingo, 9 de setembro de 2018
Entre Dois Palácios
NAGUIB MAHFOUZ
Prémio Nobel da Literatura 1988
Romancista egípcio, Naguib Mahfouz nasceu a 11 de Dezembro de 1911 em Gamaliya, nas cercanias do Cairo. Filho de um funcionário público, teve acesso a uma educação esmerada.
Após ter concluído os seus estudos secundários, ingressou na Universidade do Cairo, de onde obteve o seu diploma em 1934. Enquanto prosseguia um curso de pós-graduação, Mahfouz tomou a decisão de se tornar escritor a tempo inteiro.
Começou por colaborar para a imprensa com artigos e contos, reunindo estes últimos num volume aparecido em 1938. No ano seguinte conseguiu alcançar uma certa estabilidade ao seguir as pisadas do pai, tornando-se funcionário público no Ministério dos Assuntos Islâmicos.
Também nesse ano de 1939 publicou o seu primeiro romance, Abath al-Aqdar, obra em que, com volumes como Radubis (1943) e Kifah Tibah(1944), o autor procura fazer abranger a totalidade da história do Egipto. Em meados da década de 50, surgiu com Al-Thulatiya (1956-57, A Trilogia do Cairo), obra em que descreve as andanças da família de Al-Sayyid Amad Abd Al-Jawad durante três gerações, desde a Primeira Grande Guerra até ao tempo presente.
A Revolução do Egipto, ocorrida em 1952, depôs o monarca Farouk I e instaurou um regime liderado por Gamal Abdel Nasser. Desagradado com a situação, o escritor votou-se ao silêncio durante alguns anos. Reapareceu em 1959 com trabalhos de índole prolífica e variada.
Alterando o seu discurso e recorrendo à alegoria e ao simbolismo para veicular as suas opiniões políticas, publicou Al-Liss Wa-Al-Kilab (1961, O Ladrão e os Cães), romance que conta a história de um gatuno de convicções marxistas e que, após ter sido aprisionado e eventualmente libertado, procura a vingança e encontra a morte.
Após ter exercido as funções de diretor do Gabinete de Censura egípcio, Mahfouz retomou o mesmo cargo junto da Fundação para o Desenvolvimento do Cinema, entre os anos de 1954 e 1969. A partir de então tornou-se consultor cinematográfico para o Ministério da Cultura do seu país, acabando por se reformar em 1972.
Entretanto, em 1965 surgiu Al-Shahhadh (O Pedinte) e, dois anos depois, Miramar (1967), romance que descreve a vida de uma rapariga através de quatro narradores, cada um deles representando uma corrente de pensamento político diferente.
Galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1988, Naguib Mahfouz caiu no desagrado dos fundamentalistas islâmicos que, em 1994, enviaram dois assassinos ao seu encontro. Apunhalaram o escritor no pescoço com uma faca de cozinha, mas falharam o atentado e, capturados, foram ambos condenados à morte no ano seguinte.
Faleceu no Cairo a 30 de Agosto de 2006, com 94 anos.
(do site da Wook)
Entre os Dois Palácios
(1º volume de A Trilogia do Cairo)
Verba
volant, scripta manent
Temas de reflexão
O Egipto no princípio do século XX
· Personagens femininas:
a importância do olhar
· Por detrás da machrabiyya
· Sayyed Ahmad Abdel
Gawwad, o prisioneiro
· A “sessão do café”
· Yassin e a mãe
· O mundo de Kamal
· O espaço da religião
na vida colectiva e na vida pessoal
· Famhi, o cordeiro
inocente
Clube de leitura
30 de Julho de 2018
Hora do café,
hora de partilhar notícias importantes e cheias de esperança, como o desejo de
Fahmy de ficar noivo, ou um possível pedido de casamento de Aisha transmitido
por Fahmy, contando com a mediação da mãe para contornar a previsível ira
paterna que vê na hipótese de alguém ter conhecimento da sua filha ou da filha
do vizinho um ataque à sua própria honra.
Clube de leitura
30 de Julho de 2018
O
espaço da religião na vida colectiva e individual
Maria João Leite de Castro
Na
narrativa, a forma como cada personagem vivencia a religião apresenta
diferenças enormes. O expoente máximo dessa vivência é, naturalmente, Amina, a
virtuosa e submissa esposa. São várias as passagens do livro que ilustram esta
convicção religiosa que, aliadas à sua natureza generosa, a convertem num
modelo para toda a família.
