domingo, 9 de setembro de 2018

Entre Dois Palácios


                                                NAGUIB MAHFOUZ






                Prémio Nobel da Literatura 1988

Romancista egípcio, Naguib Mahfouz nasceu a 11 de Dezembro de 1911 em Gamaliya, nas cercanias do Cairo. Filho de um funcionário público, teve acesso a uma educação esmerada. 
Após ter concluído os seus estudos secundários, ingressou na Universidade do Cairo, de onde obteve o seu diploma em 1934. Enquanto prosseguia um curso de pós-graduação, Mahfouz tomou a decisão de se tornar escritor a tempo inteiro. 
Começou por colaborar para a imprensa com artigos e contos, reunindo estes últimos num volume aparecido em 1938. No ano seguinte conseguiu alcançar uma certa estabilidade ao seguir as pisadas do pai, tornando-se funcionário público no Ministério dos Assuntos Islâmicos. 
Também nesse ano de 1939 publicou o seu primeiro romance, Abath al-Aqdar, obra em que, com volumes como Radubis (1943) e Kifah Tibah(1944), o autor procura fazer abranger a totalidade da história do Egipto. Em meados da década de 50, surgiu com Al-Thulatiya (1956-57, A Trilogia do Cairo), obra em que descreve as andanças da família de Al-Sayyid Amad Abd Al-Jawad durante três gerações, desde a Primeira Grande Guerra até ao tempo presente. 
A Revolução do Egipto, ocorrida em 1952, depôs o monarca Farouk I e instaurou um regime liderado por Gamal Abdel Nasser. Desagradado com a situação, o escritor votou-se ao silêncio durante alguns anos. Reapareceu em 1959 com trabalhos de índole prolífica e variada. 
Alterando o seu discurso e recorrendo à alegoria e ao simbolismo para veicular as suas opiniões políticas, publicou Al-Liss Wa-Al-Kilab (1961, O Ladrão e os Cães), romance que conta a história de um gatuno de convicções marxistas e que, após ter sido aprisionado e eventualmente libertado, procura a vingança e encontra a morte.
Após ter exercido as funções de diretor do Gabinete de Censura egípcio, Mahfouz retomou o mesmo cargo junto da Fundação para o Desenvolvimento do Cinema, entre os anos de 1954 e 1969. A partir de então tornou-se consultor cinematográfico para o Ministério da Cultura do seu país, acabando por se reformar em 1972. 
Entretanto, em 1965 surgiu Al-Shahhadh (O Pedinte) e, dois anos depois, Miramar (1967), romance que descreve a vida de uma rapariga através de quatro narradores, cada um deles representando uma corrente de pensamento político diferente. 
Galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1988, Naguib Mahfouz caiu no desagrado dos fundamentalistas islâmicos que, em 1994, enviaram dois assassinos ao seu encontro. Apunhalaram o escritor no pescoço com uma faca de cozinha, mas falharam o atentado e, capturados, foram ambos condenados à morte no ano seguinte. 
Faleceu no Cairo a 30 de Agosto de 2006, com 94 anos.

                                                                                                                                                          (do site da Wook) 


                                                        Entre os Dois Palácios
                                                       (1º volume de A Trilogia do Cairo)


            
Verba volant, scripta manent

Temas de reflexão

O Egipto no princípio do século XX
·       Personagens femininas: a importância do olhar 
·       Por detrás da machrabiyya
·       Sayyed Ahmad Abdel Gawwad, o prisioneiro
·       A “sessão do café”
·       Yassin e a mãe
·       O mundo de Kamal
·       O espaço da religião na vida colectiva e na vida pessoal
·       Famhi, o cordeiro inocente



Clube de leitura
30 de Julho de 2018      

O espaço da religião na vida colectiva e individual

Maria João Leite de Castro

Na narrativa, a forma como cada personagem vivencia a religião apresenta diferenças enormes. O expoente máximo dessa vivência é, naturalmente, Amina, a virtuosa e submissa esposa. São várias as passagens do livro que ilustram esta convicção religiosa que, aliadas à sua natureza generosa, a convertem num modelo para toda a família.
Amina amava as galinhas e os pombos, como todas as criaturas de Allah em geral, e mantinha com elas amenas conversas, certa de que a compreendiam e acolhiam com emoção.
A sua imaginação concedia, aos animais e por vezes até aos objectos inanimados, a faculdade de sentir e entender. Estava convencida de que estas criaturas celebravam a glória de Deus e participavam no mundo espiritual por razões diversas ».(…)( págs 40/41).
(…) Antes de deixar o terraço, levantou as mãos para o céu e rezou a Deus, dizendo: «Meu Deus, suplico-te, vela sobre o meu senhor, os meus filhos, a minha mãe, sobre Yassin e todas as pessoas, Muçulmanos ou Cristãos e mesmo os Ingleses, mas, ó Deus, expulsa-os da nossa terra para agradar a Fahmi, que não gosta deles!»(…) (pág. 42)
Para Amina, toda a vida se desenvolve em função da religião - a sua conduta, os seus valores, a educação que procura dar aos seus filhos. A única vez que ousou sair de casa, contrariando o seu sayyed, foi para responder ao chamamento religioso de Sayyedna el- Hussein.
Naturalmente que a forma como Ahmad Abdel Gawwad vivencia a religião é absolutamente diferente. Embora crente piedoso, embora cumpra com a esmola legal, o jejum, a oração, a invocação de Deus,   Ahmad não renuncia aos prazeres mundanos, mesmo os mais ilícitos perante a sua religião, como o álcool e o sexo com mulheres de pouca virtude. (…) Deste modo, a sua vida encerrava uma série de contradições que oscilavam entre a devoção e o vício. (… ) » (pág. 49).
Para serenar a sua própria consciência, Ahmad afirmava que só seria proibido o que pudesse lesar outrem e que o próprio profeta era apaixonado pelos perfumes e pelas mulheres. Para além disso, Ahmad  reconhece a clemência de Allah, só ele detentor da perfeição. Não consegue imaginá-lo «exaltado, enfurecido ou rabugento» e afirma mesmo que a Sua vingança é uma graça oculta.

