Clube de Leitura de 9 de abril de 2018
SAMARCANDA
Amin Maalouf
Verba volant, scripta manent
Clube de Leitura de 9 de abril de 2018
SAMARCANDA
Amin Maalouf
Temas de Reflexão
- · As autoridades civis e religiosas da antiga Pérsia
- · Omar Khayyam: a poesia e o poeta
- · Samarcanda e Rota da Seda
- · A história da Pérsia/Irão do século XX
- · Omar Khayyam vs Ricardo Reis
- · Irão, impressões pessoais
- · Samarcanda- a estrutura do romance
- · O livre génio da Pérsia espartilhado no dogmatismo muçulmano
- · “…se o Oriente não conseguir despertar, em breve o Ocidente não conseguirá dormir” (pág. 258)
- · O mistério do manuscrito de Samarcanda
«Se o
Oriente não conseguir despertar, em breve o Ocidente não conseguirá dormir»
por Maria João Leite de Castro
por Maria João Leite de Castro
A frase é de Howard C.
Baskerville (séc. XIX/XX), na altura ainda estudante na Universidade de
Princeton, Nova Jersey, mas
já desejoso de partir para a Pérsia e de contribuir para esse despertar do
Oriente.
Pouco tempo depois, será
colocado em Tabriz como mestre escola e desenvolverá, não apenas a sua
actividade como professor de inglês e ciências, mas sobretudo como activista e
ideólogo de uma nova sociedade, de uma nova Pérsia, liberta da tirania do Xá e
dos chefes religiosos. É em nome dessa ideia e da convicção de que é necessário
resistir à tragédia da alma persa e renová-la, que Howard se irá juntar a Fazel
no cerco a Tabriz e acabar por morrer.
O despertar do Oriente
consistirá sobretudo no despertar da razão e na sua libertação face à religião,
ao obscurantismo, ao fanatismo, e à tirania que restringem a liberdade
individual.
Segundo Kant, não se pode
conhecer outra forma de fé que não seja a fé racional, a fé prática, que
reconhece apenas a possibilidade do
supra sensível unicamente enquanto tal possibilidade
reforça a acção moral do homem. Transformar essa possibilidade numa
afirmação dogmática significa tornar impossível ao homem, não só a vida teórica
e moral, mas a própria religião que se converte em superstição.
Na narrativa, as vozes da
libertação são várias: Omar Khayyam, no sec.XI, e muitos outros, já nos sécs.
XIX/XX, tais como Djamaleddine («…nas
terras do Islão, não há um único recanto onde eu possa viver ao abrigo da
tirania.»),Fazel,
Mirza Reza («nos seus olhos podia ler-se toda a aflição
do Oriente»), os filhos de Adão, Baskerville, Lesage e Chirine que escreve,
numa das suas cartas: «A Pérsia está
doente. Tem vários médicos à sua cabeceira, modernos, tradicionais, cada qual
propõe os seus remédios, o futuro pertencerá àquele que obtiver a cura. Se esta
revolução trinfar, os mulás deverão transformar-se em democratas; se ela
falhar, os democratas deverão transformar-se em mulás.».
A centralização islâmica da
vida política, com a consequente não separação do poder político e religioso é
uma das causas (e simultaneamente consequência) da não libertação da razão. No
livro, as vozes resistentes à revolução questionam: «Por que motivo precisamos de uma Constituição, se temos o Alcorão?»
Da mesma forma que, na
narrativa, a democracia nascente acaba por sucumbir, também as diferentes
tentativas de modernizar o islamismo foram estranguladas pelas lutas das duas
super potências, Estados Unidos e União Soviética, durante a Guerra Fria. Para
destruir o bloco comunista, os Estados Unidos não hesitaram em se aliar ao que
havia de mais ultra conservador e anti iluminista, mais especificamente ao
mundo islâmico.
Assim, ao perseguir a
destruição do socialismo, as potências capitalistas acabaram por alimentar o
terrorismo que neste início de século busca o fim do Ocidente.