Amina amava as galinhas e os pombos,
como todas as criaturas de Allah em geral, e mantinha com elas amenas
conversas, certa de que a compreendiam e acolhiam com emoção.
A sua imaginação concedia, aos animais e
por vezes até aos objectos inanimados, a faculdade de sentir e entender. Estava
convencida de que estas criaturas celebravam a glória de Deus e participavam no
mundo espiritual por razões diversas ».(…)( págs 40/41).
(…) Antes de deixar o terraço, levantou
as mãos para o céu e rezou a Deus, dizendo: «Meu Deus, suplico-te, vela sobre o
meu senhor, os meus filhos, a minha mãe, sobre Yassin e todas as pessoas,
Muçulmanos ou Cristãos e mesmo os Ingleses, mas, ó Deus, expulsa-os da nossa
terra para agradar a Fahmi, que não gosta deles!»(…)
(pág. 42)
Para
Amina, toda a vida se desenvolve em função da religião - a sua conduta, os seus
valores, a educação que procura dar aos seus filhos. A única vez que ousou sair
de casa, contrariando o seu sayyed, foi para responder ao chamamento religioso
de Sayyedna el- Hussein.
Naturalmente
que a forma como Ahmad Abdel Gawwad vivencia a religião é absolutamente
diferente. Embora crente piedoso, embora
cumpra com a esmola legal, o jejum, a oração, a invocação de Deus, Ahmad não renuncia aos prazeres mundanos,
mesmo os mais ilícitos perante a sua religião, como o álcool e o sexo com mulheres de pouca virtude. (…) Deste modo, a
sua vida encerrava uma série de contradições que oscilavam entre a devoção e o
vício. (… ) » (pág. 49).
Para
serenar a sua própria consciência, Ahmad afirmava que só seria proibido o que
pudesse lesar outrem e que o próprio profeta era apaixonado pelos perfumes e
pelas mulheres. Para além disso, Ahmad
reconhece a clemência de Allah, só ele detentor da perfeição. Não
consegue imaginá-lo «exaltado, enfurecido
ou rabugento» e afirma mesmo que a Sua vingança é uma graça oculta.
Apesar
das diferenças notórias como cada membro da família vive a religião, há traços
que são comuns: nenhum deles questiona os fundamentos da religião (mesmo Fahmi,
o mais revolucionário e reflexivo, afirma-se profundamente religioso: (…) A nossa guerra santa serve também a
causa de Allah! Todo o nobre combate serve a causa de Allah! (pág. 431) e
vemos a influência que a religião tem em todos na forma como ela está presente
na linguagem do dia a dia, nos cumprimentos, na forma como expressam as emoções
e como olham o mundo.
Actualmente,
o Egipto é realmente terra de Allah. Há 90% de muçulmanos e 10% de cristãos.
Apesar de o Estado se afirmar como laico, a religião está profundamente
associada à cultura do país e há também os defensores (ainda que minoritários)
de uma política completamente baseada na religião : a sharia.
Mas
as contradições, em termos colectivos, também existem: se, por um lado, se
mostram extremamente religiosos (embora não fanáticos) por outro lado, não
obedecem ao chamamento para a reza, a não ser às sextas feiras. Se o álcool é
visto com proscrito, o haxixe está muito difundido. Se o divórcio ainda é
proibido entre os coptas, a solução é converter-se a outra linhagem cristã.
A
convivência entre as duas religiões é pacífica e respeitadora. Durante a
revolução de 2013, quando se sucederam uma série de ataques bombistas, cristãos
protegiam muçulmanos durante a reza e muçulmanos protegiam as igrejas.
A
religião está também extremamente ligada ao enorme crescimento populacional no Egipto,
pois não existe qualquer tipo de planeamento familiar.
Ainda
que timidamente, uma onda de ateísmo está a surgir desenvolvendo-se, através da
internet, grupos de discussão nos quais se questionam os fundamentos de ambas
as religiões. No entanto, ainda não é possível discutir estas questões em
sociedade ou entre famílias, sem represálias.