Apesar das diferenças notórias como cada membro da família vive a religião, há traços que são comuns: nenhum deles questiona os fundamentos da religião (mesmo Fahmi, o mais revolucionário e reflexivo, afirma-se profundamente religioso: (…) A nossa guerra santa serve também a causa de Allah! Todo o nobre combate serve a causa de Allah! (pág. 431) e vemos a influência que a religião tem em todos na forma como ela está presente na linguagem do dia a dia, nos cumprimentos, na forma como expressam as emoções e como olham o mundo.
Actualmente, o Egipto é realmente terra de Allah. Há 90% de muçulmanos e 10% de cristãos. Apesar de o Estado se afirmar como laico, a religião está profundamente associada à cultura do país e há também os defensores (ainda que minoritários) de uma política completamente baseada na religião : a sharia.
Mas as contradições, em termos colectivos, também existem: se, por um lado, se mostram extremamente religiosos (embora não fanáticos) por outro lado, não obedecem ao chamamento para a reza, a não ser às sextas feiras. Se o álcool é visto com proscrito, o haxixe está muito difundido. Se o divórcio ainda é proibido entre os coptas, a solução é converter-se a outra linhagem cristã.
A convivência entre as duas religiões é pacífica e respeitadora. Durante a revolução de 2013, quando se sucederam uma série de ataques bombistas, cristãos protegiam muçulmanos durante a reza e muçulmanos protegiam as igrejas.
A religião está também extremamente ligada ao enorme crescimento populacional no Egipto, pois não existe qualquer tipo de planeamento familiar.
Ainda que timidamente, uma onda de ateísmo está a surgir desenvolvendo-se, através da internet, grupos de discussão nos quais se questionam os fundamentos de ambas as religiões. No entanto, ainda não é possível discutir estas questões em sociedade ou entre famílias, sem represálias.



O Egipto do fim do século XIX ao princípio do século XX

por Conceição Rocha

O Egito era, no fim do século XVIII e até às invasões napoleónicas,  um território otomano constituído por várias regiões semi-autónomas, de economia rural e culturalmente fechada.
A sua localização  geográfica torna-o muito apetecível pelas potências coloniais europeias que, desde o início do século XIX,  intrigam e corrompem os poderes políticos segundo as suas conveniências. Daí decorre uma grande instabilidade política, particularmente manipulada pelos ingleses, apostados na hegemonia do eixo vertical que vai da Cidade do Cabo ao Cairo.
Mas é também no século XIX e graças a essa colonização que o Egito se moderniza, desenvolvendo a indústria, organizando o exército e tomando parte, aqui com os franceses, na construção do Canal de Suez (1860 – 1870).
Em 1874, para reduzir o  enorme endividamento à Europa, vende as acções do Canal de Suez à Inglaterra que, conjuntamente com a França, impõe uma caixa nacional de dívida pública administrada por estes dois países.   Esta medida desencadeou o surgimento de movimentos nacionalistas, uns pacíficos, outros com intervenções paramilitares ocasionais.
Em 1882 uma frota anglo-francesa desembarca em Alexandria e ocupa militarmente o país.
Em 1914 o Egito é declarado protectorado pelos ingleses. O protectorado finda em 1922, com a independência declarada pelo partido nacionalista e a nomeação do rei Fuad como chefe de estado. No entanto, a negociação de independência valida uma cláusula segundo a qual a Inglaterra pode interferir na política interna, se algum dos seus interesses for posto em causa. Fácil é compreender que os movimentos nacionalistas permanecem activos.
Em 1924 o comandante britânico do Egito é assassinado por elementos do partido Wafd, o mais radical de todos, com grande popularidade entre os estudantes e que promove as insurreições urbanas que o romance refere. Rolam cabeças no Cairo e em Alexandria e há militares ingleses por todo o lado.

Em 1930, pressionado pelos ingleses, o rei Fuad encerra o parlamento e reforça os poderes da monarquia. Pouco depois morre.


Sucede-lhe em 1936 o filho – Faruk – que retoma a constituição de 1923, independentista e parlamentarista e o partido Wafd ganha as eleições.


Em 1939, com o início da 2ª guerra, aumenta o número de tropas no Canal de Suez. O Egito é forçado a declarar-se neutro mas, na prática, alinha com o eixo, vendo nessa opção a possibilidade de se ver livre dos ingleses.
Em 1942 a Alemanha ocupa a Líbia e o Egito passa a colaborar com os aliados.
Em 1945, a necessidade de se libertarem de ingleses e alemães faz com que os países árabes formem a Liga Árabe.
Em 1952, um golpe de estado vitorioso chefiado pelo general Nasser obriga Faruk a abdicar e institui a república. Nasser governa até 1970.



                       Em torno do sayyed
                           por Maria Amélia Correia

O senhor  Ahmad  Abdel  Gawwad  era um  homem feliz .Possuía como soe dizer-se sol na eira e chuva no nabal. Digamos que personificava o sonho do machista puro, espécie que infelizmente ainda abunda, mas que felizmente, quero crer, vai entrando em extinção por falta de condições, pelo menos nas sociedades ocidentais. Para este espécime, há dois tipos de mulheres: as da família, mulher e filhas sobretudo, que devem ser recatadas, obedientes até submissas, e claro, desconhecedoras dos prazeres da carne, para serem castas; e as outras folgazãs, atrevidas, conhecedoras do prazeres sensuais que podem dispensar e receber.
Assim o sayyed tinha a mulher e filhas perfeitamente domesticadas, não tendo hipótese de conhecerem outro mundo que não fosse o da casa que habitavam.
Esta situação não surgiu de mão beijada ao nosso herói, teve de conquistá-la com algum sacrifício pessoal. O primeiro casamento não lhe correu de feição. Escolheu uma mulher bela e sedutora a quem amou sinceramente, e de quem teve um filho, Yassin. Acontece que a dita não se dobrou à vontade soberana do sayyed . Era detentora de uma sensualidade transbordante, tal como o esposo, e não aguentava estar encarcerada em casa. O Sr. Ahmad tentou corrigir estes defeitos através de uma surra valente, mas eis que a bela foge para casa dos pais. Esperou ainda que surgisse um pedido de desculpas, estava pronto a perdoar-lhe, se ela prometesse modificar-se, afinal era tão apetitosa! Nada disto aconteceu, não teve outro remédio, repudiou-a. 
Na vez seguinte não cometeria o mesmo erro. Casou com Amina, uma menina que ainda não completara catorze anos, que entrou na casa grande, onde viviam ainda os sogros, cheia de medo dos fantasmas que a aterrorizavam durante a noite. Isto, porque à noite o sayyed habituou-a a ficar sozinha, pelo menos até à volta da meia-noite, hora em que terminavam os seus serões. A princípio algumas vozes advertiam-na que um homem com a beleza, força e riqueza do sayeed não passava sem mulheres. Nasceu assim em Amina o ciúme que tanto a  atormentou.  Quando ousou perguntar ao seu senhor a razão destas entradas tão tardias, levou logo um puxão de orelhas, por causa do desplante. Habituou-se assim a não questionar e a aceitar estes costumes como característicos da virilidade do seu senhor que venerava, mas que sobretudo temia. A subserviência de Sitt Amina chegou ao ponto de acordar sem despertador por volta da meia- noite para ajudar o seu senhor a despir-se e a deitar-se. Obtinha uma pequena vantagem, que aprendeu a saborear, pois era sobretudo a esta hora que o Sr. Ahmad, ainda sob o efeito dos eflúvios etílicos, se permitia ter com ela algumas familiaridades e um pouco de cumplicidade.
                