Portanto, esta frase é
premonitória e nos dias de hoje verificamos como as convulsões que se vivem no
Oriente afectam a vida do Ocidente, com constantes ataques terroristas e a
chegada de vagas de refugiados que diariamente procuram a segurança no Velho
Continente que não consegue (ou não quer) dar resposta a esses movimentos
migratórios.
Mas, se por um lado, o
Ocidente sofre também com essas convulsões, por outro lado é o próprio
Ocidente, com os seus interesses político-economicistas (fundamentalmente
petrolíferos, geoestratégicos, venda de armas…) que continua a alimentar essa
instabilidade e a fomentar o fundamentalismo islâmico. Este consolidou-se como
ideologia dominante nas últimas décadas do séc. XX, principalmente após a
revolução Iraniana de 1979, a ascensão dos Talibãs ao poder no Afeganistão e
ainda a proclamação do Estado de Israel na Palestina em 1949.
Samarcanda
Amin Maalouf
por Maria José Marques
“Tinha
curiosidade de ver o que restava da cidade onde desabrochara a juventude de
Khayyam.” (p.313) Eis o que leva Benjamin Omar Lesage a Samarcanda. Dos tempos
antigos só encontra ruinas. “Em redor do Reghistan erguem-se três monumentos,
três gigantescos conjuntos, torres, cúpulas, pórticos, altos muros todos
ornados de mosaicos minuciosos, de arabescos com reflexos de ouro, de ametista,
de turquesa. E de laboriosas escritas. (…) corroídas pelo tempo, pelo vento,
por séculos de indiferença.” “Sobre a
época que o apaixona não recolherá senão lendas, histórias de djins e de divs “
Numa
época em que o orientalismo era moda, Théophile Gautier saudava nas quadras de
Omar Kéyam, divulgadas em traduções de um reduzido número de quadras “esta
absoluta liberdade de espírito que os mais ousados pensadores modernos mal
igualam.” Ernest Renan, escritor, filósofo, teólogo, historiador, reforçava a
ideia que “Khayyam talvez seja o homem
mais curioso de estudar para compreender aquilo em que pode transformar-se o
livre génio da Pérsia no espartilho do dogmatismo muçulmano”
Fadado
com o « middle name » Omar em
homenagem ao poeta que uniu seus pais, Benjamin O. Lesage procura com afinco o Manuscrito de Samarcanda , o original, o
verdadeiro que se perdera no tumulto dos séculos, na miragem de nele descobrir
o poeta. E encontra ! Tal como nas histórias das mil e uma noites, passadas
muitas aventuras, superadas enormes dificuldades graças a nobres e úteis
ligações de amizade além das auspiciosas coincidências do destino, compensadas
muitas das suas virtudes, Benjamin encontra o Manuscrito na posse da bela, rica e destemida princesa Chirine disposta
a partilhar não só o precioso livro mas também a sua vida.
Shirin
, filme realizado por Abbas Kiorostami -2008
Exibe 114 actrizes espectadoras mudas e
comovidas do poema persa Khosrow e Shirin
lido / dito em off .
Verão
de 1072, o incomparável Omar, filho de Ibraim Khayyam de Nichapur, admirador e estudioso
de Avicena, é levado à presença do cádi
de Samarcanda depois de ter um mau encontro com rufias que maltratam um velho e
o acusam de ser alquimista. O juiz Abu Taher reconhece Omar pela sua ciência mas
não deixa de pôr à prova o seu zelo religioso e de lhe dar alguns conselhos
para que domine os seus impulsos . É das mãos desse juiz que Omar recebe o
livro “duzentas e cinquenta e seis páginas virgens, ainda sem poemas, nem
pinturas, nem comentários à margem, nem iluminuras.” (p.25.Os tempos são de “ segredo
e medo (…) Sempre que um verso tomar forma no teu espírito, se abeirar dos teus
lábios, tentar sair, recalca-o sem rodeios, escreve-o antes nestas folhas, que
ficarão em segredo.”(p.25) Aconselhou o cádi.