O Egipto do fim do século XIX ao
princípio do século XX
por Conceição Rocha
O Egito era, no
fim do século XVIII e até às invasões napoleónicas, um território otomano
constituído por várias regiões semi-autónomas, de economia rural e
culturalmente fechada.
A sua localização geográfica
torna-o muito apetecível pelas potências coloniais europeias que, desde o
início do século XIX, intrigam e corrompem os poderes políticos
segundo as suas conveniências. Daí decorre uma grande instabilidade política,
particularmente manipulada pelos ingleses, apostados na hegemonia do eixo
vertical que vai da Cidade do Cabo ao Cairo.
Mas é também no século XIX e graças a essa
colonização que o Egito se moderniza, desenvolvendo a indústria, organizando o
exército e tomando parte, aqui com os franceses, na construção do Canal de Suez
(1860 – 1870).
Em 1874, para
reduzir o enorme endividamento à Europa, vende as acções do Canal de Suez
à Inglaterra que, conjuntamente com a França, impõe uma caixa nacional de
dívida pública administrada por estes dois países. Esta medida
desencadeou o surgimento de movimentos nacionalistas, uns pacíficos, outros com
intervenções paramilitares ocasionais.
Em 1882 uma
frota anglo-francesa desembarca em Alexandria e ocupa militarmente o país.
Em 1914 o Egito
é declarado protectorado pelos ingleses. O protectorado finda em 1922, com a
independência declarada pelo partido nacionalista e a nomeação do rei Fuad como
chefe de estado. No entanto, a negociação de independência valida uma cláusula
segundo a qual a Inglaterra pode interferir na política interna, se algum dos
seus interesses for posto em causa. Fácil é compreender que os movimentos
nacionalistas permanecem activos.
Em 1924 o
comandante britânico do Egito é assassinado por elementos do partido Wafd, o
mais radical de todos, com grande popularidade entre os estudantes e que
promove as insurreições urbanas que o romance refere. Rolam cabeças no Cairo e
em Alexandria e há militares ingleses por todo o lado.
Em 1930,
pressionado pelos ingleses, o rei Fuad encerra o parlamento e reforça os
poderes da monarquia. Pouco depois morre.
Sucede-lhe em
1936 o filho – Faruk – que retoma a constituição de 1923, independentista e
parlamentarista e o partido Wafd ganha as eleições.
Em 1939, com o
início da 2ª guerra, aumenta o número de tropas no Canal de Suez. O Egito é
forçado a declarar-se neutro mas, na prática, alinha com o eixo, vendo nessa
opção a possibilidade de se ver livre dos ingleses.
Em 1942 a
Alemanha ocupa a Líbia e o Egito passa a colaborar com os aliados.
Em 1945, a
necessidade de se libertarem de ingleses e alemães faz com que os países árabes
formem a Liga Árabe.
Em 1952, um
golpe de estado vitorioso chefiado pelo general Nasser obriga Faruk a abdicar e
institui a república. Nasser governa até 1970.
Em torno do sayyed
por Maria Amélia Correia
O senhor Ahmad Abdel
Gawwad era um homem feliz .Possuía como soe dizer-se sol na
eira e chuva no nabal. Digamos que personificava o sonho do machista puro,
espécie que infelizmente ainda abunda, mas que felizmente, quero crer, vai
entrando em extinção por falta de condições, pelo menos nas sociedades
ocidentais. Para este espécime, há dois tipos de mulheres: as da família,
mulher e filhas sobretudo, que devem ser recatadas, obedientes até submissas, e
claro, desconhecedoras dos prazeres da carne, para serem castas; e as outras
folgazãs, atrevidas, conhecedoras do prazeres sensuais que podem dispensar e
receber.
Assim o sayyed tinha a mulher e filhas perfeitamente
domesticadas, não tendo hipótese de conhecerem outro mundo que não fosse o da
casa que habitavam.
Esta situação não surgiu de mão beijada ao nosso herói, teve
de conquistá-la com algum sacrifício pessoal. O primeiro casamento não lhe correu
de feição. Escolheu uma mulher bela e sedutora a quem amou sinceramente, e de
quem teve um filho, Yassin. Acontece que a dita não se dobrou à vontade
soberana do sayyed . Era detentora de uma sensualidade transbordante, tal como
o esposo, e não aguentava estar encarcerada em casa. O Sr. Ahmad tentou
corrigir estes defeitos através de uma surra valente, mas eis que a bela foge
para casa dos pais. Esperou ainda que surgisse um pedido de desculpas, estava
pronto a perdoar-lhe, se ela prometesse modificar-se, afinal era tão apetitosa!