Em casa este   déspota  castrador, era venerado,  infundindo terror e tremor à  mulher e filhos. Fora de casa gozava de grande consideração e respeito, mas sobretudo era amado quer no campo profissional quer no da amizade. Assim sendo, a família desconhecia a faceta sedutora   do sayyed, sempre pronto a gracejar e a usufruir os prazeres da vida com uma vitalidade invejável. Por seu turno os seus inúmeros conhecimentos, à excepção dos amigos íntimos, desconheciam o déspota dentre portas.
As mulheres o álcool e os amigos, acompanhados da música que tanto apreciava e cultivava, eram os ingredientes necessários e suficientes para o sucesso dos seus inesquecíveis serões. E na verdade estes ingredientes não lhe faltaram durante muitos anos, para lhe adoçarem a vida. Tomou como amantes mulheres famosas e desejadas e soube cumulá-las de benesses e prazeres. Era por esta razão, um amante desejado, pela sua beleza e seus inúmeros dotes. Sabia animar um serão com o seu discurso, os gracejos, a música, tornando-se uma boa companhia para s amigos e amantes. Era também extraordinariamente generoso, cumulava as amantes de presentes. No sexo a sua máxima era: antes de tudo preocupar-se com o prazer da sua amante, pois sabia que mais cedo ou mais tarde o seu viria por arrasto. No manual deste Casanova encontrava-se outro mandamento: jamais terminar um “affaire” sem ser de boas   relações  com a amante. As pérolas do seu séquito foram duas cantoras famosas Galila e Zubaida. Eram ambas mulheres enormes, portentosamente  anafadas, com traseiros impressionantes que só cabiam nas portas de esguelha, enfim enchiam uma cama. E que bom gosto tinham estes homens, direi eu!!!   
Sabemos da amizade e até das saudades que Galila sentia pelo Sayyed através do discurso dela durante o casamento da filha deste, Aisha. Tendo sido convidada para animar a festa, já sob o efeito do álcool, desatou a falar nas belas recordações que a ligavam ao pai da noiva, gerando-se uma situação complicada para este, até que os amigos a conseguiram calar. Fahmi ficou a conhecer a personalidade do pai fora de portas, pois Yassim já a conhecia e invejava.
Com Zubaida podemos dizer que foi esta a dar o primeiro passo para conquistar o sayyed, que obviamente não se fez rogado.  Com ela teve uma longa relação e tornou-se também no final grande amigo.
Esta dupla personalidade do sayyed coincidia com a de um homem pio com uma fé profunda  em Deus. O Sr Ahmad fazia regularmente  as suas orações e à sexta feira ia à  mesquita de   El Hussein com os filhos para realizar o culto.
Perguntarão como conciliava esta religiosidade com o lado pecaminoso dos seus serões onde bebia álcool e frequentava meretrizes. A resposta  é o Sayyed acreditava sobretudo num Deus  clemente  e misericordioso pronto a perdoar as fraquezas humanas, e nem o sheikh Metwalli com as suas recriminações o fazia sentir uma pontinha de complexos de culpa.   
Dito isto, eis a receita para ser um homem feliz.  