Dos poderosos Omar recusa honrarias
e riquezas como recompensa do seu talento, basta-lhe (p.88)” o suficiente para
beber e comer, alojar-me e vestir-me.”
Pede antes um observatório e instrumentos para medir a duração exacta do
ano solar. Durante sete anos Omar trabalha no observatório de Ispaão, institui
o novo calendário em 1079 e deleita-se com um bom vinho na companhia de Djahne
: “ a felicidade a emboscar-se na monotonia”. O vizir considera-o “ discreto,
sensato, justo equitativo” ,o perfil ideal para ser o chefe dos espiões. Khayyan
escusa-se do cargo e sugere em boa fé o nome de Hassan Sabbah. Abriu a porta ao
terror pela vigilância, controlo e intolerância religiosa da Seita dos
Assassinos. Quando os melhores, os puros, não estão disponíveis para servir ...
A deleitosa Pérsia dos fragrantes pomares e
jardins, dos tapetes, sedas e brocados dos palácios imponentes, do Chiraz
inebriante, do vento que acaricia, do alaúde tangido com amor e arte
perder-se-á nos tumultos insensatos dos ambiciosos, as bibliotecas, ai as
bibliotecas, de tão ameaçadoras e perigosas são imoladas pelo fogo. Restam os
livros salvos por milagre, as ruínas, as lendas, os mitos.
Alguns
robai de Khayyam surgem onde menos se
espera: Abbas Kiarostami, realizador iraniano, usa poesia persa nos diálogos, títulos
e temas dos seus filmes. No filme “ The
wind will carry us” o realizador e o médico atravessam de mota uma seara e
em resposta ao comentário de que o outro mundo é melhor que este recitam um robai de Omar Khayyam
They promise of
houries in heaven
But I would say
wine is better
Take the present
to the promises
A
drum sounds melodious from distance.
“
O Sabor da Cereja ” de Kiarostami é
uma meditação sobre a condição humana a propósito da história de um homem de
meia idade que deseja por termo à vida.
“Gabbeh”
do realizador Mohsen Makhmalbaf é
uma deliciosa fábula contada por um tapete persa que um casal de velhotes vai
lavar num riacho.
“Kandahar”
filme dirigido por Mohsen Makhmalbaf, conta a história de uma jornalista
refugiada no Canada que procura irmã que ficou no Afeganistão durante a guerra
civil Taliban .
“ O Quadro Negro” filme
dirigido por Samira Makhmalbaf, conta as dificuldades que enfrentam professores
itinerantes que carregam um quadro negro procurando alunos durante a guerra
Irão- Iraque.
“Separação” de
Asghar Farhadi.Um casal enfrenta um processo de separação no Irão actual. O
marido não quer deixar Teerão, a mulher quer procurar no estrangeiro uma vida
melhor para si e para a sua filha pequena.
Nestes
filmes está a minha visão do Irão.
Clube de leitura, 9 de Abril de 2018
Maria
José Marques
A história da Pérsia/Irão do século XX
por Jorge Paradinha
O Irão, terra dos arianos, Pérsia
para os ocidentais, já era conhecido cinco séculos antes de Cristo. Até ao
século XX fez história com Ciro, Dario - dono do maior e bem organizado império
persa, destruido mais tarde por Alexandre o Grande, rei da Macedónia - com os
partos, romanos, árabes, turcos, mongóis e também com os portugueses, com a
conquista do reino de Ormuz por Afonso de Albuquerque. No século XVI os
safávidas, fundadores de novo Império, forjaram o Irão moderno seguidor do
xiismo, apoiantes de Ali, quarto califa ou “santo”para os xiitas, o verdadeiro
sucessor do profeta Maomé, tornando-o o maior país xiita do mundo, posição que
ainda ocupa.