Nada disto aconteceu, não teve outro remédio, repudiou-a.
Na vez seguinte não cometeria o mesmo erro. Casou com Amina,
uma menina que ainda não completara catorze anos, que entrou na casa grande,
onde viviam ainda os sogros, cheia de medo dos fantasmas que a aterrorizavam
durante a noite. Isto, porque à noite o sayyed habituou-a a ficar sozinha, pelo
menos até à volta da meia-noite, hora em que terminavam os seus serões. A princípio
algumas vozes advertiam-na que um homem com a beleza, força e riqueza do sayeed
não passava sem mulheres. Nasceu assim em Amina o ciúme que tanto a atormentou.
Quando ousou perguntar ao seu senhor a razão destas entradas tão tardias,
levou logo um puxão de orelhas, por causa do desplante. Habituou-se assim a não
questionar e a aceitar estes costumes como característicos da virilidade do seu
senhor que venerava, mas que sobretudo temia. A subserviência de Sitt Amina
chegou ao ponto de acordar sem despertador por volta da meia- noite para ajudar
o seu senhor a despir-se e a deitar-se. Obtinha uma pequena vantagem, que
aprendeu a saborear, pois era sobretudo a esta hora que o Sr. Ahmad, ainda sob
o efeito dos eflúvios etílicos, se permitia ter com ela algumas familiaridades
e um pouco de cumplicidade.
Em casa este déspota castrador, era venerado, infundindo terror e tremor à mulher e filhos. Fora de casa gozava de grande
consideração e respeito, mas sobretudo era amado quer no campo profissional
quer no da amizade. Assim sendo, a família desconhecia a faceta sedutora do sayyed, sempre pronto a gracejar e a
usufruir os prazeres da vida com uma vitalidade invejável. Por seu turno os
seus inúmeros conhecimentos, à excepção dos amigos íntimos, desconheciam o déspota
dentre portas.
As mulheres o álcool e os amigos, acompanhados da música que
tanto apreciava e cultivava, eram os ingredientes necessários e suficientes
para o sucesso dos seus inesquecíveis serões. E na verdade estes ingredientes
não lhe faltaram durante muitos anos, para lhe adoçarem a vida. Tomou como
amantes mulheres famosas e desejadas e soube cumulá-las de benesses e prazeres.
Era por esta razão, um amante desejado, pela sua beleza e seus inúmeros dotes.
Sabia animar um serão com o seu discurso, os gracejos, a música, tornando-se
uma boa companhia para s amigos e amantes. Era também extraordinariamente
generoso, cumulava as amantes de presentes. No sexo a sua máxima era: antes de
tudo preocupar-se com o prazer da sua amante, pois sabia que mais cedo ou mais
tarde o seu viria por arrasto. No manual deste Casanova encontrava-se outro
mandamento: jamais terminar um “affaire” sem ser de boas relações
com a amante. As pérolas do seu séquito foram duas cantoras famosas
Galila e Zubaida. Eram ambas mulheres enormes, portentosamente anafadas, com traseiros impressionantes que só
cabiam nas portas de esguelha, enfim enchiam uma cama. E que bom gosto tinham
estes homens, direi eu!!!
Sabemos da amizade e até das saudades que Galila sentia pelo
Sayyed através do discurso dela durante o casamento da filha deste, Aisha.
Tendo sido convidada para animar a festa, já sob o efeito do álcool, desatou a
falar nas belas recordações que a ligavam ao pai da noiva, gerando-se uma
situação complicada para este, até que os amigos a conseguiram calar. Fahmi
ficou a conhecer a personalidade do pai fora de portas, pois Yassim já a
conhecia e invejava.
Com Zubaida podemos dizer que foi esta a dar o primeiro
passo para conquistar o sayyed, que obviamente não se fez rogado. Com ela teve uma longa relação e tornou-se
também no final grande amigo.
