"História da Minha Vida I", Páginas Escolhidas, edição da Divina Comédia Editores, é uma antologia publicada em Junho deste ano, baseada numa reprodução rigorosíssima do texto manuscrito, nas palavras do tradutor para português, Pedro Tamen.
O texto introdutório, "As Mil Faces da Paixão" de Miguel Viqueira, explica como o médico irlandês que Casanova consulta quando adoece gravemente em 1789, poderá estar na origem remota da sua autobiografia: O'Reilly "receita-lhe" a narrativa das suas memórias como remédio para recuperar do intenso trabalho matemático e geométrico que desenvolvia (a duplicação do cubo). Casanova dedica-se, então, febrilmente a uma narrativa autobiográfica que se prolonga desde a infância até ao ano de 1772 embora
inicialmente estivesse previsto chegar a 1797. O que foi a turbulenta
história da publicação das suas memórias desde a primeira edição
em 1822, em alemão, até à disponibilização em linha do manuscrito a
verificar-se num futuro próximo, parece reproduzir a própria turbulência
da vida do autor.
E porque verba volant, scripta manent são estes os temas a desenvolver:
Casanova e a cabala
O facto encarrega-se de verificar o
presságio. Se o facto não acontecer, o vaticínio torna-se nulo; mas remeto o
meu complacente leitor para a história geral, onde encontrará muitos
acontecimentos que nunca teriam acontecido se não tivessem sido vaticinados. (pág. 437)
Casanova e a beleza feminina
A mulher é como um livro que, bom ou mau, deve
começara a agradar pelo frontispício. O frontispício da mulher vai também de
alto a baixo como o de um livro, e os seus pés, que interessam tantos homens da
minha espécie, criam o mesmo interesse que a edição da obra cria no homem de
letras. (pág. 102)
Casanova e a fé
Um teólogo qualquer, porém, poderia achar a minha oração piedosa, santa e
muito razoável porque a consideraria fundada na força da fé; e teria razão, tal
como também eu tenho razão, eu que não teólogo, ao achá-la absurda. (pág. 396)
Casanova e as santas virgens de Veneza
Enfim, está claro que eu não teria lá ido se
não fosse a curiosidade que sentia de ver que atitude teria diante de mim uma
mulher daquele tipo, que se oferecera para vir cear comigo a Veneza. Estava , alíás,
muito surpreendido pela grande liberdade daquelas santas virgens que tão
facilmente podiam violar a sua clausura.(pág. 271)
Casanova e o Ancien Régime
A França viu sucederem-se no trono vários outros monarcas preguiçosos,
que detestavam o trabalho, inimigos das preocupações e tratando unicamente da
sua tranquilidade. (pág. 243)
Casanova e a geometria do amor
Casanova e a geometria do amor
"Estava muito
admirado por ver nas caras da Nanette e da Marton a impressão resultante das setas
que eu lançava em linha recta para a Ângela. Esta curva metafísica não me
parecia natural; devia ser uma esquina. Infelizmente eu estava então a estudar
geometria." (pág. 78)
Casanova e a aprendizagem da língua francesa
"_ Bebi um café como todas as manhãs
_ Mas é uma tolice, meu amigo; um café é a loja onde o vendem; o que a gente bebe é uma xícara de café.
_Bem! Então bebeis a xícara? Em Itália dizemos um café e temos a inteligência de adivinhar que não bebemos a loja." (pág. 2
Casanova e o dinheiro
"A minha receita com o primeiro sorteio foi de 40 000 libras. Uma hora depois da extracção o meu empregado trouxe-me o registo e mostrou-me que tínhamos a pagar dezassete a dezoito mil libras, tudo em ambes, e eu dei-lhe o dinheiro. (...) Em todas as grandes casas aonde ia e nos foyers dos teatros, mal me viam todos me vinham dar dinheiro pedindo-me que jogasse por eles à minha vontade, e que lhes entregasse os bilhetes, visto que não percebiam nada daquilo." (pág. 480)
Casanova e o dinheiro
"A minha receita com o primeiro sorteio foi de 40 000 libras. Uma hora depois da extracção o meu empregado trouxe-me o registo e mostrou-me que tínhamos a pagar dezassete a dezoito mil libras, tudo em ambes, e eu dei-lhe o dinheiro. (...) Em todas as grandes casas aonde ia e nos foyers dos teatros, mal me viam todos me vinham dar dinheiro pedindo-me que jogasse por eles à minha vontade, e que lhes entregasse os bilhetes, visto que não percebiam nada daquilo." (pág. 480)
Clube de Leitura – Escola Artística Soares dos Reis, 16 de
Janeiro de 2014
Carta de MM enviada a Giacomo Casanova. Esta missiva foi encontrada
em casa de MM após a sua morte. Tal facto leva a crer que não foi recebida pelo
destinatário.