            Por detrás da machrabiyya

                                             por Alexandra Azevedo


Quem está por detrás da machrabiyya?
Aparentemente, apenas as mulheres, mas em “Entre os Dois Palácios” todas as personagens são prisioneiras e a machrabiyya é apenas o símbolo das grades que a todos aprisionam.
No entanto, e surpreendentemente, a violência desta prisão não é percebida como tal por ninguém.
Amina, que acorda todas as noites à meia-noite em ponto “sem precisão de um despertador”(5) para receber e servir o marido quando este regressa dos seus serões com os amigos e as amantes, encara a subalternidade da sua condição de esposa com a naturalidade de quem sabe que nasceu para servir.
A fonte, os minaretes, as duas ruas que se cruzam diante da casa são o único mundo exterior que os seus olhos conseguem alcançar através dos orifícios da machrabiyya, um cenário que, aliás, nunca a entediara porque Amina desconhecia o tédio e “pelo contrário, aquele tornara-se uma companhia para a sua solidão e uma amizade para a desolação dos muitos anos que vivera como se não tivesse nem companheiro nem amigo íntimo”(6).
E, na verdade, Amina não tinha nem companheiro nem amigo íntimo. Tinha dono. Um dono feroz que ela venerava e em cuja tirania apenas via um sinal mais de uma virilidade que devia apreciar. A sua condição de mulher e de esposa em pouco ou nada excedia a de um animal doméstico e era assim que Amina se comportava: fiel ao seu dono, ficava feliz quando este regressava a casa ainda que tivesse de interromper o sono delicioso (8) e aninhava-se no chão aos seus pés por não se considerar digna de se sentar ao seu lado_ Dispôs frente ao divã um colchão que tirara de sob a cama e nele se acomodou, pois que, por razões de decoro, não se achava no direito de se sentar ao seu lado. (14). Do mesmo modo, tal como o cão que sempre viveu preso dentro de  casa é atropelado na primeira saída à rua, também Amina sofre um acidente quando, por ocasião de uma ausência do marido, cedendo à pressão dos filhos para dar um passeio,  é abalroada por um carro.
Esta condição da mulher enquanto animal doméstico é clara e cruamente exposta por Yassin, o enteado de Amina quando este reflecte sobre o seu próprio casamento: “As mulheres são animais domésticos e como tal devem ser tratadas! Sim, não permitimos aos animais domésticos que invadam a nossa vida privada; devem aguardar em casa que tenhamos disponibilidade para afagá-los!”(346)
Mas o dono de Amina nunca tinha disponibilidade para afagá-la. Pelo contrário, quando, por acaso, um pensamento alegre lhe distendia o rosto, imediatamente recuperava o ar carrancudo e feroz ao encarar Amina. Ahmad Abdel Gawwad fazia questão de demonstrar a sua incontestada autoridade a cada momento e considerava que esta seria posta em causa se, por acaso, condescendesse em tratar a mulher com dignidade. A clausura das mulheres da casa servia, aliás,  para demonstrar essa mesma autoridade que, do seu ponto de vista, ficaria ferida de morte se algum olhar masculino pousasse em alguma delas.
Esta atitude que nos parece hoje tão longínqua dos nossos padrões de comportamento, é, na verdade,  uma realidade que na nossa sociedade perdurou até há relativamente pouco tempo. Eu própria testemunhei um caso semelhante na minha família a que apenas faltou o lado violento do tratamento que Gawwad infligia a Amina. O tio-avô de quem herdei o nome, homem bem parecido e bem-falante não permitia que a mulher saísse sem ser acompanhada por ele nem que assomasse a alguma das janelas que davam para a rua. Durante décadas, Linda, de nome e de figura, viveu entre as paredes da casa e as rosas do jardim a que, ainda assim,  também não podia ir em “dia de Sr. Bessa”, o terrível jardineiro que nós crianças odiávamos porque estávamos igualmente proibidas de andar de bicicleta ou de jogar a macaca “lá fora” enquanto o Sr. Bessa não  fosse embora. Linda, embalada por  doces palavras, presentes e carinhos via nestas imposições um sinal inequívoco do amor e do legítimo ciúme do marido e sorria feliz quando alguém sugeria, ainda que por meias palavras, que tal conduta não fosse talvez a mais justa. A invisibilidade da violência para as próprias vítimas é, sem dúvida,  a melhor garantia da sua continuação. E assim foi, de facto, até ao nefasto dia em que Linda descobriu, acidentalmente, que o adorado marido a quem, submissa,  devotara a vida toda, tinha afinal uma segunda família, há longos anos. E a vingança foi terrível: sem nunca abordar o assunto nem alterar o quotidiano, Linda fechou o rosto para sempre e  nunca mais Alexandre viu o doce sorriso de Linda, nunca mais Alexandre viu o olhar devotado de Linda, nunca mais Alexandre ouviu o riso de cristal com que Linda sublinhava, enlevada, as graças que ele contava. E Alexandre definhou.
Nem Alexandre nem  Ahmad eram homens maus. Apenas viviam o seu tempo, um tempo em que as mulheres e as crianças não eram sujeitos de direitos. Um tempo a que ninguém quer voltar.
 Ninguém?



30 de Julho de 2018





A Hora do Café

                                                   por Maria José Marques
  
        


         Meia noite marca o início do romance. O início ou o fim, como se queira, de um ciclo diário das obrigações de Amina, esposa dócil, amorosa e obediente. Esta é a hora de interromper o seu sono para desempenhar tarefas que “deviam ter terminado com o fim do dia “ e no entanto fazem parte da sua vida de dedicação à felicidade do marido, servindo-o. No regresso das suas diversões fora de casa, Ahmad Abd al-Jawad  “(…) was companiable and talkative. He would tell her his innermost thoughts, thus making her feel, if only for the moment, that she was not just his servant but also a partner in his life “. A hora em que Amina se sente esposa.
        Com o nascer do dia as tarefas domésticas vão-se desenvolvendo, as personagens vão sendo apresentadas no conjunto familiar. As madrugadoras Umm Hanafi , a criada, e Amina a senhora da casa preparam o pequeno almoço. Os filhos acordam ou são acordados para o novo dia e vão sendo revelados ao leitor : Yasin, o único filho do primeiro casamento de Ahmad, Khadija e Aisha as filhas, Fahmy o filho estudante e Kamal o benjamim.”
       “ Breakfast is ready, gentlemen”, a primazia do masculino revelada num chamamento tão curto. Na sala de jantar principal, situada no andar superior, junto do quarto dos pais, primeiro hão-de comer os homens servidos pela mãe depois virão as mulheres quando eles estiverem saciados e tiverem saído. Esta é uma hora tensa. O medo, o terror do pai que atravessa todo o romance está presente logo à hora do pequeno almoço. “ Breakfast was the only time of day they were together with their father” Sentar-se com ele à mesa, ainda que por pouco tempo, é penoso, a disciplina é rígida e as reprimendas  e críticas severas impedem os filhos mesmo de apreciarem a comida na presença daquele pai que exige de todos em casa uma obediência cega .Hora de os homens saírem para o trabalho, Ahmad e Yasin, Fahmy e Kamal para estudar. Hora de as mulheres comerem e de cuidarem de manter ou alcançar aquela silhueta gorducha que parece ser do agrado geral. É uma hora de intimidade entre elas, sem a presença severa do pai, antes de se dedicarem às tarefas domésticas que Amina distribui.
      Ahmad volta habitualmente a casa à hora de almoço para se retemperar dos excessos cometidos nas noitadas de divertimento. Depois da refeição, uma sesta reparadora e as orações a que se entrega com zelo. Ahmad é um cidadão exemplar generoso com os seus amigos que exige da família o estrito cumprimento dos preceitos religiosos e observância dos costumes sociais, para ele uma e a mesma coisa na preservação da sua honra, enquanto ele próprio se diverte infringindo essas regras numa dualidade de critérios sem remorsos.
      A rotina do convívio familiar culmina quando “ a família se reúne pouco antes do pôr do sol para o que eles chamam a hora do cafésem a presença atemorizadora e opressiva do pai. Tudo o que é relevante na vida familiar se manifesta nessa hora de partilha. O carácter mais informal começa na situação da sala rodeada pelos quartos dos filhos transmite uma sensação de aconchego e intimidade. A mãe sentada ao centro tem ao seu alcance a comida e as bebidas e na sua frente sentam-se os filhos, tanto os que podem tomar café, como as filhas e Kamal que estão proibidos segundo o costume e a tradição. A asa protectora da afável Amina propicia uma atmosfera descontraída em que até o modo como se recostam nas almofadas denota a liberdade que sentem para conversarem à vontade. Embora as rivalidades e picardias entre irmãos se manifestem esta é a hora de partilharem os seus sonhos, sentimentos e aspirações. Mesmo depois de Yasin e Fahmy se retirarem a mulheres continuam em conversas triviais e o pequeno Kamal goza da sua companhia e das histórias que elas contam e não perde a oportunidade de exibir os conhecimentos que adquiriu na escola de que elas foram privadas por terem sido retiradas da esfera pública e mantidas em casa em nome da preservação da honra da família.
    