Esta dupla personalidade do sayyed coincidia com a de um
homem pio com uma fé profunda em Deus. O
Sr Ahmad fazia regularmente as suas
orações e à sexta feira ia à mesquita
de El Hussein com os filhos para realizar o
culto.
Perguntarão como conciliava esta religiosidade com o lado
pecaminoso dos seus serões onde bebia álcool e frequentava meretrizes. A
resposta é o Sayyed acreditava sobretudo
num Deus clemente e misericordioso pronto a perdoar as fraquezas
humanas, e nem o sheikh Metwalli com as suas recriminações o fazia sentir uma
pontinha de complexos de culpa.
Dito isto, eis a receita para ser um homem feliz.
Por detrás da machrabiyya
por Alexandra Azevedo
Quem está por detrás
da machrabiyya?
Aparentemente, apenas
as mulheres, mas em “Entre os Dois Palácios” todas as personagens são
prisioneiras e a machrabiyya é apenas
o símbolo das grades que a todos aprisionam.
No entanto, e surpreendentemente,
a violência desta prisão não é percebida como tal por ninguém.
Amina, que acorda
todas as noites à meia-noite em ponto “sem
precisão de um despertador”(5) para receber e servir o marido quando este
regressa dos seus serões com os amigos e as amantes, encara a subalternidade da
sua condição de esposa com a naturalidade de quem sabe que nasceu para servir.
A fonte, os minaretes,
as duas ruas que se cruzam diante da casa são o único mundo exterior que os
seus olhos conseguem alcançar através dos orifícios da machrabiyya, um cenário que, aliás, nunca a entediara porque Amina
desconhecia o tédio e “pelo contrário,
aquele tornara-se uma companhia para a sua solidão e uma amizade para a
desolação dos muitos anos que vivera como se não tivesse nem companheiro nem
amigo íntimo”(6).
E, na verdade, Amina
não tinha nem companheiro nem amigo íntimo. Tinha dono. Um dono feroz que ela
venerava e em cuja tirania apenas via um sinal mais de uma virilidade que devia
apreciar. A sua condição de mulher e de esposa em pouco ou nada excedia a de um
animal doméstico e era assim que Amina se comportava: fiel ao seu dono, ficava
feliz quando este regressava a casa ainda que tivesse de interromper o sono delicioso (8) e aninhava-se no chão aos seus pés
por não se considerar digna de se sentar ao seu lado_ Dispôs frente ao divã um colchão que tirara de sob a cama e nele se
acomodou, pois que, por razões de decoro, não se achava no direito de se sentar
ao seu lado. (14). Do mesmo modo, tal como o cão que sempre viveu preso
dentro de casa é atropelado na primeira
saída à rua, também Amina sofre um acidente quando, por ocasião de uma ausência
do marido, cedendo à pressão dos filhos para dar um passeio, é abalroada por um carro.
Esta condição da
mulher enquanto animal doméstico é clara e cruamente exposta por Yassin, o
enteado de Amina quando este reflecte sobre o seu próprio casamento: “As mulheres são animais domésticos e como
tal devem ser tratadas! Sim, não permitimos aos animais domésticos que invadam
a nossa vida privada; devem aguardar em casa que tenhamos disponibilidade para
afagá-los!”(346)
Mas o dono de Amina
nunca tinha disponibilidade para afagá-la. Pelo contrário, quando, por acaso,
um pensamento alegre lhe distendia o rosto, imediatamente recuperava o ar carrancudo
e feroz ao encarar Amina. Ahmad Abdel Gawwad fazia questão de demonstrar a sua
incontestada autoridade a cada momento e considerava que esta seria posta em
causa se, por acaso, condescendesse em tratar a mulher com dignidade. A
clausura das mulheres da casa servia, aliás, para demonstrar essa mesma autoridade que, do
seu ponto de vista, ficaria ferida de morte se algum olhar masculino pousasse
em alguma delas.