Meu adorado moreninho:
Soube pelo nosso caro amigo comum (cardeal de Bernis) que vos
encontrais bem, e que a única coisa que vos apoquenta agora é poder voltar a
Veneza com todos os direitos assegurados. Que feliz nova para alegrar meus
tristes dias, querido, nem imaginas! Estou certa de que não só conseguirás os
teus intentos, como também de que te cobrirão de merecidas honras, e de que te irão
suplicar perdão pela perfídia e malvadez a que te sujeitaram. Não há um dia desta
pobre vida em que não me lembre de ti e dos momentos de paixão que vivemos. A
tua lembrança é um lenitivo para os maus fados que caíram sobre mim, desde que
foste encarcerado debaixo de chumbos.
Mal desapareceste do meu convívio, a irmã conversa, que me
facilitava as fugas do convento, adoeceu com tísica galopante e ao fim de
poucos meses feneceu. Esta morte abalou-me profundamente, não só porque lhe
criara grande afeição, como também pelas dificuldades que me causou.
A tua ex futura esposa
(CC), pouco depois da mãe morrer, foi retirada do convento pelo irmão, que a
prometera em casamento a um conde muito rico e da idade do pai. Apesar das
diligências que intentei, não mais tive notícias desta terna amiga. Tal facto
privou-nos dos prazeres sáficos que proporcionávamos uma à outra. Recordas,
querido amigo, como a teu pedido, nós as duas, nos combates amorosos
percorríamos todo o reportório da “Academia das Damas” ou das estampas de
Meursius?
Ainda tentei perverter uma noviça, que entrou para o convento
depois da saída de CC, mas sabes bem, que ou se nasce para o amor, fantasia e
volúpia, ou pouco há a fazer! Tornou-se um belo animalzinho amestrado ao meu
serviço, mas faltava-lhe atrevimento, espírito, imaginação.
Três meses após a tua ida para os calabouços, começou a
aparecer no parlatório um homem de bela estampa, mascarado, que me mandava
chamar e fazia passar entre as grades bilhetes. Declarava-se perdido de amores
por mim, apresentando-me planos para violar a clausura que me espantaram pelo
engenho e astúcia que manifestavam. Sabes bem que a curiosidade é um magnífico
aperitivo, e a castidade forçada tinha-me tornado o claustro insuportável. Os
riscos que correria serviram também para acicatar a vontade de violar o
interdito. Era também necessário lutar contra a melancolia que me causava a tua
falta e a do nosso amigo.
Este homem, belo certamente, empenhado até bastante, só
contribuiu para me fazer apreciar ainda mais os vossos méritos. Com o nosso
amigo conheci uma profunda amizade e gratidão, contigo uma profunda paixão que
encheu meu coração, com ele nem uma coisa nem outra. Mais uma vez a satisfação
que tinha com ele era do mesmo tipo que tinha com a noviça, melhor que nada, adorado
do meu coração. O nosso “affaire” durou meses e tomávamos todas as precauções
para preservar a minha honorabilidade e liberdade.
Podes então imaginar, meu amor, a revolta quando descobri que
estava grávida e logo daquele homem que muito pouco me dizia. Tomei todas as
mezinhas que me propuseram, sem qualquer efeito. Já viste alguma libertina
possuir sentimentos maternais? O meu desespero foi notado no convento, não saía
da cela, recusava-me a comer e o meu aspeto metia dó. Algumas freiras que
nutriam por mim inveja e inimizade espiavam-me constantemente. O rumor de que
estaria grávida adensou-se.
Chamaram o clínico,
contra a minha vontade, pois só desejava morrer, nem as cartas do nosso amigo
animando-me e falando na possibilidade de tratar desta criança me mudaram o
humor.
O médico avisou-me da do que me esperava caso persistisse
neste terrível desânimo: a minha morte e a da criança que gerava. Desesperada,
e com um último sopro que me ligava ainda á vida, confessei o meu estado à
madre superiora. Expulsaram-me do convento.
