Ítacas há muitas
por António Nabais
A palavra nostalgia é de origem grega, incluindo os elementos nostos ‘regresso’ e algia ‘dor’. Da Odisseia diz-se que é exactamente um poema sobre o regresso e o regresso pode ser fonte de dor. O romance O Retorno de Dulce Maria Cardoso é, também ele, sobre um regresso e sobre a dor desse regresso.
Sem grande esforço, parece-me possível encontrar alguns paralelismos entre a epopeia homérica e a narrativa portuguesa, começando, desde logo, pelo facto de que o ponto de partida de ambos é o fim de uma guerra, o que não é o mesmo que dizer que as personagens encontrem imediatamente a paz.
Rui, a personagem principal, é, assim, um Telémaco que deseja o regresso de pai, embora, neste caso, esteja fora da Ítaca amada. O pai desempenha o papel de um Ulisses cujo percurso configura uma perversão da Odisseia, já que Angola deixa de ser Ítaca e passa a ser Tróia e a própria odisseia.
As semelhanças entre O Retorno e a Telemaquia, a primeira parte da Odisseia, tornam-se evidentes, a partir do momento em que a família chega a um hotel que Rui se esforça por considerar uma casa, mas ainda não tinha chegado o tempo de votar a Ítaca.
A centralidade da personagem do filho é total, ou não tivesse a seu cargo a enunciação narrativa, que arrasta o leitor para a corrente da consciência da personagem. A mãe, Penélope de circunstância, tem nos "demónios" os substitutos dos pretendentes que ocuparam o palácio do marido, na sua ausência. Cabe a Rui ajudar a impedir que a mãe seja subjugada, enquanto ela própria tece, como pode, a resistência à loucura.
Nada sabemos da odisseia do pai, a não ser que lhe ficaram cicatrizes. Sabemos, isso sim, que, com a sua chegada, os demónios são afastados, a normalidade é reposta, sendo sintoma disso, por exemplo, o facto de Rui voltar a ser insultado pela irmã. Tal como Ulisses matou os pretendentes, também o pai afasta os demónios que incomodavam a mulher. Com o regresso do herói, a normalidade é reposta.
É certo que não teremos o privilégio de ouvir Ulisses contar que ciclopes ou sereias enfrentou, mas esse silenciamento parece resultar da necessidade de encontrar uma nova Ítaca. Pondo de lado a curiosa coincidência de que este Ulisses regressa à cidade que teria fundado, de acordo com a lenda, Ítaca deixa de ser Angola e passa a ser, antes de mais, a família e, até, a metrópole.