No século XX começou a
jorrar o petróleo nas areias do deserto, explorado por companhias inglesas,
anglo-persas e mais tarde também por americanas, ficando a economia do Irão
progressivamente dependente da Europa. Após a Primeira Guerra Mundial passa por
um período de grande desenvolvimento, com a dinastia Pahlevi, dos Xás, no campo
da saúde, educação e infraestruturas, que levou ao aparecimento de uma
sociedade industrializada, aberta ao ocidente, com uma classe média
profissional e operariado industrial. Os reinados fortemente ditatoriais dos
Xás e a exploração económica pela Inglaterra e EUA, entre outros, conduziram o
Irão à revolução de 1979, liderada pelo aiatolá Khomeni, que instalou no país a
república islâmica, regime onde a hierarquia religiosa se confunde com o poder
político. A partir daqui as convulsões internas e externas sucedem~se em
catadupa, com a sangrenta guerra com o Iraque, rompimentos políticos e
económicos com o ocidente, com boicotes sucessivos por parte deste e sanções da
ONU, muito devido ao programa nuclear que ameaça o seu maior inimigo, Israel.
No fundo, o Irão tenta reconquistar o estatuto de potência regional, numa
região de maioria árabe e sunita. Na presidência de Obama houve alguma abertura
ao ocidente, que está lentamente a arrefecer com a administração Trump.
Os iranianos são um povo
culto e hospitaleiro, sujeito a rigorosos códigos sociais. O cabelo e o colo
femininos voltaram a ser fonte de pecado, e as jovens preferem ficar solteiras
e seguir uma carreira profissional, em vez de casarem e ter de pedir
autorização ao marido para a exercer.
Clube de Leitura, 9 de Abril de 2018 –
Samarcanda, de Amin Malouf
Jorge Paradinha
Omar Khayyam e Ricardo Reis
por António Nabais
Em Samarcanda, Omar Khayyam resume a sua
obra da seguinte maneira: “São apenas robaiayt sobre o vinho,
sobre a beleza da vida e a sua vacuidade.” (p. 61) Esta definição provoca em
Djahane “um grito de incredulidade, quase de desprezo.”. Nessa mesma página, o
narrador explica a essência da poesia produzida pelo poeta persa: “Que um
sábio… Djahane está intrigada.” Omar declara, ainda, que escreve robaiayt porque,
ao contrário da amada, não tem “as ambições de um poeta de corte.”
Omar Khayyam é poeta e cientista, actividades que
estão ligadas a um mesmo nome, ao contrário do que acontece, por exemplo, com
António Gedeão ou com Miguel Torga. Com o uso do pseudónimo, dir-se-ia que
Rómulo de Carvalho e Adolfo Rocha não quiseram misturar a literatura e a vida
profissional. Em Kahyyam, tudo se mistura, mas a verdade é que parece ter
necessidade de esconder a poesia que escreve, talvez devido a um certo carácter
plebeu, por um lado, ou ao facto de os seus textos poderem ser considerados
dissolutos e eventualmente heréticos (O que vale mais? Meditar numa taverna,
/ou prosternado na mesquita implorar o Céu?/ Não sei se temos um Senhor,/ nem
que destino me reservou.)
Kahyyam parece fugir para baixo, com uma
poesia em que o vinho e o corpo da amada se misturam, juntando a isso uma
obsessão por aproveitar cada momento, o que, em termos genéricos, o coloca do
lado do carpe diem Horácio.
Ricardo Reis é um elitista, a sua poesia vai em
direcção ao alto, como que fugindo da vida para tornar mais fácil a morte do
Outro. Kahyyam não é imune à perda, mas parece mais interessado em aproveitar o
momento como uma fuga em direcção ao prazer do vinho e do sexo.
A poesia de Ricardo Reis é aristocrática, de um
paganismo artificial. Reis procura viver o momento, é certo, mas em fuga,
evitando os sentimentos extremos. Kahyyam não quer desenlaçar as mãos: “Que
pobre o coração que não sabe amar/e não conhece o delírio da paixão./Se não
amas, que sol pode te aquecer,/ou que lua te consolar?”