Quando a notícia chegou ao nosso amigo, este, enviou um
emissário que
simulando ser meu familiar, me recolheu numa casa em Florença com todas as
comodidades. O nosso amigo não podia denunciar a ligação que mantinha comigo,
encontrava-se numa situação delicada, e ai de mim complicar-lhe a vida. Várias
vezes me veio visitar incógnito e prometeu sustentar-nos, pois a minha fortuna
sofrera graves reveses com o jogo.
A criança nasceu morta para felicidade dela e minha. Não a
quis ver!
Passaram dezoito anos após a tua partida e quinze que me
encontro aqui. Imagina uma cortesã de quarenta anos! Adoraria ver-te, meu terno
amigo, mas o tempo é vilão e pouco resta da beldade que conheceste. Talvez seja
melhor conservar as memórias e não deixar que a realidade as vá macular. Fica
bem meu anjo, não me arrependo de nada que fizemos, conheci o céu, que outro
não existe! Recebe o coração desta que te ama acima de tudo, tua:
MM
Casanova e a geometria do amor
por Manuela Pereira
"Estava
muito admirado por ver nas caras da Nanette e da Marton a impressão resultante
das setas que eu lançava em linha recta para a Ângela. Esta curva metafísica
não me parecia natural; devia ser uma esquina. Infelizmente eu estava então a
estudar geometria." (pág. 78)
Poesia matemática
Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base,
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo otogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela a dela
Até que se encontraram
No Infinito.
Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base,
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo otogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela a dela
Até que se encontraram
No Infinito.
"Quem és tu?" indagou ele
Com ânsia radical.
"Sou a soma dos quadrados dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
- O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs -
Primos-entre-si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Retas, curvas, círculos e linhas sinoidais.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclideanas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar
Constituir um lar.
Mais que um lar,
Uma perpendicular.
Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
Muito engraçadinhos
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Freqüentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo,
Uma Unidade. Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fração
Mais ordinária.
Mas foi então que o Einstein descobriu a Relatividade
E tudo que era expúrio passou a ser
Moralidade
Como, aliás, em qualquer
Sociedade.
Millôr Fernandes
Casanova compreendeu que as regras da geometria não se
aplicam ao amor. O amor é o caos na geometria.
Não existe geometria no amor... mas pode amar-se a
geometria!
Max
Frisch, em “Don
JUAN ou L’amour de la Géométrie”
_
comèdie en cinq actes, acrescenta a todas as análises psicológicas,
mitológicas(...),sobre Don Juan, a sua paixão pela geometria.
[ Don Juan, comme tout personage littéraire, a une
famille spirituelle dans laquelle Icare et Faust, meme s’ils ne sont que ces
lointains parents, sont plus proches de lui que Casanova.]
Derrière tout Don
Juan/Casanova on trouve l’ennui (…) l’ennui d’un esprit en quête de l’Absolut
et qui croit savoir d’experience qu’il lui est impossible de l’atteindre. (p.98)
(---)
Le torero qui, dans son costume argenté,
s’avance vers le taureau noir, l’homme qui joue le combat à mort de l’esprit
n’est autre que Don Juan/Casanova. Pour le torero non plus il ne s’agit pas en
definitive de conserver la vie. La victoire ne se situe pas là. C’est la grace
de son jeu qui lui assure la victoire, la précision géométrique, la légèreté du
danser, ce qu’il oppose à la puissance du taureau: c’est la victoire de
l’esprit de jeu qui remplit l’arène d’allégresse. (96)
(…)
Son infidélité – l’attribut le plus connu
(…) – prend allors ce sens: il n’est pas entraîné de volupté en volupté, mais
tout ce qui n’est pas exact le rebute. Ce n’est pas l’amour des femmes, mais
l’amour d’une chose – la géométrie par exemple –, plus fort en lui que l’amour
de la femme, qui l’oblige à abandoner chacune d’elles. (92)
(…)
“Les choses
en elles-mêmes ne lui suffisent pas. En chacune il veut voir un problème. Et
c’est le plus grand symptôme de l’amour. Il en résulte que les choses
n’existent que quand elles existent pour l’intellectuel. La femme a parfois ce
sentiment…” in L’intellectuel et
l’autre, Ortega y Gasset (p.91)
(…)
La beauté, c’est-à-dire ce qui est clair,
limpide, transparent, c’est ce qu’il a dans l’esprit quand il parle de géométrie
– et naturellement il a en tête la géométrie qu’on peut encore imaginer. (p.98)
(…)
Premier
acte
[
Preparativos para o casamento de Don Juan com Dona Anna. Assustados ambos
fugiram para o parque.]
