E porque
VERBA VOLANT, SCRIPTA MANENT
são estes os temas a desenvolver:
O Fim da Aventura
Graham Greene
Temas de reflexão:
· A “Arte de Comparar” em “O Fim da Aventura”
· Graham Greene vs Maurice Bendrix
· A arquitectura do romance
· Graham Greene: o romancista católico, não o católico que escreve romances
· Bendrix e Henry: “Éramos companheiros de viagem”
· Richard Smythe: “a ofensa de ter nascido assim”
· “O Fim da Aventura”: um memorial de ódio?
· Sarah Miles: “uma prostituta e uma impostora?”
A Arquitectura do Romance
por Alexandra Azevedo
A história de “O Fim
da Aventura” começa em Fevereiro de 1946, nove meses depois do fim oficial da
Segunda Guerra Mundial, mas o narrador tem o cuidado de esclarecer que Uma
história não tem princípio ou fim: escolhemos arbitrariamente um momento da
experiência, de onde olhar para trás ou para diante.(19) E o momento escolhido, uma negra e chuvosa noite de Fevereiro (19)
instaura, desde logo, o clima sombrio que irá envolver todo o romance. Aliás, o
narrador apressa-se a informar o leitor de que este livro “é um memorial de
ódio”, ódio a Sarah, sua ex-amante e a Henry, o marido desta e, mais do que
tudo e ainda que não explícito, o inconfessável ódio a si próprio.
Tendo escolhido “olhar para trás”, o narrador regride ao Verão de 1939, um
desses Verões já condenados que precederam a guerra, mais precisamente,
ao dia em que viu Sarah pela primeira vez e reparou nela porque ela era feliz e nesse
tempo o sentido da felicidade ia desaparecendo na tormenta que se aproximava
(42). As referências à guerra são sempre, no entanto, aparentemente casuais: desci
cuidadosamente as escadas bombardeadas em 1944 e nunca reparadas (20),
diz sobre o prédio em que mora, ou, num contraste dificilmente fortuito: aguardando
o momento em que Sarah desceria os degraus sólidos que os bombardeamentos
haviam poupado (34) Os próprios bombardeamentos apenas são referidos na
medida em que interferem ou não com a sua aventura amorosa: “As bombas,
entre os primeiros ataques diurnos e as V1 de 1944, mantiveram-se nos
convenientes hábitos nocturnos” (54) e nem o seu trabalho enquanto romancista foi perturbado: muito do trabalho do romancista
se desenvolve no inconsciente; (…) A guerra não perturbou essas cavernas
submarinas (55) De resto, é o próprio a afirmar: A
própria guerra nunca me afectou (53)
Mas, porque o
romancista pode também escolher “olhar para diante”, o passado e o presente
sobrepõem-se constantemente.
E é assim que, logo no Livro Primeiro,
acompanhamos, no presente da narrativa, as diligências do detective que
Bendrix, o narrador/romancista, contrata para seguir Sarah e averiguar se ela
tem um novo amante.
O ciúme é, sem dúvida, o grande protagonista
deste livro: o ciúme do marido de Sarah que o confidencia a Bendrix o ex-amante
da mulher, obviamente sem saber da relação que ambos tinham mantido tempos
antes; o ciúme de Bendrix não só em
relação ao marido, mas também relativamente à possibilidade de Sarah ter um
novo amante; e o ciúme que o mesmo
Bendrix experimentará face ao próprio
Deus católico que Sarah tardiamente descobre e a quem se entrega. Aliás, é o
próprio narrador a classificar o seu romance como “um extenso registo de
ciumeira”: Eu sou
um ciumento – parece estúpido escrever isto, no que é, ao que julgo, um extenso
registo de ciumeira (79)
Muitas são, por isso, as
referências que o narrador faz a esse sentimento que, mais do que tudo, o
atormenta: Nada há de inferior no ciúme, senhor Bendrix. Sempre o saúdo como
sinal de verdadeiro amor. (38) Impossível não ver, nestas palavras, uma
tentativa de legitimação de um sentimento que o próprio intimamente considera indigno.
Talvez por isso escolha para as pronunciar, uma personagem como o Sr. Savage, o
dono da agência de detectives, na medida em que o intuito interesseiro de não
perder um cliente, de imediato lhe retira credibilidade numa espécie de
argumento de autoridade a contrario.
Bendrix sabe que o ciúme não é um
sinal de verdadeiro amor. O ciúme, ao que sempre supus, existe apenas
quando há desejo (63) – afirma e O meu desejo era então muito mais afim do
ódio que do amor (63) Na verdade, Bendrix sabe que é de si mesmo e, não de Sarah, que não está seguro_ bastava-me
olhar para um espelho e logo via a dúvida com os traços de um rosto enrugado e
uma perna coxa – eu, porquê? (72)
Perdido entre
raros momentos de paz e confiança e
numerosos momentos de ciúme infernal, o narrador tem consciência da permanente
errância da narrativa: Se este livro não consegue desenvolver-se
rigorosamente, é porque estou perdido numa região ignota, e não tenho mapa.
(75)
De facto, de narrativa
de uma vulgar aventura extra-conjugal, o romance transforma-se numa reflexão
sobre a transcendência numa perspectiva religiosa, a “região ignota” onde “sem
mapa”, isto é, sem Fé, se sente perdido, uma região que fica num mundo religioso
que não é o seu: a Bíblia (…) pertencia a outro mundo de ideias que não o meu – o mundo
do amor. (181). Por
isso, é esta a única oração que consegue
fazer - Ó meu Deus (…) sinto-me por
demais cansado e velho para aprender a amar, deixa-me em paz para sempre.
(258) - palavras com que termina o
último dos cinco livros que compõem o romance. Como o Pentateuco.
8 de
Fevereiro de 2017