Na carta que Pessoa escreveu a Casais Monteiro acerca
do fenómeno heteronímico, explicou Reis: “pus em Ricardo Reis toda a minha
disciplina mental, vestida da música que lhe é própria”, “É um latinista por
educação alheia, e um semi-helenista por educação própria.” “Ricardo Reis,
depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode.”
“Reis [escreve] melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado.”
Num
encontro imaginário entre Kahyyam e Reis, imagino que o primeiro iria
impacientar-se com a abulia do segundo: “Você, Reis, quer ficar na margem do
rio, cansado de dar a mão a Lídia; eu prefiro arrastar Djahane para a corrente,
porque só vale a pena viver no perigo de afogamento.”
Samarcanda- a estrutura do romance
Uma leitura de SAMARCANDA de Amin Maalouf
por Margarida Mouta
Neste
romance, o autor põe em prática a técnica da narrativa em abismo, apresentando-nos,
à semelhança do que acontece nas “Mil e uma noites”, várias histórias dentro de
uma história, em que se misturam a realidade com a ficção, a transcendência das
culturas e das religiões e a figura de “viajante ambulante”. Temos, por um lado,
o naufrágio do “Titanic” numa data bem real, a noite de 14 para 15 de abril de
1912 e, por outro lado, o manuscrito de Omar Khayyam, exemplar único dos Robaïyat, as célebres quadras que o
poeta e sábio persa escreveu há quase mil anos e que será a mais prestigiada
vítima do naufrágio. Dessa catástrofe, em que perderam a vida mais de 1500
pessoas, o narrador pouco falará. Seis anos depois (o que nos permite situar a
narrativa em 1918), o que o obsidia é ainda esse ser de “carne e de tinta do qual foi, por momentos, indigno depositário”.
“No fundo do Atlântico há um livro. É a sua
história que vou contar.” (p.9). Desde este início, anuncia-se o Ocidente
(Titanic) entrelaçado com o Oriente (o manuscrito de Khayyam). É perseguindo o
manuscrito que o autor nos faz percorrer diferentes tempos e diferentes
espaços, expondo o nosso olhar tanto à sabedoria como à loucura dos homens.
Na primeira
parte, Omar Khayyam, do alto da sua sabedoria irá, ao sabor do tempo e da sua
existência, transformar um livro virgem que lhe havia sido oferecido pelo seu
protetor, o juiz Abu Taher, num livro precioso. Na segunda parte, o narrador
seguirá a pista de Omar e, numa espécie de caça ao tesouro, vai descobrir a
Ásia, uma cultura, costumes, formas de sentir e sensibilidades a que nunca
antes fora exposto.
Os nomes de
figuras célebres tanto ocidentais como orientais cruzam-se na obra, num
itinerário que engloba duas épocas espaçadas – o século XI e o século XX num
vai -vem entre a era de Khayyam e a era do Titanic, apresentadas sob a forma de
quatro livros agrupados dois a dois e que contêm o mesmo número de capítulos
(24) num total de 48.
O narrador,
Benjamim O. Lesage, que está entre os passageiros do Titanic, tinha acabado de
se casar com Chirine, uma persa. Ambos embarcam, levando na bagagem o precioso
pergaminho. “ – Os Robaïyat no
Titanic! A flor do Oriente transportada pelo florão do Ocidente!” E o fim do
romance retoma o seu começo: “No fundo do
Atlântico há um livro. É a sua história que vou contar.”
E esta
história é simultaneamente a história de um livro ( ou de dois livros
encaixados um no outro, a história de um homem (ou de dois homens unidos pela
escrita) e a história de um lugar (ou de vários lugares do oriente)
O livro, recolha dos Robaïyat de Omar Khaynam começa a ser
escrito em 1072 em Samarcanda. Vai perder-se por três vezes antes de reaparecer
para voltar a desaparecer mais uma vez. Eis algumas datas segundo um quadro que
tomei de empréstimo a um estudo de uma senhora chamado Fatiha Boulafrad da
Universidade de Medea na Argélia e que consultei na net.