(…)
DON
JUAN: Nous nous
sommes rencontrés dans le parc. Un pur hazard. Hier dans l’obscurité. Et
tout
fut si naturel tout à coup. Nous avons fui. Tous deux. Mais dans l’obscurité, tout était
simple.
(p.34)
(…)
DON RODRIGUE:
Où veux-tu donc aller?
DON JUAN:
Fuir.
DON RODRIGUE:
Retourner à la géométie?
DON JUAN:
Là où je trouve des certitudes: oui… ici je suis perdu.
(p.19)
(…)
Deuxième
acte
[Père Diègo
e Dona Elvire – a mãe de Anna – tentam compreender a recusa de Don Juan em
casar.]
(…)
Don
Juan: Que pourrait
bien dire le père? De
nous tous c’est lui qui peu le mieux me comprendre.
Porquoi n’est-il pas marié?
Père Diègo:
Moi?
Don Juan:
Par exemple avec Dona Elvire.
Père
Diego: Grand Dieu!
Don
Juan: Pour Dieu,
dit-il, et moi je dis pour la géométrie;
tout homme qui reprend ses esprits
retrouve quelque ideal supérieur à la
femme. (p.36)
(…)
DON jUAN:
Adieu!
(Il baise la main de Dona Anna.) Je
t’ai aimée, Anna; même si je ne sais pas
laquelle j’ai aimée, la fiancé ou l’autre.
En te perdant je vous ai perdues l’une et l’autre. Je me
suis perdu moi-même. (Il lui baise la main à
nouveau.) (p.39)
(…)
Troisième
acte
[Livre do
casamento Don Juan conversa com seu amigo Don Rodrigue]
(…)
La tête froide et l’esprit vif et aspirant
aux joies viriles de la géométrie.
Don Rodrigue:
Géométrie!
Don Juan:
L’as-tu jamais éprouvé, l’étonnement tranquille que procure une
connaissance juste?
Par exemple: la définition d’un cercle, la
précision d’un lieu géométrique?
J’aspire à ce qui est net,
sobre et exact, mon ami. Le marécage de
nos états dâme m’épouvante. Jamais encore la vue d’un
cercle ou d’un triangle ne m’inspira
confusion, ni dégoût.
Sais tu ce que c’est qu’un triangle? Une chose inévitable comme un destin:
des trois elements que
tu possèdes ne peut resulter qu’une figure
et une seule et l’espoir, l’apparence de possibilités à
l’infini
qui si souvent jette le trouble dans notre coeur, se dissipe comme une chimère
devant ces
trois
segments. Une solution et non pas la première venue. Tous les vertiges et tous
les états d’âme
n’y
changeron rien, une figure et une seule qui coincide avec son nom. N’est-ce pas beaux,
Rodrigue? (p.50)
(…)
Là ce qui vaut aujourd’hui aura valeur
demain et vaudra encore sans vous, sans moi, quand
mon coeur aura cessé de battre. (p.50)
(…)
Si nous refuson le mensonge de la surface
des choses, si nous voulons voir dans ce monde plus que
le mirror de nos voeux, si nous voulons
savoir qui nous sommes, allors Rodrigue, notre chute ne
cesse plus, et le siflement à nos oreilles
est tel que nous ne savons plus où Dieu habite. (p.51)
(---)
Quatrième
acte
[Prepara um
golpe de teatro para desaparecer do mundo. Procura a sua própria perdição para
melhor
encontrar a
paz.]
(…)
Cinquième
acte
[Longe do
mundo conversa com Père Diego]
(…)
L’ÉVÊQUE:
Nous vous attendios dans les jardins, mon cher, dehors le charme de la
soirée est
envoûtant.
(…)
…quand le dernier rayon de soleil allume
les asters d’un feu rouge et violet, tandis que
la brume
azurée s’élève de la vallée pleine d’ombre
déjà, je me répète chaque fois: c’est un paradis qui
s’étend à vos pieds.