  Hora do café, hora de partilhar notícias importantes e cheias de esperança, como o desejo de Fahmy de ficar noivo, ou um possível pedido de casamento de Aisha transmitido por Fahmy, contando com a mediação da mãe para contornar a previsível ira paterna que vê na hipótese de alguém ter conhecimento da sua filha ou da filha do vizinho um ataque à sua própria honra.
      Hora do café, é o barómetro das relações familiares. É hora de Yasin evitar o convívio quando espera reprovação depois de ser surpreendido a atacar a criada. Hora de anunciar à família o seu casamento com Zaynab poucos dias depois. Hora para Khadija partilhar as imagens que guardou do casamento da irmã que tanto tinha invejado sem querer que alguém percebesse.
      Hora do café é uma tradição que não faz sentido sem o elemento aglutinador, Amina, e por isso esteve naturalmente suspensa durante o tempo em que ela esteve afastada de casa, expulsa pelo marido inclemente, após confessar ter saído à rua, grande ofensa à honra dele. Os casamentos de Aisha e de Khadija afastam-nas do convívio regular com a família mas Zaynab, a esposa de Yasin, acrescenta um novo rosto à hora do café e em breve aí desabafa as suas mágoas de esposa negligenciada o que exaspera Amina, a submissa, e não tarda a afastar-se desse convívio familiar já que não há quem a consiga demover de abandonar Yasin e pedir o divórcio depois de ele a trair com própria criada dela.
      A conversa da hora do café foi desde sempre a ligação do mundo fechado da casa com os acontecimentos exteriores trazidos pelos relatos e comentários dos filhos. A tutela dos ingleses, o desejo de independência dos egípcios, e exílio dos seus líderes. Mas a proximidade  física das tropas ocupantes junto à casa da família, visível até das janelas, vai tornando inevitável um contacto que ninguém desejaria.
     À hora do café, na noite da libertação de Sa’d Pasha a alegria é evidente nas conversas familiares apenas ensombrada pela afirmação de Fahmy “ uma mãe realmente patriota rejubilaria com o martírio do filho “ Amina, incrédula  diz” Onde? (…) nem aqui, nem nas profundezas onde residem os demónios” Fahmy confessa ter participado em manifestações mas assegura que isso acabou, não há razão para alarme. Na realidade Fahmy juntara-se aos que lutaram pela liberdade e vai festejar com a multidão jubilosa. Uma bala traiçoeira atinge-o. Ahmad regressa a casa depois de receber a terrível notícia e então pensa em Amina” Ela está agora na  hora do café com Yasin e Kamal sem saber o que reteve Fahmy. Que cruel ! “
      Os companheiros de luta querem fazer a Fahmy um funeral de mártir. Por crueldade ou compaixão Ahmad não permitirá que Amina veja o filho morto no hospital.

(Suspeito que a hora do café não voltaria a ser o que era.)


Maria José Marques






terça-feira, 1 de maio de 2018

Samarcanda





Clube de Leitura de 9 de abril de 2018


SAMARCANDA

Amin Maalouf


Verba volant, scripta manent

Temas de Reflexão



  • ·       As autoridades civis e religiosas da antiga Pérsia
  • ·        Omar Khayyam: a poesia e o poeta
  • ·       Samarcanda e Rota da Seda
  • ·       A história da Pérsia/Irão do século XX  
  • ·       Omar Khayyam vs Ricardo Reis
  • ·       Irão, impressões pessoais
  • ·       Samarcanda- a estrutura do romance
  • ·       O livre génio da Pérsia espartilhado no dogmatismo muçulmano
  • ·       “…se o Oriente não conseguir despertar, em breve o Ocidente não conseguirá dormir” (pág. 258)
  • ·       O mistério do manuscrito de Samarcanda



«Se o Oriente não conseguir despertar, em breve o Ocidente não conseguirá dormir»

                                                                  por Maria João Leite de Castro

A frase é de Howard C. Baskerville (séc. XIX/XX), na altura ainda estudante na Universidade de Princeton, Nova Jersey, mas já desejoso de partir para a Pérsia e de contribuir para esse despertar do Oriente.
Pouco tempo depois, será colocado em Tabriz como mestre escola e desenvolverá, não apenas a sua actividade como professor de inglês e ciências, mas sobretudo como activista e ideólogo de uma nova sociedade, de uma nova Pérsia, liberta da tirania do Xá e dos chefes religiosos. É em nome dessa ideia e da convicção de que é necessário resistir à tragédia da alma persa e renová-la, que Howard se irá juntar a Fazel no cerco a Tabriz e acabar por morrer.
O despertar do Oriente consistirá sobretudo no despertar da razão e na sua libertação face à religião, ao obscurantismo, ao fanatismo, e à tirania que restringem a liberdade individual.
Segundo Kant, não se pode conhecer outra forma de fé que não seja a fé racional, a fé prática, que reconhece apenas a possibilidade do supra sensível unicamente enquanto tal possibilidade reforça a acção moral do homem. Transformar essa possibilidade numa afirmação dogmática significa tornar impossível ao homem, não só a vida teórica e moral, mas a própria religião que se converte em superstição.

Na narrativa, as vozes da libertação são várias: Omar Khayyam, no sec.XI, e muitos outros, já nos sécs. XIX/XX, tais como Djamaleddine («…nas terras do Islão, não há um único recanto onde eu possa viver ao abrigo da tirania.»),Fazel,
Mirza Reza («nos seus olhos podia ler-se toda a aflição do Oriente»), os filhos de Adão, Baskerville, Lesage e Chirine que escreve, numa das suas cartas: «A Pérsia está doente. Tem vários médicos à sua cabeceira, modernos, tradicionais, cada qual propõe os seus remédios, o futuro pertencerá àquele que obtiver a cura. Se esta revolução trinfar, os mulás deverão transformar-se em democratas; se ela falhar, os democratas deverão transformar-se em mulás.».
A centralização islâmica da vida política, com a consequente não separação do poder político e religioso é uma das causas (e simultaneamente consequência) da não libertação da razão. No livro, as vozes resistentes à revolução questionam: «Por que motivo precisamos de uma Constituição, se temos o Alcorão?»
Da mesma forma que, na narrativa, a democracia nascente acaba por sucumbir, também as diferentes tentativas de modernizar o islamismo foram estranguladas pelas lutas das duas super potências, Estados Unidos e União Soviética, durante a Guerra Fria. Para destruir o bloco comunista, os Estados Unidos não hesitaram em se aliar ao que havia de mais ultra conservador e anti iluminista, mais especificamente ao mundo islâmico.
Assim, ao perseguir a destruição do socialismo, as potências capitalistas acabaram por alimentar o terrorismo que neste início de século busca o fim do Ocidente.
Portanto, esta frase é premonitória e nos dias de hoje verificamos como as convulsões que se vivem no Oriente afectam a vida do Ocidente, com constantes ataques terroristas e a chegada de vagas de refugiados que diariamente procuram a segurança no Velho Continente que não consegue (ou não quer) dar resposta a esses movimentos migratórios.