1072 – Começa a ser escrito (Samarcanda)
Entre 1116 e 1131 - Desaparece (Merv);
Entre 1116 e 1131 – Aparece (Alamut );
14 de março de 1257 - Desaparece (Alamut)
1891- Aparece (Índia)
1891 - Desaparece (Teerão)
1896- Aparece – (Teerão);
15 de abril de 1912 – Desaparece (Oceano Atlântico)
Samarcanda,
Merv, Índia, Teerão, finalmente o Atlântico. A odisseia dos Robaïyat leva-nos a mudar de espaço e de
tempo e constitui uma espécie de ciclo de vida em que se inscrevem ao mesmo
tempo as marcas da permanência e da progressão, um ciclo que não é alheio à
ideia do eterno recomeço, pois o narrador está sempre à espera de uma ressurreição.
A história de um livro será então pretexto para o livro.
SAMARCANDA – a história
de um homem ou de dois homens?
O contexto
histórico e político é verdadeiro, a maior parte das personagens tiveram uma
existência própria. Como exceção, surgem meia dúzia de figuras, entre as quais
se destacam as figuras femininas, Djahane e Chirine (necessárias ao desenho da
intriga amorosas) e a figura masculina de Benjamim O. Lesage, narrador
fictício, mas credível, porquanto se sabe, de fonte segura, que um exemplar dos
Robaïyat viajava mesmo a bordo do
transatlântico
PERSONAGENS DE FICÇÃO
|
PERSONAGENS HISTÓRICAS
|
|
Livro
Primeiro
Poetas
e Amantes
Cap.
1 a 14
e Livro Segundo
O
Paraíso dos Assassinos
Cap.
15 a 24
|
O estudante da cicatriz, o Juiz Abu
Taher, Djahane, Vartan,
|
Khayyam, Tughrul Beg, Tchagri Beg, Alp
Arslan, Hassan Sabbah, Nasr Khan, Nizamel-Molk, Malikshah, Khatoun, Ahmed
Khan, Gengis Khan, Hulagu Tamerlan.
|
Livro
Terceiro
O
Fim do milénio
Cap.
25 a 35
e Livro
Quarto
Um
poeta ao mar
Cap.
36 a 48
|
O narrador, Fazel, Chirine,
Baskerville, o pastor, Panoff.
|
Renan, FitzGerald, Manet, Rochefort, Mirza Reza
Djamaleddine, o sultão Abdel-Hamid, Nassereddine Shah, Morgan Shuster, Knox
d’Arcy, o Xá de 11 anos, V. Hugo, Churchill, G. Clemenceau, Lorde Salisbury,
W. Blunt, T. Gautier, MacKinely, Nicolau II, Leopoldo II, W. Taft, Boulanger,
Naus.
|
Das
histórias que se interligam dentro da história, distinguem-se, sem dúvida a
história de Omar Khayyam e de Benjamin Lesage, no fundo as únicas que interessam
verdadeiramente, tendo em conta as relações que ambos mantêm com o manuscrito.
Benjamim narra a história do livro, Omar é o seu autor. Unidos pelo mesmo nome
(Omar), ambos vão percorrer a Pérsia para não serem assassinados. Uma vez a
salvo, ambos perdem o melhor amigo e a mulher que amam. Ambos escrevem. E entre
o que escreve e o que narra cria-se uma simbiose que dará origem ao romance.
SAMARCANDA
– a história de um lugar / vários lugares
O
romance não se limita à narrativa de uma vida ou de várias vidas. É ele próprio
um lugar em que se cruzam muitos lugares. É a história da Pérsia reconstituída
a partir das histórias das personagens e do manuscrito. A história dos Robaiyat constitui, na realidade, o fio
condutor, o elo que liga as histórias umas às outras e a busca do manuscrito
não é mais do que pretexto para Amin Maloouf, por interposta pessoa, nos contar
a história do Oriente.
Samarcanda
é pois uma história cheia de histórias que nos conta a História.