(…)
Je le disais à l’instant: quel art de
vivre avec l’épiderme possédaient les vieux Maures qui
enfilades de cours baignées de fraîcheur
délicieuse où le silence n’a rien de sepulcral, mais reste
imprégné du mystère des lointains
bleuissant derrière les grilles ouvragées. On fait quelques pas,
on se délasse à l’ombre dont la fraîcheur
est adoucie par le rayonnement d’un mur tiédi par le
soleil. Comme tout cela est délicat et
conçu pour une sensibilité à fleur de peau. Et je ne parle
pas des jeux d’eau! Quel art de faire
vibrer ainsi les cordes de nos sens sous les doigts de la création,
quelle maîtrise pour jouir de l’éphémère,
devenir spirituel jusqu’à l’épiderme, quelle civilisation! (p.83)
(…)
Ce que vous m’avez dit la dernière fois
m’a longtemps préocupé, votre histoire de dimension, vous
savez!
“
La géometrie, ele aussi, peut prétendre à une verité qui échappe à
l’imagination.”
Ce sont bien vos termes, n’est-ce pas? Des
droites, des plans, l’espace. Mais qu’est-ce que vient faire
la quatrième dimension? Et pourtant vous pouvez prouver par le raisonnement qu’elle existe
nécessairement.
(Don Juan vide son verre.) Don Juan, que vous est-il arrivé? (p.84)
(...)
História da minha vida, vol.I _ Giacomo Casanova
Casanova e as mulheres
por Alexandra Azevedo
Casanova
nasceu a 2 de Abril de 1725, em Veneza e
morreu a 4 de Junho de 1798 em Duchcov,
na Boémia. Viveu, portanto, toda a sua vida na
Europa das “ Luzes”.
As «Luzes», porém, pese embora a abertura
que trouxeram ao pensamento filosófico
com a ideia de contrato social e de uma maior igualdade entre os seres, em nada
contribuíram para o reconhecimento da
racionalidade das mulheres. O discurso médico do século XVIII, aliás, reduz
todo o ser feminino à condição materna e
considera essa especificidade como condicionante do seu desenvolvimento
intelectual. Naturalmente, é também esta a visão de Casanova que considera que à mulher
basta uma razão prática: “… o menino não é filho da mãe no tocante ao cérebro, que
é a sede da razão, mas sim do pai; (…). Neste sistema, a mulher apenas tem,
quando muito, a razão de que precisa; não lhe sobra para dar uma dose ao feto”
Percepcionada
negativamente no discurso filosófico da Grécia Antiga como sendo, tal como os animais, o resultado menor de
homens que não o conseguiram ser plenamente (para Platão, por exemplo, as mulheres são a reencarnação de homens que na sua primeira existência foram
cobardes e conduziram mal, ou seja, sem virtude, as suas vidas) esta exclusão da mulher da esfera do pensamento
teórico foi ao longo dos tempos vista como algo de evidente porque
"natural".
Assim
e invertendo a relação entre as causas e os efeitos, inversão que "naturaliza" aquilo que é uma
construção social e faz com que as diferenças
biológicas ao serem percebidas segundo
uma visão masculina se tornem elas próprias o fundamento da dominação,
Casanova, comprova a incapacidade feminina para a abstracção com o facto de não haver mulheres na ciência:
“Numa mulher
a ciência não tem cabimento; ela prejudica o essencial do seu sexo e, além
disso, nunca vai para além dos limites conhecidos. Nenhuma descoberta
científica é feita por mulheres. Para ir plus
ultra é necessário um vigor que o sexo feminino não pode ter”.
Do
mesmo modo, as relações que na sociedade se estabelecem entre os sexos são olhadas como "naturais " no sentido
de ahistóricas e não como o resultado de
uma longa construção social dominada por essa
mesma visão masculina da
realidade. Neste sentido, a mulher existe para servir o homem e perpetuar a sua
espécie. Qualquer veleidade que rompa esta ordem de valores traz-lhe o estigma
que encontramos, por exemplo, nestas palavras de Casanova: “A mulher de inteligência que não é capaz de fazer a
felicidade de um amante é a erudita. (…) Que insuportável fardo para um homem é
uma mulher que tenha, por exemplo, a inteligência da senhora Dacier! Deus vos
livre, meu caro leitor” (Anne Dacier, literata e tradutora de obras
clássicas).
Excluída do percurso
masculino da razão e acantonada ao seu próprio corpo, a mulher não encontrou no
século revolucionário de Casanova o reconhecimento da sua cidadania e Olympe de
Gouges morrerá guilhotinada por ter ousado escrever uma “Déclaration des Droits
de la Femme et de la Citoyenne”!