Mas, se por um lado, o Ocidente sofre também com essas convulsões, por outro lado é o próprio Ocidente, com os seus interesses político-economicistas (fundamentalmente petrolíferos, geoestratégicos, venda de armas…) que continua a alimentar essa instabilidade e a fomentar o fundamentalismo islâmico. Este consolidou-se como ideologia dominante nas últimas décadas do séc. XX, principalmente após a revolução Iraniana de 1979, a ascensão dos Talibãs ao poder no Afeganistão e ainda a proclamação do Estado de Israel na Palestina em 1949.


Samarcanda
 Amin Maalouf
 por Maria José Marques
“Tinha curiosidade de ver o que restava da cidade onde desabrochara a juventude de Khayyam.” (p.313) Eis o que leva Benjamin Omar Lesage a Samarcanda. Dos tempos antigos só encontra ruinas. “Em redor do Reghistan erguem-se três monumentos, três gigantescos conjuntos, torres, cúpulas, pórticos, altos muros todos ornados de mosaicos minuciosos, de arabescos com reflexos de ouro, de ametista, de turquesa. E de laboriosas escritas. (…) corroídas pelo tempo, pelo vento, por séculos de indiferença.”  “Sobre a época que o apaixona não recolherá senão lendas, histórias de djins e de divs “
Numa época em que o orientalismo era moda, Théophile Gautier saudava nas quadras de Omar Kéyam, divulgadas em traduções de um reduzido número de quadras    “esta absoluta liberdade de espírito que os mais ousados pensadores modernos mal igualam.” Ernest Renan, escritor, filósofo, teólogo, historiador, reforçava a ideia que “Khayyam talvez seja o homem mais curioso de estudar para compreender aquilo em que pode transformar-se o livre génio da Pérsia no espartilho do dogmatismo muçulmano”
Fadado com o « middle name » Omar em homenagem ao poeta que uniu seus pais, Benjamin O. Lesage procura com afinco o Manuscrito de Samarcanda , o original, o verdadeiro que se perdera no tumulto dos séculos, na miragem de nele descobrir o poeta. E encontra ! Tal como nas histórias das mil e uma noites, passadas muitas aventuras, superadas enormes dificuldades graças a nobres e úteis ligações de amizade além das auspiciosas coincidências do destino, compensadas muitas das suas virtudes, Benjamin encontra o Manuscrito na posse da bela, rica e destemida princesa Chirine disposta a partilhar não só o precioso livro mas também a sua vida.
            Shirin , filme realizado por Abbas Kiorostami -2008
Exibe 114 actrizes espectadoras mudas e comovidas do poema persa Khosrow e Shirin  lido / dito em off .

Verão de 1072, o incomparável Omar, filho de Ibraim Khayyam de Nichapur, admirador e estudioso de Avicena, é levado à presença do cádi de Samarcanda depois de ter um mau encontro com rufias que maltratam um velho e o acusam de ser alquimista. O juiz Abu Taher reconhece Omar pela sua ciência mas não deixa de pôr à prova o seu zelo religioso e de lhe dar alguns conselhos para que domine os seus impulsos . É das mãos desse juiz que Omar recebe o livro “duzentas e cinquenta e seis páginas virgens, ainda sem poemas, nem pinturas, nem comentários à margem, nem iluminuras.” (p.25.Os tempos são de “ segredo e medo (…) Sempre que um verso tomar forma no teu espírito, se abeirar dos teus lábios, tentar sair, recalca-o sem rodeios, escreve-o antes nestas folhas, que ficarão em segredo.”(p.25) Aconselhou o cádi.
            Dos poderosos Omar recusa honrarias e riquezas como recompensa do seu talento, basta-lhe (p.88)” o suficiente para beber e comer, alojar-me e vestir-me.”  Pede antes um observatório e instrumentos para medir a duração exacta do ano solar. Durante sete anos Omar trabalha no observatório de Ispaão, institui o novo calendário em 1079 e deleita-se com um bom vinho na companhia de Djahne : “ a felicidade a emboscar-se na monotonia”. O vizir considera-o “ discreto, sensato, justo equitativo” ,o perfil ideal para ser o chefe dos espiões. Khayyan escusa-se do cargo e sugere em boa fé o nome de Hassan Sabbah. Abriu a porta ao terror pela vigilância, controlo e intolerância religiosa da Seita dos Assassinos. Quando os melhores, os puros, não estão disponíveis para servir ...

             A deleitosa Pérsia dos fragrantes pomares e jardins, dos tapetes, sedas e brocados dos palácios imponentes, do Chiraz inebriante, do vento que acaricia, do alaúde tangido com amor e arte perder-se-á nos tumultos insensatos dos ambiciosos, as bibliotecas, ai as bibliotecas, de tão ameaçadoras e perigosas são imoladas pelo fogo. Restam os livros salvos por milagre, as ruínas, as lendas, os mitos.
Alguns robai de Khayyam surgem onde menos se espera: Abbas Kiarostami, realizador iraniano, usa poesia persa nos diálogos, títulos e temas dos seus filmes. No filme “ The wind will carry us” o realizador e o médico atravessam de mota uma seara e em resposta ao comentário de que o outro mundo é melhor que este recitam um robai de Omar Khayyam
They promise of houries in heaven
But I would say wine is better
Take the present to the promises
A drum sounds melodious from distance.

O Sabor da Cereja ” de Kiarostami é uma meditação sobre a condição humana a propósito da história de um homem de meia idade que deseja por termo à vida.

            “Gabbeh” do realizador Mohsen Makhmalbaf  é uma deliciosa fábula contada por um tapete persa que um casal de velhotes vai lavar num riacho.

“Kandahar” filme dirigido por Mohsen Makhmalbaf, conta a história de uma jornalista refugiada no Canada que procura irmã que ficou no Afeganistão durante a guerra civil Taliban .