Esta atitude que nos
parece hoje tão longínqua dos nossos padrões de comportamento, é, na
verdade, uma realidade que na nossa
sociedade perdurou até há relativamente pouco tempo. Eu própria testemunhei um
caso semelhante na minha família a que apenas faltou o lado violento do
tratamento que Gawwad infligia a Amina. O tio-avô de quem herdei o nome, homem
bem parecido e bem-falante não permitia que a mulher saísse sem ser acompanhada
por ele nem que assomasse a alguma das janelas que davam para a rua. Durante
décadas, Linda, de nome e de figura, viveu entre as paredes da casa e as rosas
do jardim a que, ainda assim, também não
podia ir em “dia de Sr. Bessa”, o terrível jardineiro que nós crianças
odiávamos porque estávamos igualmente proibidas de andar de bicicleta ou de
jogar a macaca “lá fora” enquanto o Sr. Bessa não fosse embora. Linda, embalada por doces palavras, presentes e carinhos via
nestas imposições um sinal inequívoco do amor e do legítimo ciúme do marido e
sorria feliz quando alguém sugeria, ainda que por meias palavras, que tal
conduta não fosse talvez a mais justa. A invisibilidade da violência para as
próprias vítimas é, sem dúvida, a melhor
garantia da sua continuação. E assim foi, de facto, até ao nefasto dia em que
Linda descobriu, acidentalmente, que o adorado marido a quem, submissa, devotara a vida toda, tinha afinal uma
segunda família, há longos anos. E a vingança foi terrível: sem nunca abordar o
assunto nem alterar o quotidiano, Linda fechou o rosto para sempre e nunca mais Alexandre viu o doce sorriso de
Linda, nunca mais Alexandre viu o olhar devotado de Linda, nunca mais Alexandre
ouviu o riso de cristal com que Linda sublinhava, enlevada, as graças que ele
contava. E Alexandre definhou.
Nem Alexandre nem Ahmad eram homens maus. Apenas viviam o seu
tempo, um tempo em que as mulheres e as crianças não eram sujeitos de direitos.
Um tempo a que ninguém quer voltar.
Ninguém?
30 de Julho de 2018
A Hora do Café
por Maria José Marques
Meia noite marca o início do romance.
O início ou o fim, como se queira, de um ciclo diário das obrigações de Amina,
esposa dócil, amorosa e obediente. Esta é a hora de interromper o seu sono para
desempenhar tarefas que “deviam ter terminado com o fim do dia “ e no entanto
fazem parte da sua vida de dedicação à felicidade do marido, servindo-o. No
regresso das suas diversões fora de casa, Ahmad Abd al-Jawad “(…) was companiable and talkative. He would
tell her his innermost thoughts, thus making her feel, if only for the moment,
that she was not just his servant but also a partner in his life “. A hora em
que Amina se sente esposa.
Com o nascer do dia as tarefas
domésticas vão-se desenvolvendo, as personagens vão sendo apresentadas no
conjunto familiar. As madrugadoras Umm Hanafi , a criada, e Amina a senhora da
casa preparam o pequeno almoço. Os filhos acordam ou são acordados para o novo
dia e vão sendo revelados ao leitor : Yasin, o único filho do primeiro
casamento de Ahmad, Khadija e Aisha as filhas, Fahmy o filho estudante e Kamal
o benjamim.”
“ Breakfast is ready, gentlemen”, a
primazia do masculino revelada num chamamento tão curto. Na sala de jantar
principal, situada no andar superior, junto do quarto dos pais, primeiro hão-de
comer os homens servidos pela mãe depois virão as mulheres quando eles
estiverem saciados e tiverem saído. Esta é uma hora tensa. O medo, o terror do
pai que atravessa todo o romance está presente logo à hora do pequeno almoço. “
Breakfast was the only time of day they were together with their father”
Sentar-se com ele à mesa, ainda que por pouco tempo, é penoso, a disciplina é
rígida e as reprimendas e críticas
severas impedem os filhos mesmo de apreciarem a comida na presença daquele pai
que exige de todos em casa uma obediência cega .Hora de os homens saírem para o
trabalho, Ahmad e Yasin, Fahmy e Kamal para estudar. Hora de as mulheres
comerem e de cuidarem de manter ou alcançar aquela silhueta gorducha que parece
ser do agrado geral. É uma hora de intimidade entre elas, sem a presença severa
do pai, antes de se dedicarem às tarefas domésticas que Amina distribui.