Clube
de leitura
16
de Janeiro de 2014
Alexandra
Azevedo
Casanova, leitor de mulheres
por António Nabais
A mulher é como um livro que, bom ou mau, deve começara a
agradar pelo frontispício. O frontispício da mulher vai também de alto a baixo
como o de um livro, e os seus pés, que interessam tantos homens da minha
espécie, criam o mesmo interesse que a edição da obra cria no homem de letras. (pág. 102)
Este excerto constitui um
exemplo daquilo a que, em narratologia, se dá o nome de discurso abstracto, ou
seja, um enunciado de carácter sentencioso, em que o narrador exprime aquilo
que considera verdades universais .
Uma leitura apressada
poderia levar-nos a pensar que Casanova dá mais atenção à forma do que ao
conteúdo, mas o simples facto de comparar a mulher a um livro já pode ser
indício de que não é assim, já que se trata de um objecto cujas virtudes
principais deverão estar no interior. De qualquer modo, o autor não despreza a
importância de uma boa edição, ou seja, considera que é importante que uma
mulher cuide “das suas roupas e da sua cara”.
A beleza ou os meios de
atracção, no entanto, não se reduzem ao objecto. Cabe a um sujeito competente,
raro portanto, reparar em pormenores invisíveis para uma maioria de
incompetentes. Casanova considera-se, aliás, um homem de uma determinada
espécie, a espécie de homens que, ao contrário da maioria dos homens, “repara
nos belos pés de uma mulher”, o que poderia configurar um caso de podolatria, e
que “se preocupa com a edição”.
Ainda que o fronstispício
seja, realmente, importante, para Casanova, a verdade é que esta afirmação
poderá transmitir a ideia de que a personagem se deixara levar sempre pelas
aparências ou que teria mesmo uma obsessão pela aparência, mesmo que
requintada. A continuação do texto e o facto de ter escolhido o livro como
termo de comparação desmentem essa primeira impressão: não basta olhar para a
qualidade da edição e a mulher, esse livro, deve ser folheada e lida.
Casanova, no entanto, como
bibliófilo que é, ou seja, como conhecedor das mulheres, não precisa de
frontispício cuidado para descobrir a beleza feminina escondida (ou para
descobrir o feminino escondido). Como exemplo disso, temos, Teresa-Bellino e
Henriette, vestidas de homem, e M.M., cujos encantos femininos não ficam
obscurecidos pelo hábito de monja.
O desafio colocado por
Teresa é extremamente complicado, uma vez que se não se trata apenas de uma
mulher disfarçada de homem: é apresentada como um homem forçado a ser mulher,
um castrato. Casanova, no entanto, meteu “na cabeça a ideia de que devia
ser uma rapariga.” (p. 133) Até à revelação do verdadeiro sexo do falso castrato,
o narrador viverá um conflito interior entre uma atracção envergonhadamente
homossexual e uma quase certeza do verdadeiro sexo de Teresa.
Casanova revela uma
capacidade única para reconhecer o verdadeiro feminino e não há aparência que o
iluda. Diante das pressões do profundo conhecedor de mulheres, Bellino
revela-se Teresa. Ainda sob a capa masculina, já Casanova tinha feito uma
descrição em que comparava o castrato a Afrodite, como um retrato da
beleza ideal da mulher.
Com Henriette, ficamos,
ainda, a saber que, para além do frontispício, é, também, o interior da mulher.
Note-se, na página, o modo como Casanova sintetiza, através de uma gradação, na
p. 167, o processo que o levou a ficar seduzido por Henriette: primeiro, estava
escondida; depois, vê-lhe a cabeça; a seguir, consegue observar o conjunto,
quando está de pé; finalmente, assiste ao coroar da “obra”, graças a uma
inteligência de que o narrador “gostava muito”. Casanova, como se vê, gostou do
frontispício, mas foi a leitura do livro que o prendeu.
Na p. 258, Casanova revela o
que a atraiu em C.C.: em meia hora ficou encantado “pelo seu porte, pelo seu
rosto e por tudo o que nela via nascer.” A verdade é que o que sobretudo o
impressionou “foi um espírito vivo e muito jovem em que brilhavam a candura e a
ingenuidade, sentimentos simples e elevados, uma vivacidade jovial e inocente;
enfim, um conjunto que pôs diante da minha alma o venerável retrato da virtude
que teve sempre sobre mim um grande poder para me tornar escravo do objecto
onde julgava reconhecê-lo.” Mais uma vez, o frontispício não é suficiente e
Casanova acaba por dizer revelar que a sua carreira de seduzido, paralela à de
sedutor ou causa dela, dependeu mais das virtudes interiores, em mais uma prova
de que o belo só será belo se for bom.