“ O Quadro Negro” filme dirigido por Samira Makhmalbaf, conta as dificuldades que enfrentam professores itinerantes que carregam um quadro negro procurando alunos durante a guerra Irão- Iraque.

“Separação” de Asghar Farhadi.Um casal enfrenta um processo de separação no Irão actual. O marido não quer deixar Teerão, a mulher quer procurar no estrangeiro uma vida melhor para si e para a sua filha pequena.

Nestes filmes está a minha visão do Irão.
           
Clube de leitura, 9 de Abril de 2018
Maria José Marques

A história da Pérsia/Irão do século XX

por Jorge Paradinha


O Irão, terra dos arianos, Pérsia para os ocidentais, já era conhecido cinco séculos antes de Cristo. Até ao século XX fez história com Ciro, Dario - dono do maior e bem organizado império persa, destruido mais tarde por Alexandre o Grande, rei da Macedónia - com os partos, romanos, árabes, turcos, mongóis e também com os portugueses, com a conquista do reino de Ormuz por Afonso de Albuquerque. No século XVI os safávidas, fundadores de novo Império, forjaram o Irão moderno seguidor do xiismo, apoiantes de Ali, quarto califa ou “santo”para os xiitas, o verdadeiro sucessor do profeta Maomé, tornando-o o maior país xiita do mundo, posição que ainda ocupa.

No século XX começou a jorrar o petróleo nas areias do deserto, explorado por companhias inglesas, anglo-persas e mais tarde também por americanas, ficando a economia do Irão progressivamente dependente da Europa. Após a Primeira Guerra Mundial passa por um período de grande desenvolvimento, com a dinastia Pahlevi, dos Xás, no campo da saúde, educação e infraestruturas, que levou ao aparecimento de uma sociedade industrializada, aberta ao ocidente, com uma classe média profissional e operariado industrial. Os reinados fortemente ditatoriais dos Xás e a exploração económica pela Inglaterra e EUA, entre outros, conduziram o Irão à revolução de 1979, liderada pelo aiatolá Khomeni, que instalou no país a república islâmica, regime onde a hierarquia religiosa se confunde com o poder político. A partir daqui as convulsões internas e externas sucedem~se em catadupa, com a sangrenta guerra com o Iraque, rompimentos políticos e económicos com o ocidente, com boicotes sucessivos por parte deste e sanções da ONU, muito devido ao programa nuclear que ameaça o seu maior inimigo, Israel. No fundo, o Irão tenta reconquistar o estatuto de potência regional, numa região de maioria árabe e sunita. Na presidência de Obama houve alguma abertura ao ocidente, que está lentamente a arrefecer com a administração Trump.
Os iranianos são um povo culto e hospitaleiro, sujeito a rigorosos códigos sociais. O cabelo e o colo femininos voltaram a ser fonte de pecado, e as jovens preferem ficar solteiras e seguir uma carreira profissional, em vez de casarem e ter de pedir autorização ao marido para a exercer.




Clube de Leitura, 9 de Abril de 2018 – Samarcanda, de Amin Malouf         

 Jorge Paradinha


Omar Khayyam e Ricardo Reis

por António Nabais


Em Samarcanda, Omar Khayyam resume a sua obra da seguinte maneira: “São apenas robaiayt sobre o vinho, sobre a beleza da vida e a sua vacuidade.” (p. 61) Esta definição provoca em Djahane “um grito de incredulidade, quase de desprezo.”. Nessa mesma página, o narrador explica a essência da poesia produzida pelo poeta persa: “Que um sábio… Djahane está intrigada.” Omar declara, ainda, que escreve robaiayt porque, ao contrário da amada, não tem “as ambições de um poeta de corte.”
Omar Khayyam é poeta e cientista, actividades que estão ligadas a um mesmo nome, ao contrário do que acontece, por exemplo, com António Gedeão ou com Miguel Torga. Com o uso do pseudónimo, dir-se-ia que Rómulo de Carvalho e Adolfo Rocha não quiseram misturar a literatura e a vida profissional. Em Kahyyam, tudo se mistura, mas a verdade é que parece ter necessidade de esconder a poesia que escreve, talvez devido a um certo carácter plebeu, por um lado, ou ao facto de os seus textos poderem ser considerados dissolutos e eventualmente heréticos (O que vale mais? Meditar numa taverna, /ou prosternado na mesquita implorar o Céu?/ Não sei se temos um Senhor,/ nem que destino me reservou.)
Kahyyam parece fugir para baixo, com uma poesia em que o vinho e o corpo da amada se misturam, juntando a isso uma obsessão por aproveitar cada momento, o que, em termos genéricos, o coloca do lado do carpe diem Horácio.

Ricardo Reis é um elitista, a sua poesia vai em direcção ao alto, como que fugindo da vida para tornar mais fácil a morte do Outro. Kahyyam não é imune à perda, mas parece mais interessado em aproveitar o momento como uma fuga em direcção ao prazer do vinho e do sexo.
A poesia de Ricardo Reis é aristocrática, de um paganismo artificial. Reis procura viver o momento, é certo, mas em fuga, evitando os sentimentos extremos. Kahyyam não quer desenlaçar as mãos: “Que pobre o coração que não sabe amar/e não conhece o delírio da paixão./Se não amas, que sol pode te aquecer,/ou que lua te consolar?”
Na carta que Pessoa escreveu a Casais Monteiro acerca do fenómeno heteronímico, explicou Reis: “pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria”, “É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria.” “Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode.” “Reis [escreve] melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado.”

                Num encontro imaginário entre Kahyyam e Reis, imagino que o primeiro iria impacientar-se com a abulia do segundo: “Você, Reis, quer ficar na margem do rio, cansado de dar a mão a Lídia; eu prefiro arrastar Djahane para a corrente, porque só vale a pena viver no perigo de afogamento.”

