Da sobrancelha ao cotovelo: o percurso de Oblomov
por António Nabais
Depois de conseguir, finalmente e depois
de várias tentativas sempre adiadas, levantar-se da cama, Oblomov, na
realidade, continua deitado, porque estar de pé não é apenas uma actividade
física, é um estado de espírito. Efectivamente, Iliá Ilitch Oblomov não tem
força de vontade, adia constantemente planos, evita decisões e está decidido,
passe a contradição, a não sair de casa. Pelo que percebemos, este carácter
resulta da educação recebida, da hereditariedade ou de ambas: o pai, na p. 142,
“não está ocioso. Fica toda a manhã sentado á janela a observar rigorosamente
tudo o que se passa no pátio”; a mãe também “anda muito ocupada: fala durante
três horas com Averka, o alfaiate.”
É este homem fraco que encontrará Olga
Sergueiévna. Coube a Stoltz, o amigo alemão, apresentá-los. Olga é uma mulher
rara, ignorada pelos inteligentes e temida pelos tímidos. A primeira vez que se
encontram, Oblomov fica impressionado pelo olhar de Olga (p. 249).
Poucas páginas depois (pp. 251-252),
Oblomov procura concentrar-se na aparência exterior de Olga. Tudo é vago do
pescoço para baixo, mas minucioso na descrição do rosto. Mesmo assim, o que
interessa é não o aspecto físico mas o reflexo do interior: os lábios revelam
“a presença de um pensamento sempre concentrado em qualquer coisa.”; o olhar
(não os olhos) mostrava um “pensamento eloquente”. As sobrancelhas merecem
destaque, não só porque transmitem beleza aos olhos, mas também “porque
raramente se mantinham simétricas: uma era um pouco mais alta que a outra, e
por isso formava uma pequena ruga por cima da sobrancelha, parecendo indicar a
presença de um pensamento ali escondido.”
Mais à frente, na p. 259, o
maravilhamento de Oblomov com a beleza de Olga fica-se pela região superior do
corpo: os olhos, sorriso, os dentes.
Surge, então, entre ambos, uma atracção
que só será verdadeiramente entendida posteriormente. Nessa relação, tendo em
conta a fraqueza de Oblomov e a força de Olga, é fácil perceber quem assume a
posição dominante.
Essa hierarquia, por assim dizer, é
perfeitamente aceite por ambos. Olga quer modificar Oblomov, curá-lo da
terrível “oblomovite”. Na p. 302, Olga é a “mulher no papel dominante”; mais à
frente, na p. 308, é o homem que é Galateia e a mulher, Pigmalião.
Olga é, portanto, uma mulher superior,
no sentido de alguém que vive na sua cabeça. As referências aos olhos e, mais
especificamente, às sobrancelhas servem para confirmar isso mesmo. A alusão às
sobrancelhas inclui a assimetria e a ruga pensativa. Oblomov, na p. 347,
considera que é “nessa ruga que reside a sua tenacidade”.
Viremos a saber que Olga não amou
Oblomov. Não poderia amá-lo. Amou aquilo em que iria transformar Oblomov, um
Oblomov imaginário, curado da oblomovite. Todavia, como poderia Oblomov não
sofrer da doença, sendo que essa doença é, afinal, o seu carácter. Pode alguém
deixar de ser quem é? Pode alguém curar-se de si próprio? Basta ter consciência
disso? Talvez, no fundo, Olga já amasse Stoltz, uma espécie de príncipe
encantado.
Stoltz, aliás, com a sua habitual
perspicácia, explica: “se no lugar dele [Oblomov] estivesse outro homem (…),
sem dúvida que as vossas relações teriam evoluído em amor, fortaleciam-se, e
nesse caso… Mas isso é outro romance e outro herói, com que nada temos a ver.”
(p. 551) A própria carta de Oblomov explica isso mesmo, na p. 552.
Incapaz de acompanhar a sobrancelha de
Olga, Oblomov descobre os cotovelos de Agáfia Matvéiena. Da razão e da
inteligência, Oblomov desce à carne.
Quando, na p. 388, Agáfia entra na sala,
Oblomov já a tinha visto “de pescoço e de cotovelos nus.” O adjectivo poderá
não ser apenas objectivo, até porque o seu uso é frequente, a propósito de
Agáfia. Na p. 399, surge três vezes: note-se, a propósito, a atracção irreflectida presente na frase “[Oblomov] deu com o
olhar no busto alto e nos ombros nus.”
A mulher, que já não era apenas pescoço
e cotovelos, é descrita em dois parágrafos. Há um pormenor curiosíssimo: Agáfia
quase “não tinha sobrancelhas” (p. 388).
O primeiro diálogo entre ambos mostra
que esta mulher se coloca num plano inferior ao dos homens, como se pode
verificar no facto de que prefere que seja o irmão a falar.
Agáfia é, portanto, alguém que não pensa
(essa alusão surge algumas vezes: “nunca se interrogava”, “não pensava”), ao
contrário de Olga, com a sua sobrancelha analítica.
Seduzido pelos cotovelos de Agáfia,
Oblomov encontrará a felicidade com alguém que não pretende modificá-lo e apenas
servi-lo, o sonho, no fundo, de qualquer preguiçoso, o que, sendo simplista,
não deixa de ser verdadeiro. Numa relação perfeitamente equilibrada, a mulher
vive satisfeita por poder servir o homem.
A obtusidade de Agáfia é referida mais
do que uma vez, não ficando a impressão de que isso seja um defeito, mas uma
característica. É a impossibilidade de análise que faz com que ela própria não
se aperceba do amor que sente por Oblomov. Cabe ao narrador, numa espécie de
debate, explicar os sinais desse mesmo amor, entre as pp. 496 e 500, numa
explicação tão pormenorizada que parece querer chegar ao próprio entendimento
de Agáfia.
Na p. 502, é o narrador, usando de
omnisciência, que explica o que simbolizam, em parte, os cotovelos de Agáfia:
“A atitude dele para com ela era muito mais simples: via em Agáfia Matvéiena,
nos seus cotovelos sempre em movimento, nos seus olhos preocupados e atentos a
tudo, nas eternas deslocações do armário para a cozinha, da cozinha para a
despensa, dali para a cave, no seu perfeito conhecimento do governo da casa e
de todos os confortos, a encarnação do ideal daquele repouso imenso como o
oceano, inviolável, cujo quadro ficara indelevelmente impresso na sua alma
desde a infância, sob o tecto paterno.”
Na verdade, as constantes referências à
nudez também insinuam algum desejo por parte de Oblomov que descobre em Agáfia
a companheira que lhe permite exercer a sua oblomovite em paz. Olga terá sido
um acidente que lhe permitiu perceber que nunca mudaria, uma oportunidade para
perceber que mulher deveria amar ou por que mulher deveria ser amado. O
percurso de Oblomov vai, portanto, do cérebro para o corpo, de Olga para
Agáfia, dos olhos para o cotovelo desnudado, o cotovelo que é um braço que
trabalha e a carne que atrai. Tudo está bem quando acaba bem.