O CONTEXTO HISTÓRICO
quinta-feira, 5 de abril de 2012
terça-feira, 3 de abril de 2012
O Coração é um Caçador Solitário
O Texto
O Coração é um caçador solitário
Carson McCullers
Carson McCullers
O mudo cantor
por António Nabais
Mesmo sabendo-se que este é, em grande parte, um romance
autobiográfico, a verdade é que a personagem principal não será Mick Kelly, mas
sim John Singer, um mudo. Aliás, o romance esteve para ser intitulado The
Mute e, para além disso, de acordo com as palavras da autora, Singer era um
“um catalisador emocional para todas as outras personagens”.
John
Singer é-nos apresentado, antes de mais, na sua relação com Antonapoulos, como
um protector, uma figura feminina entre a esposa e a mãe, se aceitarmos o
estereótipo da mulher como alguém que protege e aceita, incondicionalmente, o
seu amado (curiosamente, e a propósito, na p. 225, a mãe de Biff era
considerada "severa como um homem”). Ainda assim, não consegue livrar Antonapoulos
do internamento. A partir desse momento, no entanto, fica, aparentemente, livre
para poder ajudar outros.
Todas as personagens que se ligam, posteriormente, a Singer
vivem, de algum modo, desamparadas. Todas elas precisam se ser acarinhadas,
ouvidas. A mudez, secundada pelo instinto protector de Singer, tornam-no numa
espécie de vazadouro de sentimentos e de pensamentos.
Embora
seja evidente o facto de que o romance se passa no Sul dos Estados Unidos, o
espaço que nos é dado a conhecer é, sobretudo, o interior das personagens.
Aliás, a narração assenta, muitas vezes, numa focalização interna que nos leva
a acompanhar a história com base na percepção e no conhecimento de cada
personagem. Exemplos disso surgem na p. 63 ("Uma miúda encontrava-se
sentada no alpendre da casa. Já a vira antes.") ou nas pp. 150-151 (Blount
é, na visão de Copeland, um “branco” em que “detectou um olhar demente,
estranho, fixo e abandonado”).
Singer
é, então, a folha em branco em que são inscritos todos os pensamentos das
personagens. O facto de ser mudo transforma-o no receptor ideal, em alguém que,
do ponto da vista dos outros, é sempre um igual. Na p. 138, podemos
aperceber-nos daquilo que pensa o Dr. Copeland: “Ele era muito diferente dos
outros brancos. Era um homem inteligente, que compreendia a força do verdadeiro
propósito de uma forma que os outros brancos não compreendiam. Sabia ouvir, e o
seu rosto possuía algo de judeu, a noção de se pertencer a uma classe
oprimida.” Mais à frente, na p. 201, Singer é apresentado como um autêntico Zelig,
reclamado como seu por etnias e profissões.
A
ligação entre Singer e as personagens que mais se aproximam dele, ao longo da
história, é de tal como forte que, na p. 210, quando todos se encontram ao
mesmo tempo no seu quarto, podemos ler: “Todas as pessoas falavam directamente
para o mudo. Os seus pensamentos pareciam convergir nele, como os raios de uma
roda convergem no eixo.” É o próprio narrador que, através de uma comparação
feliz, sintetiza o papel de Singer na obra.
Não consegui saber se a escolha do nome do mudo terá algum
simbolismo, mas não deixa de ser, no mínimo, uma ironia que o apelido de uma
personagem que não emite sons signifique ‘cantor’. Em primeiro lugar, isso
parece indiciar uma comunhão com Mick, cuja vida interior é habitada pela música.
Para além disso, o canto é, relativamente à música,
primordial, mas o que pode cantar um mudo? A verdade é que as personagens
parecem compreender tudo aquilo que (não) diz e tudo aquilo que parece dizer
é-lhes agradável, música para não para os ouvidos, mas para a alma. Orfeu, a
personagem mitológica, tinha um efeito apaziguador sobre os elementos, graças
ao seu canto. Deste modo, podemos ver em Singer um Orfeu mudo.
Curiosamente, e continuando a aproveitar o mito de Orfeu, é
ainda possível entrever mais uma homologia: tal como Orfeu falhou com Eurídice,
também Singer não consegue resgatar Antonapoulos dos Infernos. Tal como Orfeu,
morre.
Singer, de certa maneira, acaba por ser vítima do seu
altruísmo e do egoísmo alheio: para os outros, foi sempre um instrumento, viram
nele apenas aquilo que queriam ver. Note-se, aliás, que é só nas pp. 213 ss.
que nos apercebemos daquilo que Singer sente, quando podemos, finalmente,
ouvi-lo, através da carta que escreve.
O negro, a miúda, o homem do bigode e o dono do New York Café
Mick, uma miúda de 13 anos que amava a música sobre todas as coisas e queria ser famosa aos dezassete, Biff, o dono de um café que gostava de “gente anormal” e nutria um certo carinho pelas pessoas doentes e pelos aleijados, Jake um mecânico de carrocéis que fazia parte dos que sabiam e que alucinadamente queria levar os outros ao conhecimento da Verdade e, finalmente, o Dr. Copeland, um médico negro que queria recuperar a dignidade da sua raça são quatro personagens que, aparentemente nada têm em comum.
Aparentemente.
Na verdade, todos são irremediavelmente solitários e cada um vê no Sr. Singer, surdo-mudo,… o ouvinte ideal!
Singer, por seu lado só tem no pensamento o seu amigo Antonapoulos e na carta que lhe escreve, refere-se aos seus improváveis amigos desta forma: o negro, a miúda, o homem do bigode e o dono do New York Café (pág. 214) e explica-lhe que estão todos muito absorvidos, isto é, todos têm uma paixão que valorizam acima de tudo, realçando a diferença que separa o dono do café dos outros: Esse homem é um observador. (pág. 214)
Todos sobem ao quarto de Singer para falar com ele, mas é a si próprios que querem ouvir. O efeito Singer é o mesmo do psiquiatra: tal como este que apenas interrompe o paciente com um ou outro monossílabo para desencadear nova torrente de palavras, também Singer com um olhar ou um sorriso incentiva os monólogos dos seus assíduos visitantes deixando-os falar sem nada contrapor, porque, tal como escreve ao amigo analfabeto, é uma grande falta de educação ignorar os sentimentos dos outros. (pág.. 215)
segunda-feira, 2 de abril de 2012
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