Samarcanda- a estrutura do romance

Uma leitura de SAMARCANDA de Amin Maalouf 

por Margarida Mouta

Neste romance, o autor põe em prática a técnica da narrativa em abismo, apresentando-nos, à semelhança do que acontece nas “Mil e uma noites”, várias histórias dentro de uma história, em que se misturam a realidade com a ficção, a transcendência das culturas e das religiões e a figura de “viajante ambulante”. Temos, por um lado, o naufrágio do “Titanic” numa data bem real, a noite de 14 para 15 de abril de 1912 e, por outro lado, o manuscrito de Omar Khayyam, exemplar único dos Robaïyat, as célebres quadras que o poeta e sábio persa escreveu há quase mil anos e que será a mais prestigiada vítima do naufrágio. Dessa catástrofe, em que perderam a vida mais de 1500 pessoas, o narrador pouco falará. Seis anos depois (o que nos permite situar a narrativa em 1918), o que o obsidia é ainda esse ser de “carne e de tinta do qual foi, por momentos, indigno depositário”.
No fundo do Atlântico há um livro. É a sua história que vou contar.” (p.9). Desde este início, anuncia-se o Ocidente (Titanic) entrelaçado com o Oriente (o manuscrito de Khayyam). É perseguindo o manuscrito que o autor nos faz percorrer diferentes tempos e diferentes espaços, expondo o nosso olhar tanto à sabedoria como à loucura dos homens.
Na primeira parte, Omar Khayyam, do alto da sua sabedoria irá, ao sabor do tempo e da sua existência, transformar um livro virgem que lhe havia sido oferecido pelo seu protetor, o juiz Abu Taher, num livro precioso. Na segunda parte, o narrador seguirá a pista de Omar e, numa espécie de caça ao tesouro, vai descobrir a Ásia, uma cultura, costumes, formas de sentir e sensibilidades a que nunca antes fora exposto. 
Os nomes de figuras célebres tanto ocidentais como orientais cruzam-se na obra, num itinerário que engloba duas épocas espaçadas – o século XI e o século XX num vai -vem entre a era de Khayyam e a era do Titanic, apresentadas sob a forma de quatro livros agrupados dois a dois e que contêm o mesmo número de capítulos (24) num total de 48.
O narrador, Benjamim O. Lesage, que está entre os passageiros do Titanic, tinha acabado de se casar com Chirine, uma persa. Ambos embarcam, levando na bagagem o precioso pergaminho. “ – Os Robaïyat no Titanic! A flor do Oriente transportada pelo florão do Ocidente!” E o fim do romance retoma o seu começo: “No fundo do Atlântico há um livro. É a sua história que vou contar.”
E esta história é simultaneamente a história de um livro ( ou de dois livros encaixados um no outro, a história de um homem (ou de dois homens unidos pela escrita) e a história de um lugar (ou de vários lugares do oriente)

SAMARCANDA – a história de um livro ou de dois livros?



O livro, recolha dos Robaïyat de Omar Khaynam começa a ser escrito em 1072 em Samarcanda. Vai perder-se por três vezes antes de reaparecer para voltar a desaparecer mais uma vez. Eis algumas datas segundo um quadro que tomei de empréstimo a um estudo de uma senhora chamado Fatiha Boulafrad da Universidade de Medea na Argélia e que consultei na net.  
1072 – Começa a ser escrito (Samarcanda)
Entre 1116 e 1131 - Desaparece (Merv);
Entre 1116 e 1131 – Aparece (Alamut );
14 de março de 1257 - Desaparece (Alamut)
1891- Aparece (Índia)
1891 - Desaparece (Teerão)
1896- Aparece – (Teerão);
15 de abril de 1912 – Desaparece (Oceano Atlântico)

Samarcanda, Merv, Índia, Teerão, finalmente o Atlântico. A odisseia dos Robaïyat leva-nos a mudar de espaço e de tempo e constitui uma espécie de ciclo de vida em que se inscrevem ao mesmo tempo as marcas da permanência e da progressão, um ciclo que não é alheio à ideia do eterno recomeço, pois o narrador está sempre à espera de uma ressurreição. A história de um livro será então pretexto para o livro.

 SAMARCANDA – a história de um homem ou de dois homens?
O contexto histórico e político é verdadeiro, a maior parte das personagens tiveram uma existência própria. Como exceção, surgem meia dúzia de figuras, entre as quais se destacam as figuras femininas, Djahane e Chirine (necessárias ao desenho da intriga amorosas) e a figura masculina de Benjamim O. Lesage, narrador fictício, mas credível, porquanto se sabe, de fonte segura, que um exemplar dos Robaïyat viajava mesmo a bordo do transatlântico

         

PERSONAGENS DE FICÇÃO
PERSONAGENS HISTÓRICAS
Livro Primeiro
Poetas e Amantes
Cap. 1 a 14
e  Livro Segundo
O Paraíso dos Assassinos
Cap. 15 a 24

O estudante da cicatriz, o Juiz Abu Taher, Djahane, Vartan,
Khayyam, Tughrul Beg, Tchagri Beg, Alp Arslan, Hassan Sabbah, Nasr Khan, Nizamel-Molk, Malikshah, Khatoun, Ahmed Khan, Gengis Khan, Hulagu Tamerlan.
Livro Terceiro
O Fim do milénio
Cap. 25 a 35
e Livro Quarto
Um poeta ao mar
Cap. 36 a 48

O narrador, Fazel, Chirine, Baskerville, o pastor, Panoff.
Renan, FitzGerald, Manet, Rochefort, Mirza Reza Djamaleddine, o sultão Abdel-Hamid, Nassereddine Shah, Morgan Shuster, Knox d’Arcy, o Xá de 11 anos, V. Hugo, Churchill, G. Clemenceau, Lorde Salisbury, W. Blunt, T. Gautier, MacKinely, Nicolau II, Leopoldo II, W. Taft, Boulanger, Naus.

Das histórias que se interligam dentro da história, distinguem-se, sem dúvida a história de Omar Khayyam e de Benjamin Lesage, no fundo as únicas que interessam verdadeiramente, tendo em conta as relações que ambos mantêm com o manuscrito. Benjamim narra a história do livro, Omar é o seu autor. Unidos pelo mesmo nome (Omar), ambos vão percorrer a Pérsia para não serem assassinados. Uma vez a salvo, ambos perdem o melhor amigo e a mulher que amam. Ambos escrevem. E entre o que escreve e o que narra cria-se uma simbiose que dará origem ao romance.
 SAMARCANDA – a história de um lugar / vários lugares
O romance não se limita à narrativa de uma vida ou de várias vidas. É ele próprio um lugar em que se cruzam muitos lugares. É a história da Pérsia reconstituída a partir das histórias das personagens e do manuscrito. A história dos Robaiyat constitui, na realidade, o fio condutor, o elo que liga as histórias umas às outras e a busca do manuscrito não é mais do que pretexto para Amin Maloouf, por interposta pessoa, nos contar a história do Oriente.

Samarcanda é pois uma história cheia de histórias que nos conta a História.