Ahmad volta habitualmente a casa à hora
de almoço para se retemperar dos excessos cometidos nas noitadas de
divertimento. Depois da refeição, uma sesta reparadora e as orações a que se
entrega com zelo. Ahmad é um cidadão exemplar generoso com os seus amigos que
exige da família o estrito cumprimento dos preceitos religiosos e observância
dos costumes sociais, para ele uma e a mesma coisa na preservação da sua honra,
enquanto ele próprio se diverte infringindo essas regras numa dualidade de
critérios sem remorsos.
A rotina do convívio familiar culmina
quando “ a família se reúne pouco antes do pôr do sol para o que eles chamam a hora do café “ sem a presença
atemorizadora e opressiva do pai. Tudo o que é relevante na vida familiar se
manifesta nessa hora de partilha. O carácter mais informal começa na situação
da sala rodeada pelos quartos dos filhos transmite uma sensação de aconchego e
intimidade. A mãe sentada ao centro tem ao seu alcance a comida e as bebidas e
na sua frente sentam-se os filhos, tanto os que podem tomar café, como as
filhas e Kamal que estão proibidos segundo o costume e a tradição. A asa
protectora da afável Amina propicia uma atmosfera descontraída em que até o
modo como se recostam nas almofadas denota a liberdade que sentem para
conversarem à vontade. Embora as rivalidades e picardias entre irmãos se
manifestem esta é a hora de partilharem os seus sonhos, sentimentos e
aspirações. Mesmo depois de Yasin e Fahmy se retirarem a mulheres continuam em
conversas triviais e o pequeno Kamal goza da sua companhia e das histórias que
elas contam e não perde a oportunidade de exibir os conhecimentos que adquiriu
na escola de que elas foram privadas por terem sido retiradas da esfera pública
e mantidas em casa em nome da preservação da honra da família.
Hora do café,
é o barómetro das relações familiares. É hora de Yasin evitar o convívio quando
espera reprovação depois de ser surpreendido a atacar a criada. Hora de
anunciar à família o seu casamento com Zaynab poucos dias depois. Hora para
Khadija partilhar as imagens que guardou do casamento da irmã que tanto tinha
invejado sem querer que alguém percebesse.
Hora do café
é uma tradição que não faz sentido sem o elemento aglutinador, Amina, e por
isso esteve naturalmente suspensa durante o tempo em que ela esteve afastada de
casa, expulsa pelo marido inclemente, após confessar ter saído à rua, grande
ofensa à honra dele. Os casamentos de Aisha e de Khadija afastam-nas do
convívio regular com a família mas Zaynab, a esposa de Yasin, acrescenta um
novo rosto à hora do café e em breve aí desabafa as suas mágoas de esposa
negligenciada o que exaspera Amina, a submissa, e não tarda a afastar-se desse
convívio familiar já que não há quem a consiga demover de abandonar Yasin e
pedir o divórcio depois de ele a trair com própria criada dela.
A conversa da hora do café foi desde sempre a ligação do mundo fechado da casa
com os acontecimentos exteriores trazidos pelos relatos e comentários dos filhos.
A tutela dos ingleses, o desejo de independência dos egípcios, e exílio dos
seus líderes. Mas a proximidade física das
tropas ocupantes junto à casa da família, visível até das janelas, vai tornando
inevitável um contacto que ninguém desejaria.
À hora
do café, na noite da libertação de Sa’d Pasha a alegria é evidente nas
conversas familiares apenas ensombrada pela afirmação de Fahmy “ uma mãe
realmente patriota rejubilaria com o martírio do filho “ Amina, incrédula diz” Onde? (…) nem aqui, nem nas profundezas
onde residem os demónios” Fahmy confessa ter participado em manifestações mas
assegura que isso acabou, não há razão para alarme. Na realidade Fahmy
juntara-se aos que lutaram pela liberdade e vai festejar com a multidão
jubilosa. Uma bala traiçoeira atinge-o. Ahmad regressa a casa depois de receber
a terrível notícia e então pensa em Amina” Ela está agora na hora do
café com Yasin e Kamal sem saber o que reteve Fahmy. Que cruel ! “
Os companheiros de luta querem fazer a
Fahmy um funeral de mártir. Por crueldade ou compaixão Ahmad não permitirá que
Amina veja o filho morto no hospital.
(Suspeito que a hora do café não voltaria a ser o que era.)
Maria
José Marques
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